Festival CoMA 2024: curvas, melodias e a energia feminina
Trazendo aspas de nomes como Alceu Valença, Aluminé Guerrero, Chico Chico e Criolo, Jota Wagner conta como foi a nova edição do festival brasiliense
“Eu vivo o passado, o presente e o futuro em um tempo só”, me conta Alceu Valença no camarim, a poucos minutos de entrar no palco para o show mais lotado do Festival CoMA (Consciência, Música e Arte), em Brasília, em um domingo à noite em que o cantor mostrou tanta tarimba no manuseio com o público, que faria com que os caras do Coldplay parecessem artistas iniciantes. “Adoro festival, adoro a molecada”, completa.
Alceu subiu ao palco com o jogo ganho. Era a maior atração do evento. O frio que rasgou nos dias anteriores pediu licença e saiu de fininho para não atrapalhar, e o público estava devidamente adrenalinado graças ao excelente show anterior da potente Juliana Linhares, do Rio Grande do Norte, ideal para deixar tudo na manteiga para o mais onipresente em palcos de festival dos grandes da música brasileira. Sabendo que tinha o povo na mão, o cantor fez o que quis. Mandou o público cantar sozinho, mandou ligar as lanternas do celular e alternou os grandes hits da carreira com frevos hardcore, que botaram a massa para pular. Tudo isso com voz e presença de palco impecáveis.
Apesar de ter sido o grande headliner do rolê, Valença foi apenas a cereja de um belo bolo servido pelo CoMA aos dez mil presentes que se dividiram entre dois dias de shows, sábado e domingo. A semana anterior foi tomada por um ciclo de palestras e debates, característica do evento desde sua primeira edição, e começou com um final de semana “família”, gratuito e com atrações diurnas, para envolver ainda mais a população brasiliense.
Em sua sétima edição, o festival brasiliense surgiu de uma união de sete produtores que agiam separados para fazer o “festival dos sonhos”. Locação bacana não falta. Oscar Niemeyer dizia que o que inspirava seus projetos eram as curvas das mulheres. Me parece que não. A impressão que tenho é que, ao se debruçar na prancheta, a primeira coisa que lhe vinha a cabeça era “vou fazer um troço que, daqui uns 40 anos, receba um puta festival de música”.
Afinal, os lugares públicos do renomado arquiteto parecem cair como uma luva para eventos legais. Ibirapuera, em São Paulo, o Parque Niemeyer, de Goiânia, o Museu Nacional, na mesma Brasília, e o próprio CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), onde aconteceu pela segunda vez o CoMA. Fácil trânsito entre os palcos, muitos lugares para relaxar e, claro, as safadas curvas de concreto do arquiteto fizeram do evento uma festa boa para circular, contemplar e ouvir música.
Sexta-feira: mulherada foda
A sublime fundição do tangível da arquitetura com o etéreo de um festival foi a primeira sensação que tive, ao chegar no rolê na sexta-feira à tarde, último dia do circuito de palestras, antes de perceber vários dos sinais que fazem do CoMA um evento para se prestar muita atenção. Na semana anterior, estive no também referencial HackTown para falar ao público sobre a importância em defender os festivais de médio porte brasileiros. Fui presenteado, portanto, com a visita a um rolê que corroborou com boa parte do roteiro.
Seu formato e tamanho permitem a valorização do artista local, do diferente, dos vários representantes da música brasileira que precisam e merecem ser ouvidos e conhecidos. Sacudir a lagoa e trazer à tona a areia que estava lá no fundo. E principalmente, rasgar o tecido que separa a arte do poder financeiro. Do dinheiro grosso, dos números sobre o indivíduo.
Sentadinho em um banco em frente aos palcos que, nos dias posteriores, receberiam as dezenas de artistas ansiosos por descer o sarrafo nos shows, cruzo as pernas ao lado de Monique Dardenne (WME), que havia acabado de participar da mesa de debates Liderança cooperativa: inspirando festivais mais sustentáveis, ao lado de Ana Morena (Festival DoSol, RN), Renee Chalu (Se Rasgum, PA), Fabi Bastistela (SIM São Paulo), Lenne Ferreira (Coquetel Molotov, PE), Ivana Tolotti (Tum Festival, SC), Bia Nogueira (Imune Festival, MG), Dani Jacó (Afropunk, BA), Lis Chagas (Rio2C, RJ) e Dai Dias (Bananada, GO).
Sim, eu sei que você já botou reparo. Só a mulherada foda. “O CoMA recebeu o Selo Igual [destinado a festivais que promovem a igualdade de gêneros] em três categorias: line-up, produção e técnica”, me conta Dardenne, que momentos antes dividia uma longa mesa com todas as envolvidas, no animado papo sobre “a cena”, que mistura risadas, networking e considerações sobre o futuro.
