Linn da Quebrada Linn da Quebrada – foto: divulgação

Quem é Linn da Quebrada, a artista trans que está “usando o sistema contra o sistema” no BBB 22

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Linn da Quebrada, travesti, cantora e compositora de vanguarda, atriz e personagem da 22ª edição do BBB, soube usar o sistema contra o sistema na luta pela igualdade e respeito.

Enquanto você lê este texto, boa parte das pessoas trans estão passando por dificuldades de aceitação e inclusão em suas famílias. Diariamente, essas mesmas famílias, compostas por seus pais biológicos, tios, irmãos, primos e vizinhos, se acomodam no sofá para acompanhar o reality show da Rede Globo, Big Brother Brasil.

A dificuldade em conseguir vagas de emprego é outro desafio, já que empresas são relutantes, por preconceito, em empregar transgêneros. E, como a imensa massa dos brasileiros, seus gerentes, funcionários e clientes estão também sentados no sofá, acompanhando avidamente as intrigas do BBB.

O escrivão que registra um boletim de ocorrência de um crime de homofobia também assiste ao Big Brother em suas horas de folga. Assim como a família de todos os vereadores, deputados estaduais e federais, senadores e governadores.

Aproximadamente 40 milhões de pessoas (um quinto da população brasileira) acompanham, diariamente no BBB, Linn da Quebrada, uma travesti bem-sucedida, talentosa, de fala constante, disposta a corrigir os “pequenos” deslizes que ainda se cometem ao referir-se às pessoas trans. Uma pessoa absolutamente resolvida e, para quem conhece o trabalho de Linn antes do programa, transparente em suas decisões.

Linn da Quebrada conseguiu, como ninguém, “usar o sistema contra o sistema”.

A arte sempre foi um meio de inserção de pessoas marginalizadas e uma forma de  questionar os padrões vigentes. Não foi diferente para as travestis, ainda que para isso fossem obrigadas, ao contrário de outros grupos, a percorrer corredores que passavam por estereótipos, papeis cômicos ou subterfúgios para saciar desejos reprimidos de pessoas autodenominadas “normais” (palavra que hoje em dia nem faz mais sentido).

Linn da Quebrada

foto: reprodução Instagram

Apesar da luta pela igualdade e respeito pela individualidade estarem muito longe de seu fim, já observamos nos grandes centros homens e mulheres trans exercendo funções como professores, comerciários e empreendedores. Em um futuro próximo, diretores de empresa, generais de cinco estrelas e presidentes. Não há chilique conservador que barre a ânsia pelo direito de existir, em seu sentido mais filosófico.

Lina Pereira da Silva nasceu na zona leste de São Paulo e foi criada por uma tia no interior paulista. Conforme foi se descobrindo, encontrou também um talento incomum para a composição. Seus discos são sofisticados e surpreendendo o ouvinte a toda hora. Há densidade e diversão festeira, profundidade abissal e leveza, ao mesmo tempo, em cada disco.

 

 

Linn é responsável por títulos e trocadilhos geniais em suas músicas. Que outro artista tem músicas batizadas de “Submissa do Sétimo Dia“, “I Míssil” e “Enviadescer”? Suas letras, além de um diário que apresenta importantes capítulos de suas lutas e descobertas, trazem uma riqueza poética de dar gosto, exemplo de “Quem Soul Eu”, que transcrevo abaixo, sem coragem de cortar um só verso:

 

“Há muitos que latem por poucos quilates
Dizendo que lutam, que lucram, que lacram
Usando coletes à prova de balas
Dizem que são belos, são caros
Têm carros, tem casas, têm casos sem cores
Têm máscaras caras, mais caras que quando caem
Não quebram, não cobrem, refletem a face, disfarçam a foice
Despertam a fêmea, a fome, a fama de comida, de comédia
Dizendo que gostam, que gastam, que amam
Mas que sentem muito
Que gostam, que gastam, que amam
Mas que sentem muito
Que gostam, que gastam, que amam
Mas que sentem muito
Que gostam, que gastam, que amam
Eu abro a boca, eu mostro os dentes
Eu abro a boca, eu mostro os dentes
Eu canto, eu penso, eu danço
Eu sento, eu sinto
Eu canto, eu penso, eu danço
Eu sento, eu sinto
Eu canto, eu penso, eu danço
Eu sento, eu sinto
Eu canto, eu penso, eu danço
E aqui faço
Me movo, morro e renasço feito capim que se espalha
Um pensamento cupim
Ou um vírus que contamina suas ideias
Eu voo longe, alto eu vou
Mas eu volto, longe, alto
Feito uma lenda, maldição
Um feitiço ou uma canção
Lenda, mal, lenda, maldição
Lenda, mal, lenda, maldição
Lenda, maldição, feitiço, canção
Quem sou eu? (maldição)
Muito prazer, eu sou a nova Eva
Filha das travas, obra das trevas
Não comi do fruto do que é bom e do que é mal
Mas dichavei suas folhas e fumei a sua erva
Muito prazer, a nova Eva
E eu quebrei a costela de Adão
E eu quebrei (quebrei) a costela de Adão”

