Rewire: um festival de música experimental que te ensina como chegar ao transe a cada 45 minutos durante 3 dias

João Perassolo
Por João Perassolo

FOTOS: JOÃO PERASSOLO E REWIRE
TEXTO E VÍDEOS: JOÃO PERASSOLO

A primeira informação que você precisa saber sobre o Rewire é que este é um festival de música experimental, ou seja, não espere shows de pop com a plateia cantando o refrão em coro e pedindo hits. Os artistas convidados têm uma ideia a desenvolver nos 45 minutos que estão no palco – estamos no território da música de exploração dos instrumentos, muitas vezes sem vocais. Durante as apresentações, o público faz silêncio e presta atenção, fechando os olhos e balançando a cabeça em aprovação. É uma espécie de transe. Ao fim, os aplausos comedidos, porém firmes, asseguram à banda de que o conceito foi bem recebido.

A lojinha Underbelly, onde o povo que frequenta o Rewire se abastece de livros e discos

Quem esteve em Haia, na Holanda, no último fim de semana de março estava aberto para a trip avant-garde de guitarra e saxofone do Wolf Eyes, ou para a perturbação eletrônica da Pharmakon – artistas que gravam discos com faixas (aparentemente) sem estrutura e que, no limite, são inaudíveis, mas cuja presença em cena funciona. Quem frequenta o festival lê a revista inglesa Wire e compra vinis e livros da lojinha-conceito Underbelly, presente com uma banquinha no evento. A faixa etária é acima dos 30, o que dá um ar mais adulto e tranquilo ao evento. Por fim, todo mundo se veste como se tivesse saído das páginas de um editorial de moda da Monocle.

Momento de transe coletivo no Rewire deste ano durante show do N.M.O.

Há um contraste considerável entre o Rewire e o município de Haia, isto é, o primeiro se situa no século 21, e o último, na era medieval. O evento é um showcase de música contemporânea, uma reunião de artistas nerds oriundos de conservatórios de música que se colocam a apertar botões de Macbooks e toda sorte de equipamentos eletrônicos em palcos com sistema de som e iluminação incríveis – “música aventureira”, diz o release do festival. Paralelamente aos shows, um workshop sobre “design de som para games” ou uma conversa com um dos inventores do sintetizador.

Den Haag, o nome original da cidade fundada no século 13, é a sede do governo e dos ministérios holandeses. Suas ruas largas e perfeitamente simétricas abrigam também as embaixadas de outros países e o famoso Tribunal Internacional de Justiça. É uma cidade que concentra muito poder político, comparável a Washington. Isto tudo faz com que Haia tenha uma atmosfera protocolar, além de um ar sofisticado – por exemplo, do lado do Parlamento fica o museu Mauritshuis, com a grande pintura holandesa do século 17, amplamente considerado por ter uma das mais belas coleções de arte do mundo.

No todo, a experiência é diferente de festivais tradicionais, em que você vai para um parque ou um terreno mais ou menos afastado da cidade e passa 12 horas indo de um palco a outro para não perder os shows. Fiquei surpreso – no melhor sentido da palavra – com o que vi, e conto um pouco abaixo.

DIA 1

Cheguei em Haia na tardinha de sexta, dia 31, e me deparei com o sol de primavera se pondo sobre as paredes das casas de tijolo e as ruas perto da estação de trem já semidesertas. O Rewire ocupa casas de show, um teatro, duas igrejas e uma galeria de arte no centro da cidade: os espaços são bem próximos um do outro, de tal modo que nem bicicleta é preciso usar, e a região toda fica a 15 minutos a pé de Den Haag Centraal, a estação central, localizada a uma hora de Amsterdam.

O Slowdive em ação no primeiro dia de Rewire Festival; banda ícone do shoegaze se apresenta em maio em SP

Meu primeiro – e, no fim, único – show do dia foi o Slowdive, lenda absoluta do shoegaze do início dos anos 90. Eles se apresentaram no palco maior do Paard van Troje (cavalo de troia, em holandês) para um público de mais ou menos mil pessoas. Era a apresentação mais esperada da noite não só porque o marketing do festival focou pesadamente na banda, mas também porque naquela semana mesmo o quinteto inglês tinha soltado um single inédito, a linda Sugar for the Pill, e as informações do aguardo disco novo, o primeiro em 22 anos.

E, bem, o show é absurdo: a banda ganha uma vida inesperada ao vivo, ainda mais se considerarmos que eles têm uma carreira pontuada por discos monótonos (tente ouvir Just for a Day, de 1991, ou Pygmalion, de 1995, sem dormir), mas felizmente o tom monocórdico não se traduz para o palco. Como indies ingleses que são, eles não se mexem muito, mas a textura do som das três guitarras, misturadas com a voz doce de Rachel Goswell e com as projeções abstratas no telão ao fundo do palco fazem com que você entenda de onde o termo “dream pop” veio.

