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Do gueto para o mundo: como o Favela Sounds amplifica vozes periféricas
Jota Wagner relata a experiência transformadora que foi a edição 2025 do rolê, fazendo dele “o festival para se ir antes de morrer”
O Brasil e o mundo vivem um momento muito interessante de reapropriação do mercado musical pelas culturas periféricas, lugar de onde toda a boa música saiu desde o início do século XX. E o Festival Favela Sounds, de Brasília, realizado no dia 15 de fevereiro no CCBB, é prova disso.
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Disco music, blues, jazz, samba, reggae, soul, funk, house… tudo saiu da quebrada, mas seu lucros sempre foram indevidamente apropriados por brancos ricos através de suas gravadoras, agências e produtoras. Na era de ouro do jazz, empresários identificavam os músicos viciados em drogas e lhes ofereciam um cachê diário para entrar em estúdio e gravar os discos que ouvimos até hoje. Para receber a grana, assinavam um contrato cedendo absolutamente todos os seus direitos. O músico saía de madrugada do trabalho apenas com a grana de sua subsistência semanal. Apenas um de milhares de exemplos históricos.
Por aqui, a revolução começou com o rap, a partir dos anos 90. Grupos como Racionais MC’s passaram a ter seus estúdios, agências de artistas e gravadoras. O ciclo econômico começava e terminava nas mãos da comunidade, em um processo replicado pela cultura do funk carioca e suas equipes de baile. Poder ao povo preto. Hoje, vemos os maiores artistas brasileiros cuidando de suas próprias carreiras, montando equipes técnicas e de produção com profissionais da mesma comunidade. E vemos também festivais com line-ups dedicados a artistas periféricos e igualdade de gêneros. O Favela Sounds, no entanto, vai mais além. Une música da quebrada de várias partes do mundo, provando que há muito mais em comum do que diferenças entre as galeras. One world.
“Por mais que haja diferença entre as culturas mundo afora, todos temos o dom de nos unir graças à música”, me conta a DJ ganense Pö, ainda adrenalizada pelo excelente set, energético, rápido e feliz, que havia acabado de tocar. “E interessante observar as diferentes ondas locais, mas ao final do dia, todos se unem para dançar. Isso é o que é tão surpreendente. É tudo diferente e, ao mesmo tempo, tão parecido.”
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Pö. Foto: Thaís Mallon/Divulgação
Além de Pö, a inglesa Jamz Supernova e a nigeriana Kem Kem ofereceram incríveis experiências musicais a quem estava presente.
“Gosto dessa coisa do DJ. É o fundamento da cultura periférica”, me conta Guilherme Tavares, organizador e curador do festival (ao lado de Amanda Bittar), no meio do publico, numa tarde quente em que a chuva botou medo, mas não apareceu. O meio da pista do Favela Sounds é ponto de encontro, ao contrário de tantos outros festivais. Antes e depois dos seus shows, a maioria dos artistas está lá, dançando no meio da galera. Pululando em clima de rave, Derek Debru, criador do Nyege Nyege, espetacular evento irmão do Favela em Uganda, botava reparo nos brasileiros do line-up. A nossa música anda em altíssima conta.
“É louco. No Reino Unido, o ‘baile funk’ está imenso. É gigante na cultura clubber underground. DJs de techno, de house, de garage, tocam faixas de funk em seus sets, às vezes utilizando só os vocais, e às vezes o ‘tchum tchum tchá'”, diz Jamz Supernova, programadora da rádio BBC e DJ das melhores, reproduzindo o som da batida com a boca, do mesmo jeito que fazemos aqui.
“Para mim, é muito louco estar aqui no Brasil e ver que a cultura não é tão grande quanto é para nós. Eu esperava ouvir funk em todos os lugares onde há música eletrônica.”
Supernova, assim como as outras gringas, tocou algumas músicas de funk brasileiro em seus sets, que foram da house e o afrobeat ao kwaito e amapiano:
“Eu não toquei tantas músicas brasileiras quanto eu queria, porque os brasileiros fazem melhor. Mas o storytelling, aqui e lá, é o mesmo. Misturar música eletrônica com brasileira, caribenha, de Angola, porque todas têm a mesma vibração”.
A forma como uma Supernova honra, humildemente, a técnica dos DJs e produtores brasileiros faz todo sentido. Os headliners do mágico sábado do Favela Sounds foram todos brasileiros. Os que levaram mais público a um rolê lotado e quente. O baiano O Kannalha, a paulistana Ajuliacosta e a potiguar Budah (dona de um show monstruoso e aclamado) eram os donos da festa, responsáveis por arrastar o público e os levar a momentos épicos na noite. O Favela Sounds e suas atividades são totalmente gratuitos, e se não bateu a lotação máxima de dez mil pessoas no sábado, chegou bem pertinho disso.
