
Air repete Kraftwerk e faz show histórico no C6 Fest 2025
Para Jota Wagner, nada mais será o mesmo depois da fantástica apresentação do duo francês na Arena Heineken
Durante sua passagem por São Paulo no C6 Fest 2025 tocando seu clássico álbum Moon Safari, o Air conseguiu algo que parecia impossível: se equiparar, técnica e artisticamente, à revolução promovida pelo Kraftwerk em 19 de outubro de 1998. Quem esteve na apresentação dos alemães no Jockey Club saiu com a sensação de que nada mais seria o mesmo no mundo do entretenimento. E eis que Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, em uma noite deliciosamente fria de outono, repetiram a catarse, 27 anos depois, na Arena Heineken.

Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop
As semelhanças entre as duas apresentações são muitas, por sinal. Assim como o Kraftwerk não se apresentava mais ao vivo desde 1991 e apareceu como uma luminosa surpresa no line-up do Free Jazz Festival, todos os brasileiros também achavam que jamais veriam o Air novamente ao vivo (eles já haviam vindo ao país em 2010). A noite, então, teve uma dose extra de pimenta. Ao anunciar a turnê de comemoração de 25 anos de Moon Safari, Godin e Dunckel abriram uma porta para um outro universo, em que o grupo existe e faz shows. Foi o mesmo sentimento da vinda do quarteto alemão. Algo como ver Pelé voltando aos campos de futebol, graças a uma nova tecnologia de criogênese, para apenas um jogo.
Como foi em 98, o golaço se refletiu no público, repleto de outros artistas, produtores musicais, jornalistas, famosinhos em geral e, claro, muitos fãs apaixonados. Todos estavam ali para ouvir um álbum que já rodou em suas vitrolas, CD players ou smartfones centenas, milhares de vezes. Em um álbum predominantemente eletrônico, mudanças no som e novidades na execução não são esperadas. No Free Jazz, o Kraftwerk chegou com remixes que transformaram uma apresentação de música minimalista em uma paulada techno para grandes audiências, que pulavam e gritavam como se estivessem em um show dos Beatles em 1965.
Como um excelente livro, cheio de interessantes metáforas e segredos escondidos em palavras de múltiplos significados, o Air fez o mesmo com seu Moon Safari. A dupla sabia que uma enorme parte do público conhecia o álbum tão bem como os cômodos da própria casa. E transformou o show em um daqueles sonhos recorrentes, quando nos perdemos em um lugar que conhecemos tão bem quando despertos. Uma virada a mais da bateria ali, um efeito um pouco diferente nos sintetizadores e uma leve acelerada no andamento mudou tudo, potencializado pela temperatura do público brasileiro.

Foto: @observadordaimagem/Music Non Stop
Outra similaridade entre os dois shows históricos (sim, a apresentação do último sábado já entrou para a lista de inesquecíveis) foi o impacto visual. Tocando dentro de uma caixa retangular com uma formação enxuta (Godin, Dunckel e o baterista convidado Louis Delorme), o Air passou a mensagem de que estava dentro de sua música. De que viviam para ela, como bons miolos de uma cabeça inteligente. O visual do show era algo fora de série, e certamente ficou na cabeça de todo mundo que faz música ou eventos em São Paulo. A régua subiu. Nuances de op-art, retrofurismo e a boa e velha vibe espacial que faz parte da estética da dupla conclamaram o público a uma viagem coletiva.
No som, outra lição. Os timbres de cada instrumento pincelavam o nunca ouvido. O som do baixo, em peso, pressão e ternura, jamais (ouso dizer) foi ouvido em alguma outra apresentação brasileira, e — aqui cravo com certeza — ficou anos luz de qualquer outro show do C6 Fest 2025. O mesmo pode se dizer timbres dos sintetizadores. Tudo soou perfeito sem parecer plástico, pré-fabricado, com cara de playback. Pelo contrário, havia uma naturalidade cool na execução de todas as músicas do show, que se dividiu em duas partes. A primeira, com o Moon Safari tocado de ponta à ponta, e depois uma espécie de superbis, com uma pequena porção de hits cinemáticos.
Para finalizar a conexão histórica entre as duas noites mágicas, há de se destacar a comunhão do delicioso comportamento blasé dos dois artistas. Se o Kraftwerk apostou em sua postura robótica e ainda assim transmitiu a imagem dos quatro alemães mais boa onda da música, com o Air, não foi diferente. No rosto e na performance dos três, aquela postura de “sei o que estou fazendo, e sei que faço bem”. Nós, os quentes e beijoqueiros brasileiros, adoramos.

Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop
O show do Air no C6 Fest 2025 foi um marco.