Sesc Jazz, o festival das mulheres e do povo preto traz novamente incríveis talentos aos palcos

Adriana Arakake
Por Adriana Arakake

Mais uma vez, o Sesc Jazz trouxe diversidade ao festival, entre artistas clássicos e novidades para um público igualmente diverso e colorido, que pode apreciar shows incríveis durante quase todo o mês de outubro.

Na plateia, são todos muito bem vindos neste respeitável evento, não só pela música, mas também pelo acolhimento ao pensamento livre e à cultura, principalmente no momento atual e sob o governo atual que despreza mulheres, as várias formas de amor, o povo preto e a arte.

Conversei com alguns artistas e esta foi uma das minhas questões: como seria, para eles, participar desse festival, nesse momento de pré-eleições tão importante (e, porque não dizer, histórico) e todos me contaram sobre a honra que sentiram com o convite.

Orkestra Rumpilezz – foto: Renata Teixeira

Foram inúmeros shows. Vou trazer aqui um pequeno resumo do que foi  destaque, na minha opinião. O festival teve início dia 5 de outubro e minha jornada deliciosa começou com a Orquestra Afrosinfônica no dia 06, formada por 23 artistas e sob o comando do maestro Ubiratan Marques, nasceu da ideia da junção de arranjos orquestrais com conceitos ligados à música afro-brasileira.

Alaíde Costa foto: Renata Teixeira

Ilessi e Alaíde Costa foram as primeiras a me trazer uma grande emoção. Tive o prazer de ouvir Ilessi pela primeira vez ao vivo, a voz poderosa da cantora abraçou o público com canções próprias e de outros compositores, entre eles, a lenda Alaíde Costa. A veterana cantora de 86 anos, fez uma participação belíssima cantando em conjunto com Ilessi e banda, mas impressionou mesmo quando encheu os pulmões e cantou à capela sob um silêncio lindo, seguido de palmas de pé por vários minutos de uma plateia absolutamente maravilhada com o que tinha acabado de ouvir.

Nicole Mitchell’s Black Earth Sway – foto: Léu Britto

O afro-folk-futurista do Nichole Mitchel´s Black Earth Sway evocou a libertação incorporando improviso às linguagens cruas do blues, do jazz e da música experimental. De cara, já me agrada muito a fotografia de quatro poderosas mulheres negras expressando sua arte. O show tornou-se ainda mais atraente com o carisma e técnica que permitiram ao grupo proporcionar ao público um espetáculo muito envolvente.

Pela segunda vez no Brasil, Nichole Mitchell me contou depois do show que considera que o festival em si seja uma importante expressão de liberdade. Contei a ela minha grande alegria de assistir mulheres protagonistas no palco, em um festival de jazz. Sua resposta foi que, para ela, também era uma honra dar entrevista para uma mulher que escreve sobre jazz.

Nduduzo Makhathini – foto: Renata Teixeira

Dia 12 de outubro, foi a vez de Nduduzo Makhathini, batemos um papo muito agradável antes do show,  em sua primeira vez no Brasil, o artista viu muitas semelhanças entre sua cultura, o povo, a comida que o fizeram sentir em casa. Pergunto sobre o festival justamente agora tão perto das eleições:

“Em toda sociedade, os músicos, artistas sempre representam um papel de peso, não é só gravar discos, tocar sua música,  mas os elementos que compõe seus sons, os sons dialogam, eles têm concordância, em profundidade com lugares de liberdade, artistas sempre tentam levar o sentimento de liberdade, mesmo que esse sentimento dure só cerca de uma hora, mas esses sons trazem o sentido de que nós humanos no fundo somos gentis, amorosos, todo ser humano tem isso, então a música tem esse papel, de nos lembrar disso, e é por isso, você sabe, que a música sempre estará viva. Música sempre está negociando com o tempo e o espaço, música é resistência.”

Nduduzo Makhathini – foto: Renata Teixeira

Essas foram as palavras do fã de Coltrane, Makhatini. Essa espiritualidade foi absolutamente sentida em seu show, que teve teatro lotado, mas o clima era intimista, com os músicos formando um círculo em uma espécie de ritual, o que faz todo sentido uma vez que o artista cresceu em uma cultura totalmente ligada à rituais, e espiritualidade, e foi exatamente nessas palavras que me senti durante uma hora e meia de show,  liberdade e esperança.

Zezé Motta – Quarteto Negro – foto: Renata Teixeira

No dia seguinte foi a vez do imenso Quarteto Negro,  interpretando o disco homônimo gravado há 35 anos. O trio Zezé Motta, Djalma Correa (percussão) e Jorge Degas (baixo), contou com a participação de Ivan Sacerdote, no sax e clarineta. O disco originalmente teve Paulo Moura como integrante, falecido em 2010 e homenageado no palco do Sesc Jazz 2022. Zezé Mota, uma artista completa, carismática com um sorriso gostoso e a pimenta que só ela tem, ao lado de músicos desse naipe, fizeram um show ímpar como merecia o álbum histórico.