VEJA UM TRECHO DO SHOW DO SLOWDIVE

Eles tocaram três faixas novas, duas que já estão no Spotify (Star Roving e Sugar for the Pill) e uma totalmente inédita (No Longer Making Time). Dá para perceber nas músicas a quebra em relação ao som da banda nos anos 90, porque nesta nova fase o baterista Simon Scott usa bastante bateria eletrônica. Também é verdade que o outro vocalista, Neil Halstead, tem uma voz mediana, meio corta-clima, mas ainda assim, no todo, é um show emocionante e uma prova de que uma banda pode voltar à ativa sem cheirar a naftalina. O show em São Paulo, no Balaclava Festa (em 14/5), promete.

DIA 2 

O dia começou cedo, com uma conversa na hora do almoço entre Peter Zi-novieff, um dos inventores do sintetizador, e o crítico da revista Wire Robert Barry, autor do livro recém-lançado The Music of The Future. O encontro foi no auditório do teatro Korzo, com a plateia tomando chá e café enquanto imagens dos computadores gigantes que formavam o estúdio de Zinovieff nas décadas de 60 e 70 eram projetadas no telão. Ele diz ter sido a primeira pessoa do mundo a ter um computador em casa, e seu prazer em criar música era o prazer em controlar computadores e circuitos eletrônicos.

Peter Zi-novieff, um dos inventores do sintetizador, e o crítico da revista Wire Robert Barry

O encontro serviu como uma espécie de resumo sobre o entendimento do conceito de “música” empregado pela curadoria do Rewire. Para o festival, música é algo produzido com equipamentos, que tem presença física, “uma espécie de material, não algo abstrato, no ar”, como disse Robert Barry. É eletrônico no sentido mais estrito do termo. Essas composições contam com uma matemática por trás, uma espécie de presença numérica que não há – ou há em menor escala – na música orgânica.

O segundo programa do dia foi o lançamento do livro In Situ – Den Haag Underground, com fotografias do holandês Bertus Gerssen. É um compilado de imagens preto-e-branco de festas em inferninhos, becos, porões e ambientes grafitados de toda sorte. De acordo com o texto introdutório, a ideia é mostrar o lado B da “Capital Legal do Mundo, que mais parece servir à legitimação da injustiça por virtualmente legalizar o crime do colarinho branco, corrupção em um nível tão grande que permanece longe da vista e do alcance dos cidadãos comuns”.

Na sequência, dois shows de noise de artistas americanos para fechar o dia. Os três malucos do Wolf Eyes, ícones do underground de Detroit, fizeram uma apresentação alucinógena baseada em saxofone, guitarra e vocal – chata nos primeiros 10 minutos, mas impossível de sair depois que você entrava no delírio deles.

A alva Pharmakon berrando ao microfone

A banda foi o contraponto rock para a base eletrônica e claustrofóbica da Pharmakon, uma jovem de Nova York que passa uma aparência delicada com sua pele superbranca, mas que grita no microfone em cima de uma base pré-gravada pesadíssima. As luzes vermelhas davam um clima de Inferno de Dante, e o medidor de decibéis do iPhone marcou 111, o mesmo volume de uma máquina de cortar grama.

WOLF EYES NO REWIRE

PHARMAKON NO REWIRE

DIA 3

No último dia, fui com a expectativa baixa, pois pensava ter tido as melhores experiências nos dois dias anteriores. Mas fiquei estupefato com o que vi. Primeiro, a apresentação de um músico de Bristol, Ryan Teague, na Lutherse Kerk, uma Igreja Luterana que causava uma forte impressão na entrada. Quantas vezes na vida você assiste a um show em um templo religioso construído em 1761? O palco foi montado ao fundo, embaixo do órgão, e os bancos de madeira que você normalmente encontra em uma Igreja dividiam o lugar com almofadões coloridos. A vibe lounge, mais o brilho do dia entrando pelas janelas foram o cenário ideal para o som do grupo mais orgânico e jazzy de todo o Rewire.

RYAN TEAGUE NO REWIRE

O mood contemplativo da Igreja foi o exato oposto do show com o qual fechei o festival, a mistura de techno e pós-rock do SUMS, grupo formado pelo DJ e produtor francês Kangding Ray mais o multiinstrumentista Barry Burns, do grupo escocês Mogwai.

Último e maravilhoso show: SUMS

A banda foi formada a pedido do festival de música experimental Atonal, de Berlim, e até agora só existiu fazendo um punhado de apresentações ao vivo. Naquela semana, contudo, eles haviam acabado de anunciar o auto-intitulado disco de estreia, o que deu à apresentação um caráter de première. Foi expansivo e arrebatador, com faixas de 10 minutos que começavam com elementos eletrônicos e iam incorporando camadas até atingirem o ápice sonoro que fazia o corpo vibrar.

 

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