“TOKIO, TOKIO… T. E. C. H. N. O. P. O. L. I. S., TOKIO…” transmitia para o mundo a voz de Ryuichi Sakamoto deliciosamente deformada pelo vocoder na faixa Technopolis, sucesso estrondoso de 1979 de Yellow Magic Orchestra. Não era 東京 (tou-kyou, pronúncia japonesa), e sim Tokio (to-ki-ô, pronúncia inglesa). A diferença, talvez sutil demais para a percepção ocidental, significava uma grande alteração. Naquela época, todas as músicas hype vinham de Londres, e a intenção da banda era mesmo de avisar Londres e o mundo que aquela música vinha da metrópole tecnológica e futurista, Tokio.
Era o mesmo ano em que nascia o Walkman, aquele aparelho que revolucionou a maneira com que ouvimos música. Dois anos depois, uma outra revolução parte daquela Technopolis para o mundo, mais precisamente o da moda. A Comme des Garçons apresentava pela primeira vez a sua coleção na Semana de Moda de Paris em 1981, gerando um mar de controvérsias com suas roupas predominantemente pretas, de silhuetas folgadas e assimétricas, com tecidos furados, numa época em que a moda feminina era concebida exclusivamente para ser sexy, colorida e “bonita”.
Há quase 40 anos, de uma cidade borbulhante do Extremo Oriente, eram emitidos sinais de uma revolução em várias frentes que mudariam para sempre o estilo de vida das pessoas. Era o surgimento de um Japão que, passados os anos do alto crescimento econômico dos anos 60 e 70, subitamente tinha algo a dizer. Andando pelas ruas de Tóquio hoje, é muito fácil encontrar os vestígios de como esses vanguardistas moldaram a paisagem urbana desta cidade.
Originalmente, a palavra francesa “avant-garde” refere-se ao batalhão de frente de uma tropa numa ação militar, aquele que avança corajosamente à frente para que o resto o siga com segurança. É exatamente no mesmo sentido que, a partir do Século 19, o termo começou a ser usado dentro dos domínios da cultura. Avant-garde são os artistas e pensadores que, estando à frente da maioria, exploram terrenos novos com trabalhos inovadores e experimentais, guiando a cultura de seu tempo e, muitas vezes, promovendo uma profunda transformação social.
Foi precisamente isso que aconteceu quando a Sony lançou o Walkman, o pequeno aparelho que cabia no bolso, que permitia que estivéssemos sempre com a nossa música a tiracolo. Havia coisa mais atraente do que isso naquela época? A música era excitante, os jovens viviam a cultura musical intensamente e se pudessem, queriam ouvir música o tempo inteiro, até quando faziam jogging (era a febre do momento). O Walkman II, com seus headphones cor de laranja, realizou o nosso desejo e ainda por cima nos deu algo a mais, o tal do fashion appeal, tão importante naquela Technopolis dos anos 80. O sucesso não se conteve só a Tóquio, espalhando-se para todo o Japão, para os Estados Unidos e para o mundo. Surgia então um hábito antes inexistente: o de ouvir música individualmente e de maneira portátil. Uma revolução e tanto.
O que o Y.M.O. (como o Yellow Magic Orchestra é mais conhecido) fez em seus cinco anos de vida, não só para o mundo da música mas também para o da moda e do comportamento, não foi tão diferente. A banda de techno-pop (rótulo um tanto quanto limitado) de Ryuichi Sakamoto, Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi sacudiu a cena musical japonesa com sua música ultramoderna, usando e abusando de sintetizadores e computadores, algo completamente novo naquele cenário da época. Mesmo fora do Japão, exceto pelo alemão Kraftwerk, era muito raro.
E vamos combinar (sem querer ser muito bairrista e tendenciosa, pois cresci em Tóquio e ainda ouvindo Y.M.O.), Kraftwerk soa bem básico perto da sofisticação, da complexidade, da diversidade, da sensualidade, e até do groove que Y.M.O. mostrava em suas faixas, que simplesmente influenciaram nada menos que o techno, o hip hop, o synthpop, o electro, e outros gêneros que viriam a nascer na sequência da história musical recente. Obviamente as comparações entre as duas bandas logo surgiram, mas, a começar pelo nome, estava claro que Y.M.O. não era uma cópia da banda alemã. Yellow magic se referia a algo que não era nem magia (música) negra nem magia (música) branca, posicionando-se como uma música feita por “amarelos”, criando uma sonoridade própria, oriental, moderna e tecnológica.
