Luanda, a capital de Angola, é uma cidade com muitos sons. O barulho da ruas é uma mistura de motores, sirenes e gritos, mas a música é onipresente. Quase sempre kuduro, às vezes kizomba, em outras semba (a origem do samba) e em outras músicas antilhanas. O Atlântico Negro, teoria do sociólogo inglês Paul Gilroy, deu muitas voltas. Nestas correntes, o movimento Rastafari floresceu em Angola.
“O prefixo Ras significa cabeça. O sufixo Tafari significa criação. Rastafari significa cabeça criadora ou cabeça do criador. É um movimento humanista, filosófico e espiritual”, afirma Ras Ufolo, do coletivo Londjifolha Sound System. Eles e seus amigos são responsáveis por uma festa que celebra o reggae e o dub, geralmente no último sábado de cada mês.
Congo Democrático, Gabão e Vila Alice
A festa surgiu no dia 29 de fevereiro de 2020, ano bissexto. A cada edição um país é homenageado. O ingresso é uma pulseirinha com três fios representando a bandeira da nação em questão. Na penúltima, a homenageada foi a República Democrática do Congo e, na mais recente, a 12ª, o Gabão. Não é raro ver alguém na festa com o punho lotado de pulseiras.
No mesmo bairro que recebe o evento, a Vila Alice, fomos , eu e o diretor de fotografia William RiboDias, até o Escritório do Cabelo encontrar Ufolo. Cabeleireiro, selector e artesão em madeira, ele confecciona as placas e móveis que decoram a festa e o salão.
Na galeria de fotos de ilustres no salão, encontramos Marcus Garvey (1887-1940), Haile Selassie (1892-1975), Malcolm X (1925-1965), Bob Marley (1945-1981), Peter Tosh (1944-1987) e Fela Kuti (1938-1997). Os homenageados mudam de tempos em tempos.
Ufolo falou de cada um deles: “Marcus Mosiah Garvey, para a Rastafari philosophy, é um grande expoente porque trouxe muitas linhas que até hoje continuam a nos orientar. A ideia por exemplo de ver um Rasta num cantinho assim da cidade ou em que ponto for, fazer as suas artes com as mãos, aí conseguir o seu sustento, isso não é uma ideia qualquer”, afirma.
Ufolo: independência, liberdade, em kimbundo
“No fundo foi uma ideia de Marcus Garvey, porque Marcus Garvey disse, a tua mão tem que fazer o próprio sustento, a tua mão tem que fazer o próprio pão. Daí vem a ideia do Ufolo. Ufolo é, em uma língua regional kimbundo, falada no Norte, significa independência, liberdade, então com essa liberdade que o Garvey trouxe e profetizou para o africano. O africano de um modo geral, a mão dele tinha que fazer o próprio pão.”
“Marcus Garvey também cria a Black Star Line que ele chamou de repatriation, para fazer a repatriação dos africanos. Das Américas, da Europa. Porém, a ideia de repatriação não é propriamente na perspectiva física. Isso, ao meu entender, era saber que tu nasceste aí, mas tu és africano, não te esqueças disso, então, viva como um africano. Não cair numa ideia assim de alienação porque alienação é algo que até hoje assola a sociedade, o mundo, as pessoas. Não é bom ser alienado. Yeah, fire bomb, Babylon”.
“Temos desse lado Haile Selassie. Selassie é o expoente máximo para a Rastafari philosophy, uma orientação do black man, ou da black people. Porque Selassie põe a carta na Liga das Nações e pressiona pela descolonização dos países africanos. Colonização, no fim do dia, é injustiça e ela deve ser combatida da melhor forma possível. Hoje ela se combate não é na perspectiva violenta, de combate, é na perspectiva ideológica, mental.”
Malcolm X, a defesa dos indefesos
“Aqui temos o Malcolm X, uma força inspiradora para a consciência humana. A perspectiva do Malcolm X é em relação à opressão quanto à questão da raça, contra a raça negra. E o Malcolm X é um grande ativista e, para nós, é um grande motivo de regozijo termos pessoas para nos defender. Então, Malcolm X, toda a sua perspectiva, toda a sua ideia, toda a sua força viveu em função da defesa dos indefesos.”
Bob Marley, poeta e profeta
“Robert Nesta Marley (1945-1981), normalmente chamado Bob Marley, um dos integrantes, o vocalista da banda The Wailers, uma das bandas com maior sucesso no campo do reggae. O Bob também é uma grande inspiração para todos nós. Isso numa perspectiva mais universal, mais ampla. Integrante do Wailers, até chegar um momento em que cada um teve um seguimento, não uma separação como tal. Porque eles continuaram a trabalhar.”