“Aqui, o que a gente percebe é que não é uma conferência ‘cara-crachá’. Não tem aquela competitividade dos outros lugares.” É a tal energia feminina, tão necessária no mundo em que vivemos, e que transpirou pela pele do Cerrado em todos os momentos.
Sábado: Mãeana, Aluminé Guerrero, Chico Chico e Criolo
A cantora carioca Mãeana abriu o palco principal, no sábado, fazendo o show em que canta João Gilberto e João Gomes. Decidiu subverter o protocolo. “Hora de cantar música de uma mulher!” Citou, então, a estapafúrdia passagem bíblica que se refere às mulheres menstruadas como “imundas”.
Soltou a voz do primeiro verso de Doce Vampiro, de Rita Lee, abriu os braços e sacou de seu vestido, até então ocultas, enormes asas de um tecido rosa cintilante, transformando-a em um ser meio borboleta meio anjo gigante, cujo efeito alucinógeno a fez flutuar por sobre o palco e o público enquanto cantava, lembrando a todos do poder feminino encarnado no símbolo da pureza celestial que, importante reiterar, sempre foi pintado como um personagem masculino nos guias de conduta religiosos. Momento mágico e fortíssimo.
“Eu nunca me senti tão segura e confortável nos bastidores de um festival de música como aqui”, me diz a argentina radicada na França Aluminé Guerrero, com quem conversei depois do show, relaxando no camarim. Ao povoar a metade do staff com garotas, 100% dos envolvidos se contaminam com o comportamento easy going durante a correria dos bastidores, livrando o ambiente das pulgas tão comuns que tornavam o ambiente hostil para uma artista mulher, que era obrigada a se blindar e, consequentemente, perder parte do que há de bom em um lugar onde tanta gente se encontra e se conhece. “Não há mais espaço para gritaria, grosseria e abuso” — me conta Michelle Cano, uma das criadoras do CoMA — “e isso não tem mais volta”.
E o sossego ambiental vai se apresentando por todo o evento. Inclusive nas entrevistas. A pequena Aluminé, prodígio musical que cresceu em família de músicos na Patagônia e que, em dado momento da vida, “decidiu que não ia querer trabalhar”, me recebe aberta, tranquila, e o papo, claro, rola mais solto e carinhoso. A artista propõe uma mistura da música eletrônica com ritmos ancestrais andinos (bem doidos, por sinal). Quando lhe pergunto sobre a mistura de linguagens aparentemente opostas, me corrige com um sorriso no rosto.
“Não acho que são opostos, não. São apenas sons, frequências. Se você reparar bem, existem sons bastante eletrônicos na natureza, e timbres bastantes naturais na música eletrônica. Para mim, são as mesmas coisas.”
Contemplar em um bom festival proporciona agradáveis surpresas. As melhores vieram do pequeno palco Fluxo, que mereceria (#ficaadica) mais estrutura e tamanho nas edições vindouras. Bons números de jazz, ska, música latina e MPB aromatizaram os ouvidos, vindos de artistas locais de exímio talento. O passeio vai além disso. Se surpreender com a quantidade de público cantando junto músicas que você sequer conhecia e ver shows incendiários de um artista que não lhe parecera tão quente ao ouvir os álbuns foram outras sensações recorrentes.
O sábado começou com Chico Chico, que deixou o palco elétrico a ponto de me dar a entrevista mais curta de minha história, com resposta monossilábicas. Cuzão? Arrogante? Bem longe disso. Cinco minutos depois, estava brincado no parquinho do festival, usando chinelo de dedos, bermuda e a sofrida camisa do Vasco da Gama. Pergunto-o se, agora no circuito dos festivais, sente saudades de tocar em botecos, com o som sofrível. “Vivo em boteco a semana inteira, cara.” E, ao questionar sobre como escolhe suas parcerias para tocar junto, coisa que gosta muito de fazer, sem querer levantei a bola para tomar o gol: “no boteco”.
Outro artista que também é figura carimbada no circuito de festivais é Criolo, a atração principal da noite de sábado. Ao contrário de Chicão, cria da Zona Sul carioca (e de onde tirou seu jeito desencanado com protocolos, como vimos), o rapper paulistano é de origem de outra zona sul, a paulista, de quebrada.
Ouvi falar de Criolo há muito tempo, décadas, em uma festa de rua em São Miguel Paulista. Como muitos, estava impressionado com o soul de Não Existe Amor Em SP, que havia acabado de sair. Por muito tempo, o cara foi porta-voz, referência de comportamento e guru para a molecada da quebrada, comum à origem que teve. Agora, fala para jovens de outras cidades, de outras classes sociais, de outra vida, em festivais Brasil afora. Queria saber como ele se sentia. E esse foi o tom da nossa conversa, em um camarim com pouca luz que, comparando à correria do backstage de um festival, mais parecia um templo budista.