Djalma Corrêa – Quarteto Negro – foto: Renata Teixeira

Susana Baca, a ex ministra da cultura do Peru, pesquisadora de ritmos e cultura afro-latinos é uma entidade que hipnotiza. Tive a honra de entrevistá-la e em breve sua história. Para terminar meu dia, que começou muito bem com esse papo com a artista, acompanhei o impressionante espetáculo da Orkestra Rumpilezz, que tem sua base na percussão afro-brasileira.

Susana Baca – foto: Léu Britto

Todos de branco, de frente para um altar que representou o maestro Letieres Leite, fundador da big band (falecido em 2021), interpretaram outro gigantesco maestro que amo muito, Moacir Santos. O resultado foi uma releitura digna e muito tocante: Letieres Leite estava lá, Moacir Santos estava lá. A música vive.

Orkestra Rumpilezz – foto: Renata Teixeira

Dobet Gnahoré, dia 19, me impressionou muito: belissimamente paramentada com vestimentas típicas da Costa do Marfim, sua terra natal, a artista toca percussão, dança, canta com uma força e um vigor deslumbrantes. Não tem como assistir Dobet no palco e não ser completamente absorto por sua incrível energia.

Dobet Gnahoré – foto: Léu Britto

Dia 20 foi a vez da dinamarquesa Kathrine Windfeld, que sorri, toca piano poderosa e lindamente e causa a sensação muito boa de ver uma mulher reger uma orquestra formada apenas por homens. Teve a nobreza de descer do palco assim que terminaram os agradecimentos para atender e conversar com o público.

Kathrine Windfeld – foto: Renata Teixeira

Na sequencia, Ray Lema me concedeu entrevista antes do show no dia do meu aniversário, que presente! Simpaticíssimo brincou me dizendo que ia fazer o show especialmente para mim e me contou que seu processo criativo é absolutamente natural:

Ray Lema – foto: Léu Britto

“Tenho 77 anos é muita quilometragem e pego tudo que cruza meu caminho, porque me apaixono por diversas coisas, mas não penso exatamente vou misturar isso com aquilo, não funciona assim, eu só me apaixono pelas pessoas, a melodia surge e depois as palavras, é natural. Não sou um grande pensador, tive poucos anos de estudos formais, depois aprendi do meu jeito… nunca toco do mesmo jeito, cada vez que é diferente, é como o fluxo da vida que flui como um rio.”

Kokoroko – foto: Léu Britto

Dia 22, o esperado Kokoroko, fundindo highlife, soul, funk e elementos da cena jazz londrina interpretou o mais recente disco Coul We Be More, e algumas das músicas já conhecidas do público, que estão no álbum de estreia Abusey Junction (2018). Envolveu o público com seu som dançante que remete ao afrobeat.

No último dia do festival (23), vários pianistas se revezaram, dialogando com instrumentos de sopro para homenagear o grande mestre do choro Laércio de Freitas, o belíssimo show faz parte de um projeto que renderá o lançamento de um disco inédito, além de um conjunto de partituras das obras de Laércio, nunca antes publicadas.

Diversos pianistas interpretam Laércio de Freitas – foto: Renata Teixeira

Em um dos shows me sentei atrás de um casal de mulheres, que muito a vontade trocavam singelos carinhos entre si. Isso me fez pensar como esse lugar é tão importante, não só pela arte e pela música que vem da alma, mas pela ideia, tão mencionada neste texto, de liberdade que transmite,

O jazz está intimamente ligado à política, àquela política que mora no jeito que a gente decide viver e no pensamento do bem comum. O êxito do Sesc Jazz tem nome, Giovana, Sílvio, Nat, Cris, Maria Inês, e tantos outros, com curadoria, produção e equipe de comunicação impecáveis, é das mulheres, do povo preto, de todas as minorias, é democrático como desejamos que o país continue sendo.

O jazz, a música e festivais como este trazem a esperança das palavras de Nduduzo Makhathini:  “Não é a esperança que te faz esperar por ações, é a esperança que produz ações, a esperança que é sinônimo de força, porque algumas pessoas acreditam que a esperança seja sobre não agir, na verdade a esperança foi o que moveu a humanidade e a manteve viva até hoje”.

Susana Baca – foto: Léu Britto

Adriana Arakake

Adriana Ararake é DJ é especialista em Jazz, Soul e Blues do Music Non Stop.

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