A banda inovou também na maneira de apresentar-se no palco, com muita maquiagem, headphones e a enorme aparelhagem de sintetizadores. Seu conceito visual debochava da visão estereotipada que os ocidentais tinham dos orientais. O extraordinário é que a música deles era complexa e à frente do tempo o suficiente para influenciar tantos outros gêneros musicais e, no entanto, teve uma aceitação maciça do povo japonês, desde crianças até os mais velhos. O sucesso foi tão grande que até o seu corte de cabelo, apelidado de techno cut, era copiado por muitos. Até na minha classe da escola primária em Tóquio tinha um menino com esse penteado.
A banda levou uma onda de fenômeno techno à sociedade japonesa. Não por acaso, o progresso tecnológico japonês na eletrônica estava em plena ebulição e, como resultado, o Japão ganhou uma grande confiança naquilo que produz e lança para o mundo. O Made in Japan agora era um selo de garantia de qualidade.
Bom, mas essa matéria é sobre um dos membros do Y.M.O., o Ryuichi Sakamoto, que se apresentará em São Paulo no dia 7 de maio na ocasião da abertura do centro cultural Japan House. O nome de Sakamoto parece dispensar apresentações, mas na verdade o que o público brasileiro conhece dele parece ser uma faceta específica do artista, aquela do compositor de belíssimas trilhas de cinema, de música clássica, das colaborações ultrassofisticadas com outros gênios da música de diversos gêneros, quase colocando-o num pedestal um tanto quanto elevado e de difícil “digestão”. Talvez também o conheçam pela sua atuação junto com David Bowie e Takeshi Kitano no filme de Nagisa Oshima, Merry X’mas, Mr. Lawrence, cuja trilha sonora ele assina também. Para a minha surpresa, o nome da banda que o lançou ao sucesso mundial é praticamente desconhecido por aqui, mesmo entre os amantes da música eletrônica. Kraftwerk, todo mundo conhece, mas Yellow Magic Orchestra? Ãhn? Nunca ouviu falar. O eurocentrismo reina no mundo das artes, não tem jeito.
Mas garanto, conhecer melhor o começo de sua carreira e o cenário da cidade vanguardista dos anos 80 de onde surgiu enriquecerá muito a sua percepção sobre este gênio.
Mais chocante ainda que essas faixas do Y.M.O., que ainda hoje soam supercool, é o primeiríssimo álbum que Ryuichi Sakamoto lançou em toda a sua vida. Aos 25 anos de idade, antes mesmo de entrar para a banda, ele estreou com o álbum solo Thousand Knives of Ryuichi Sakamoto. Chocante, sim, é a palavra, pois essa obra-prima de difícil definição ou rotulagem é de cair o queixo de tão elaborada, complexa, inteligente, ousada, original e atemporal. E tem outra, demonstra zero preocupação com o fator vendável. Vale gastar 45 minutos da sua vida para ouvi-lo inteiro, no próximo vídeo.
Tem uma outra coisa que é muito surpreendente neste álbum. Ele parece já conter, de forma concentrada, toda a sonoridade de Ryuichi Sakamoto que ainda estava por desdobrar-se e multiplicar-se. Ou seja, é o seu ovo; todo o potencial já está ali prontinho para o que viria a ser.
Porém, vale lembrar que o ovo não foi feito em um dia assim, do nada. Foram 339 horas de gravação, numa época em que Sakamoto trabalhava sem parar como músico de estúdio, fazendo uma maratona entre um estúdio e outro durante o dia, e de meia-noite até de manhã, trabalhando neste seu álbum de estréia, ficando vários dias sem dormir. Algumas curiosidades:
- A introdução da primeira faixa, homônima do álbum, é a voz de Sakamoto em vocoder entoando um poema de Mao Tsé-Tung.