Realmente, falar com os pilares do rap brasileiro tem mesmo um coeficiente religioso. O comportamento — e isso é uma das coisas mais legais do movimento — é de não tirar o pé do chão. Não se esquecer da origem humilde e, principalmente, não replicar no outro o tratamento de cima para baixo que tanto sofreram na infãncia. Criolo nao começa a entrevista sem perguntar como estou, olhar no olho e ouvir um pouco. Não é um comportamento comum.
“Quando eu comecei a escrever, foi lá no extremo sul de São Paulo, depois eu fui pro Grajaú. A gente canta nossa realidade, nosso cotidiano, nossas frustrações e sonhos, para quem estivesse perto. Às vezes, para nós mesmos” — o que pode significar um bar vazio ou o simples fato de ver, no público, seus iguais.
“Com Nó na Orelha [segundo álbum de Criolo], aconteceu uma proporção nacional, muito por conta também do talento do Manoel Benjamin e do Marcelo Cabral, e de todo um time que foi organizado. Quem me estendeu a mão, e isso eu sempre falo, foi o Ricardo [Costa], da Matilha Cultural. Se não fossem esses gênios traduzindo minhas emoções e minhas canções, nada teria acontecido.”
Dada a intro dedicada à gratidão, Criolo segue, agora, mais no rumo das minhas perguntas. “Eu não acreditava que, com 35 anos de idade, teria uma revolução dentro da minha vida. Na minha família, não tinha nada preparado para isso.” Bem, ele só não sabia, mas estava preparado, sim, como se nota na forma como se mostra a mim. Veio do cuidado da mãe e do pai.
“Mas cara, até então você não tinha o que comer, e agora tem. Então [o sucesso] me fez bem, né? Isso é forte. Depois de alguns anos, poder pagar o plano de saúde dos pais… A grande preocupação quando comecei no rap é se eu daria orgulho para os meus pais ou morreria tentando. A gente carregava alguns dogmas, algumas coisas cristalizadas. O ‘você vai morrer de fome’, ou ‘você vai morrer de bala perdida’ (fazendo questão de fazer o sinal de aspas com os dedos), ou ‘vai morrer por inanição ou por frustração’.”
“Para a música me dar condição de cuidar dos meus pais e cuidar de mim, levou um bom tempo. Sou muito grato a isso. Eu continuo fazer o que o coração pede, e acho que isso é uma das poucas coisas que eu me orgulho nessa caminhada.”
Domingo: Ana Frango Elétrico e Kirá e Anna Moura
O domingo já começou cheio, graças ao belo dia de sol modesto que terminaria com o clima supreendentemente agradável. Os trabalhos foram abertos com o show de Ana Frango Elétrico, a baixinha que é um fenomeno na música independente, responsável por fazer indie rock genuinamente brasileiro. Para quem, como eu, cresceu eu um país onde cada banda replicava quase que fielmente um artista estadunidense ou europeu, isso vale muito. Desejei, naquele momento, que estivesse vivo e ao meu lado o grande José Ramos Tinhorão, um dos mais mal-humorados críticos musicais do nosso jornalismo. Iria se regozijar com a identidade de uma garotinha que, no fim de minha jornada, dentro da van que nos levava ao aeroporto, fez quentão de se sentar ao lado do motorista para ficar batendo papo com ele, durante toda a viagem, sobre clima, roupas de frio e rinite.
Os brasilienses, embora bem-representados, não estiveram restritos ao terceiro palco. Kirá e Anna Moura mandaram muito bem, com um baita público, fazendo questão de bradar que “quem faz o corre é o artista local”. Muito bem-lembrado. Festival acontece em um final de semana. Durante o restante do ano, nas pequenas casas, nas calçadas e nas praças, quem faz o corre em troca de uma parca porcentagem da bilheteria, mostrando música nova e formando público, é mesmo a garotada do independente de cada cidade. Aqueles que normalmente veem um grande festival dando tudo de melhor para artistas de fora e esquecendo do trabalho diário que seguem fazendo.
Um dos grupos locais que mais aguardei para assistir era o Brasília Ska Jazz Club. Estava agendado para o final da tarde de domingo. Michelle Cano, no entanto, me roubou a experiência. Esse foi justamente o horário em que a produtora se viu livre da correria e me chamou ao lounge atrás do palco principal para o bate-papo. Registro aqui meu protesto. Tive de sair da frente do palco antes do primeiro “1, 2, 3, 4…” da banda e retornei justo no momento do “valeu Brasília, até a próxima!”. Mas o papo valeu a pena, e vale uma matéria especial, com a entrevista completa, onde falamos sobre o passado, o presente e o futuro do CoMA, música latina e a batalha em se fazer festival no país em que vivemos.