
Rebekah Del Rio e o simbolismo de David Lynch
Yasmine Evaristo explica por que a cena que imortalizou a cantora e compositora americana é tão impactante
A voz de Rebekah Del Rio, falecida no último dia 23, está profundamente ligada ao universo de David Lynch, e sua participação em Cidade dos Sonhos (2001), na qual canta sua própria música, Llorando, no Club Silêncio, é considerada uma das cenas mais emocionais e memoráveis da obra. Essa performance foi feita ao vivo em todas as tomadas. A cantora possuía uma voz potente. Além disso, era muito carismática e tinha um rosto e olhos expressivos, que dialogavam bem com a câmera, tornando-a ótima para transmitir emoções profundas através de sua performance.
A cena do Club Silencio é considerada icônica por várias razões, como a intensidade com a qual é transmitida emoção naquele momento, que é amplificada pela atmosfera do clube, e pela reação das personagens à sua apresentação. Da mesma maneira, conseguimos perceber que a passagem é um exemplo do estilo surrealista de Lynch. Como vemos em outras produções, o cineasta está desconstruindo a realidade, pois a sequência se inicia com Rebekah parecendo estar cantando ao vivo, mas em seguida nos é revelado que vemos a dublagem de uma gravação. A dicotomia proposta desconstrói a realidade do espectador e cria uma sensação de desorientação. No que devemos acreditar: na sensação de realidade e imediatismo provocada ou na materialidade de saber se tratar de uma gravação?
Filmada de forma magistral, a performance usa da combinação de close-ups, ângulos e movimentos de câmera que nos mantêm atentos a cada detalhe. Esse movimento da montagem cria uma atmosfera hipnótica que, somada à trilha sonora musical, amplifica as emoções movidas pela cena que marca uma transição importante na história e nos personagens.
Podemos encarar o momento como uma metáfora para a desconstrução da identidade e da realidade. O fato de a cantora parecer ser uma pessoa, mas ser na verdade uma gravação, nos faz questionar a autenticidade e a identidade, não apenas dela, mas também das personagens de Naomi Watts e Laura Harring. Na diegese, a plateia do clube está hipnotizada pela performance, e as personagens, hipnotizadas uma pela outra, pelas mudanças proporcionadas a partir do encontro entre elas. Do lado de fora, somos postos no mesmo lugar que as
personagens, de quem está sendo ludibriado pela narrativa, levado pelo transe proposto pelos movimentos suaves de câmera e iluminação baixa, quase como em um sonho.

Além disso, a música cantada pode ser interpretada como uma expressão de perda e saudade. A memória também é evocada na letra da canção, que lembra de um momento melhor que ficou no passado. Quando a cantora some, temos a fragmentação da identidade, o que pode simbolizar essa perda da noção de quem se é. Essas são apenas algumas das possíveis interpretações da cena. O simbolismo presente é complexo e aberto.
A combinação de visual e som na cena do Club Silencio é um exemplo de como a direção de arte e a trilha sonora podem trabalhar juntas para criar uma experiência cinematográfica inesquecível.
Mais sobre Rebekah Del Rio
Rebekah Del Rio ficou conhecida por ter uma poderosa voz acompanhada de performances que transbordavam emoções. Ela nasceu em 10 de julho de 1967, em Chula Vista, Califórnia, e despontou como promissor sucesso nos anos 1980, após ser eleita pelo periódico San Diego Union‑Tribune uma das dez melhores cantoras da época.

A cantora e compositora se mudou para Los Angeles em 1989 e posteriormente para Nashville, onde gravou seu primeiro álbum, Nobody’s Angel, que traz justamente Llorando — uma versão em espanhol de Crying, de Roy Orbison.
Além de Cidade dos Sonhos, Rebekah ainda colaborou com David Lynch em vários projetos, incluindo uma participação no episódio 10 de Twin Peaks: O Retorno (2017). Ela também trabalhou com outros artistas, como Moby, e participou de filmes como Southland Tales: O Fim do Mundo (2006), interpretando Vanessa Vera Cruz, e Sin City: A Cidade do Pecado (2005), voz adicional em canções.
Del Rio também enfrentou desafios pessoais, incluindo a perda de seu filho, Philip C. DeMars, que faleceu de câncer em 2009. Ainda assim, continuou a se apresentar e criar músicas até sua morte, em junho de 2025, aos 57 anos.