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Show de O Kannalha. Foto: Thaís Mallon/Divulgação
Parte do trabalho do evento é lidar com separação única que existe em Brasília entre centro e periferia. O sonho urbanístico de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, onde pobre e rico viveriam no mesmo bloco, com seus filhos estudando na mesma escola, deu muito errado. O plano piloto ficou restrito aos ricos, e as periferias foram arrastadas para cidades satélite, como Taguatinga, Ceilândia e Santa Maria. Para lutar contra isso, a saída foi desmembrar o festival em eventos também nas cidades vizinhas, com o Favela Talks.
“Foda-se o Plano Piloto! Aqui é DF! Eu sou da Ceilândia!”, bradou a rapper Ísis Zavlyn, enaltecendo a terra onde tudo acontece no Distrito Federal, desde os tempos dos pioneiros Câmbio Negro, na década de 90.
“Todo mundo fala que lá no Plano Piloto é onde tudo gira. Onde sempre acontecem todas as coisas. Mas não. Aqui também tem cultura, tem educação, gente como a gente que vive e existe. A gente tem de sair daqui e ir para lá trabalhar. Mas somos da Ceilândia, e as pessoas se esquecem disso”. Para vencer a distância, as cidades satélite se unem.
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Ajuliacosta. Foto: Thaís Mallon/Divulgação
“A gente se comunica, rola um circuito. [Fora do Plano Piloto], é tudo a mesma coisa”. Ísis, travesti e negra, chega à raiz do rap, com letras contundentes, precisas e uma linda presença de palco.
“A gente tem a nossa cena, mas é uma cena de artistas. A gente não tem nada além de artistas. São eventos duas vezes ao ano, e muitas vezes a gente ainda tem de ser selecionado. Como a gente está fora do eixo, complica um pouco”, contam os rappers Matuto e Rashmemo.
A falta de oportunidades faz com que a galera agarre uma com os dentes. O show dos caras foi insano, e prova o quão forte é a cena rapper da região. Ambos se apresentaram nos showcases do Favela Talks, que rolou entre os dias 11 e 14, com palestras sobre o mercado da música em lugares estratégicos, como Taguatinga e a própria Ceilândia. Ao final de cada show, um artista “grandão” para celebrar as noites, também gratuitas. Chico César, MC Luanna e Ebony foram os escalados para o circuito que tem como principal objetivo desenvolver os cenários locais, dando informação e oportunidades para seus artistas.
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Budah. Foto: Thaís Mallon/Divulgação
A carioca Ebony, por exemplo, revelação do rap nos últimos anos, bateu um papo com o público na mesma noite em que se apresentaria. “Demorou para eu entender que o preto também pode se permitir ter experiências leves”, contou a artista, que se destacou tanto pela música, quanto pela presença política nas redes sociais, que chama de “antro do Twitter”.
É com esse tipo de declaração que eu fecho o ciclo desta resenha. A frase que levei para o travesseiro. Sua fala representa muito. Não se pode baixar a guarda, mas é viver, sorrir, dançar, viajar, jantar com os amigos… Tudo isso é, também, resistência. A maturidade e a inteligência da juventude artística da quebrada é inebriante. Eles sabem de seu poder, de sua luta e seus direitos já durante seus míticos “20 e poucos anos”. As grandes sacadas pipocam durante o Favela Sounds, que arrebenta ao juntar estas mentes brilhantes em um só lugar, permitindo suas trocas.
Voltando ao sábado, um deslize cachaceiro me fez confundir a biografia de Pö. Encasquetei que ela havia estudado filosofia (na verdade era Kem Kem, aluna de Stanford após mudar-se da Nigéria para estudar).
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“Eu nunca estudei filosofia”, respondeu.
“Cacete, quebrou minha entrevista. Eu ia te perguntar qual o sentido da vida!”
Enquanto nos contorcíamos em gargalhadas, Pö mandou a braba:
“Mas você quer saber o sentido da vida? Eu te conto. Segundo Schopenhauer, a vida é somente uma ilusão, e o que conecta as ilusões de cada um é apenas o desespero e o tédio. Não sei se eu concordo com ele neste sentido, mas o que te digo é: a filosofia da vida é fazer a sua própria filosofia”.
Não tem papo ruim na quebrada. E toda esta inteligência juvenil se transforma em música, que o Favela Sounds promove há oito anos, fazendo de si próprio o festival para se ir antes de morrer. Mais do que isso, o rolê deveria circular por todas as capitais do Brasil no futuro. O país precisa disso.