- O título Thousand Knives (mil facas) foi tirado do trecho que descreve a sensação ao usar mescalina, no livro Misérable Miracle de Henri Michaux.
- Além de muitos outros músicos de renome, tem a participação do guitar hero japonês Kazumi Watanabe, que depois continuou colaborando com o Y.M.O. nas turnês.
- Quem fez o styling de Sakamoto na foto da capa foi Yukihiro Takahashi, que tornaria-se um dos outros dois membros do Y.M.O. Na época, Sakamoto tinha zero senso de moda, andava de cabelo comprido e não tomava muito banho. Yukihiro fez uma transformação em seu visual, cortando-lhe o cabelo e vestindo-o com jaqueta Armani e jeans Levi’s.
Ryuichi Sakamoto já tinha, a essa altura, um background respeitável e era culto. Formou-se bacharel em composição na Universidade Nacional de Tóquio de Belas Artes e Música e tornou-se mestre em análise musical na mesma universidade. Essa formação acadêmica toda fez com que fosse apelidado de “Kyouju”, professor universitário em japonês. No Japão ele é carinhosamente chamado assim por todos, até hoje. Aprendeu a tocar piano aos 3 anos de idade, começou a estudar composição aos 10, e aos 14 tinha certeza que em sua vida passada tinha sido Claude Debussy. Seu hobby era a leitura e era rato de biblioteca no colégio.
O que acho fascinante nele é que, com toda essa bagagem erudita e acadêmica, fez uma aparição ao mundo com uma imagem um tanto diferente, sempre maquiado, meio andrógino, cool, futurista, carismático e ainda por cima tinha humor e ousadia. Em 1982, quando no auge do sucesso com Y.M.O. e outras atividades solo em paralelo, colaborou com o já falecido Kiyoshiro Imawano da banda japonesa RC Succession, numa faixa que botou mais lenha na fogueira de seu sucesso e popularidade, chocando o Japão com um beijo entre os dois e com uma mensagem muito clara, “viver se preocupando com o olhar alheio é ridículo”. Olha o clipe que eles fizeram!
Diz que esse beijo foi de língua. Foi o próprio Sakamoto quem contou numa entrevista. O significado do título da faixa Ikenai Rouge Magic é algo como Tabu, A Magia do Batom. A Shiseido comprou a faixa e usou como trilha de sua campanha de primavera de 82. Outros tempos…
Só para completar este episódio, aqui vai um video engraçado da aparição deles num programa musical de hits em horário nobre, que simplesmente todos os lares japoneses assistiam. Menção especial para o “look mendigo” da dupla, influência direta da Comme des Garçons, de Kawakubo, a outra vanguardista da época que quebrou paradigmas.
Para finalizar, vale a pena ouvir mais este álbum solo, B2 Unit, lançado em 1980. Outra obra-prima experimental que fez história e influenciou muitos artistas e gêneros musicais, em especial a faixa Riot in Lagos, originando muito do que tornaria-se a dance music.
No domingo, em São Paulo, quem faz a abertura do show de Sakamoto é o compositor e trompetista Jun Miyake, acompanhado dos artistas Kyoko Katsunuma, Lisa Papineau, Bruno Capinan, integrantes do Vozes Búlgaras e um quarteto de cordas formado por músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Conhecido do público brasileiro pela trilha sonora do documentário Pina, de Wim Wenders, Miyake é mundialmente respeitado e premiado por seus trabalhos, principalmente por sua capacidade de misturar elementos aparentemente díspares da música.
O concerto de Ryuichi Sakamoto será dividido em duas partes, na primeira, ao piano, Sakamoto mostra um solo com músicas do álbum async, seu recém-lançado trabalho. Depois, resgata o projeto Casa, ao lado de Jaques Morelenbaum e Paula Morelenbaum, promovendo uma homenagem à obra de Tom Jobim, que despertou sua paixão pela bossa nova.
JUN MIYAKE E RYUICHI SAKAMOTO
Domingo, 7 de maio, a partir das 18h
Área externa do Auditório Ibirapuera
Gratuito