“Mais lá para baixo temos Peter Tosh. Peter Tosh também vamos considerá-lo como um dos principais do Wailers porque já tinha muita orientação musical, em função da sua história, o seu percurso, era multi-instrumentista, tanto é que reza a história que a gente vai lendo também ouvindo, que o Tosh foi o mastah (master) para o Bob e deu tanta orientação ao Bob”.
Fela Kuti e o afrobeat
“Aqui mais para o lado, temos Fela Kuti, músico nigeriano, considerado o pai do afrobeat. A gente vê vídeos no YouTube, o Fela Kuti com aquele repertório, mais de 50 pessoas no palco, uma equipa vasta, pintura a representar a África. Pronto, então as músicas de Fela Kuti tinham uma mensagem muito profunda. E daí a razão para fazer parte da nossa galeria.”
A política do cabelo
Inspirado na artista, escritora e teórica Grada Kilomba, especificamente em “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano” (Cobogó), pergunto se Ufolo vê o cabelo como uma expressão política.
“É uma expressão humana. O cabelo é tua identidade, a tua força, como a força de Sansão. A ideia do cabelo, vamos ser francos em dizer. O cabelo não te torna mais ou menos. Depende da tua perspectiva. Não vou dizer que tu não és Rasta por não usar os dreads. O Rasta é tua atitude, o teu interior, o teu modo de ser, o teu modo de estar. Aquilo é que faz-te um Rasta. O cabelo é um complemento direto ou circunstancial. Para mim, depende. E o cabelo dá muito poder. Os meus dreads dão-me muito poder. E acredito que não sou o único que tem esse sentimento.”
Cabelo cresce com as ideias
Ufolo, então, fala da sua própria história. “Quando eu comecei a militar no movimento Rasta, a minha família não entendeu. Logo, esse cabelo foi um choque. Até para o pai. ‘Não, esse cabelo aqui, tal, de bandido, não quero aqui essas coisas’. Pronto, lá tive de cortar, os primeiros dreads a crescerem, tive de cortar. Quando atingi a maioridade, juntei-me a uma parceira e até hoje vivemos a nossa vida, de modo independente, e o cabelo cresce junto com as ideias.”
“É necessário que esteja tudo paralelamente a andar para não parecer, mas ser. Há muita gente aí que parece, ele tem os dreads, até é chamado pelo título, ‘Rasta, Rasta’, mas ele não tem filosofia, nem tem a atitude que se recomenda. Porque há toda uma maneira, uma estratificação, uma filosofia própria. Então, é necessário que a gente tenha a filosofia antes destas adesões do cabelo porque o cabelo aqui tem um certo impacto. Quando entra para um banco, normalmente eu ando coberto, mas quando estou descoberto e entro para um banco tem sempre aquela do pessoal estar a olhar e tal, cada um com sua maneira de ver.”
“O mais aceitável aqui hoje é desfrisar, é comprar o cabelo para por sobre a sua cabeça. Mas, não, o Rastafari diz que a gente tem uma natureza própria. Eu não posso desprezar minha natureza a abraçar a tua natureza. Cada um com seu tecido capilar. O Deus é só um, Deus é que nos cria, que nos dá essa força, e nós dá este formato. E devemos ser gratos a esta natureza, a existência. Eu acho que os dreadlocks são algo diferente, belo.”
“É preciso ser diferente, fazer a tua diferença, dentro deste panorama de pessoas iguais, com atitudes iguais, e normalmente atitudes que não levam as sociedades a um caminho que era suposto a seguir. Andamos na ideia do copy paste, do imitar, mas nunca vives a tua própria essência. Se for ver, o dreadlock é a tua essência, a tua representatividade, a tua coroa de rei. Então, quando for possível, quando tiveres luzes para te guiar, yeah, usa os dreadlocks. E quando mexes a cabeça e os locks vão acompanhando aquele movimento, representa o chicotear da Babylon, esse sistema opressor.”
Além de Ufolo, os demais integrantes do coletivo Londjifolha são Ngana Boba (toaster), Ras Pablo (selekta), Varsie (selekta e designer), Selassie Mite (organizer) e Loop Maker (selekta e designer).
África-Brasil
A África inventou a medicina, a química, a moda, a matemática, a geometria, a astronomia, a engenharia. Angola inventou o funge, o fubá, o cafuné, os kilombos (escolas de guerra). Muito da magia e da ginga brasileiras vieram do lado de cá. Mistério sempre há de pintar. Yemanjá é Kianda, funge é vatapá, moqueca é calulu. Pretos-velhos, Pombajiras e Nkisis estão sempre por aí e por aqui. Salve suas forças.