Linn “quebrou a costela de Adão”

A música “Eu Matei o Júnior“, emblemática, reflete a conquista de Linn em relação à mudança do nome de batismo. Em família, Linn era o “Júnior”. Filho de alguém. Responsável pela continuidade de outro. Não mais. Lina Pereira da Silva matou, simbolicamente, é claro, o Júnior para renascer livre do que lhe foi preestabelecido no nascimento. Reconquistou a família. Em um vídeo publicado no Instagram,  recebe um beijo do pai que diz a ela, “eu te amo”.  Se uma declaração de amor dos pais cura quem não teve nenhum problema com relacionamento, imagine para uma pessoa que cresceu vítima de preconceitos e estereótipos.

 

Os dois álbuns lançados por Linn, Pajubá e Trava-Línguas, foram elogiadissimos por público e crítica. O primeiro, lançado em 2017, traz desde o título (uma referência ao dialeto usado por comunidades do camdomblé e também pela comunidade LGBTQUIA+) até as letras uma introdução ao ouvinte pela realidade de Linn. O álbum foi produzido pela produtora e DJ Badsista e traz participações da cantoras Jup do Bairro, Pepita, Liniker e Gloria Groove. Em julho de 2021 chegou ao mundo seu segundo álbum, também produzido por Badista – deste vez em colaboração com a percurssionista Dominique Vieira. Um álbum de sonoridade mais ampla, que navega da bossa nova à soul music, mais “calmo” sonoramente do que o primeiro, com pés fincados no funk e na música de pista.

RITUAIS DE SOFRIMENTO 

O principal motivo que leva alguém a acompanhar diariamente um grupo de pessoas encarceradas em uma mansão cenográfica é a curiosidade mórbida; a pornografia da violência, que faz com que desejemos ver alguém como nós cair, sofrer, ir a nocaute.  No caso da interatividade promovida pelos reality shows, como explicou magnificamente a professora drag Rita Von Hunty em seu canal, no episódio Rituais de Sofrimento, há o requinte de se ter, por regra e direito, que “matar” (eliminar) alguém do programa.

Foi esse o sentimento latente na edição do reality show no ano passado, quando a Rede Globo recrutou Karol Conka para participar do programa. O comportamento competitivo da cantora tirou completamente o foco de sua representatividade, e o que se viu nas redes sociais foi a execução sumária de Karol, tanto pelas pessoas a quem ela deveria representar quanto por aqueles que usaram seu comportamento para desqualificar a luta das mulheres negras. Em vez de iluminar uma discussão, a cantora levou os espectadores à escura e irracional caverna do ódio.

Linn da quebrada no BBB 22

Linn durante o programa BBB 22 – imagem: TV Globo

A consciência de viver com uma bandeira atrelada ao corpo desde o início da carreira fez a diferença para Linn da Quebrada. Sua participação estimula a discussão da convivência, estação de partida e chegada deste trem fetichista que é um reality show. Os outros concorrentes erram os pronomes, fazem perguntas ora inocentes, ora ofensivas sobre como coexistir com pessoas trans, e esse comportamento reverbera entre a imensa massa de gente que assiste ao programa.

Noite adentro, pais, tios, irmão, gerentes de loja, clientes, chefes de família e “cidadãos de bem” estão aprendendo que essa coexistência é muito mais simples e divertida do que poderiam supor.

Texto lido, ouça o último álbum de Linn da Quebrada, produzido por Badsista e surpreenda-se:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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