Pragatecno. A heroica história da rede de coletivos nordestina que revolucionou a cultura eletrônica na virada do milênio
Na virada do milênio uma rede de coletivos baseada nas regiões Norte e Nordeste promoveram a valorização da cibercultura local, fizeram festas, promoveram intercâmbios e lançaram uma série histórica de compilações de música. Tudo isso dando aula de contra cultura e contestação. Conheça a história do Pragatecno.
As regiões norte e nordeste do país somam mais de 5 milhões de quilômetros quadrados e 56 milhões de cabeças, cada um com dois ouvidos. Por eles entra o som de uma enorme quantidade de ritmos, tradicionais ou populares contemporâneos interligados através dos séculos por uma rica mistura social que envolve gente de todo canto. Da Europa, do Caribe (no caso dos estados mais ao norte) e de populações indígenas e africanas.
Um sistema continental com capitais e realidades distantes entre si. Sotaques, costumes, realidades próprias e, como acontece em todo o Brasil, ligações de transporte deficitárias e caras.
Distante e independente dos grandes eixos de novidades brasileiros (concentrados na região sudeste) as capitais destas duas regiões se conectaram na aurora da popularização da internet no Brasil e desenvolveram um cenário de música eletrônica completamente diferente do restante do país graças às suas realidades, dificuldades próprias mas, principalmente, ao tutano queimado por uma das mais brilhantes mentes da história da cultura dance brasileira. O jornalista, professor universitário e pensador alagoano Claudio Manoel, um dos fundadores do coletivo Pragatecno ao lado de Gil Maciel, Nasson Paulo e Henrique Gomes.
the man. the legend. the myth. Claudio Manoel
O começo de tudo em Maceió
O Pragatecno foi fundado 1998 e poucos anos depois se transformou em uma rede com núcleos espalhados por diversas capitais da região, sete coletâneas de produtores locais lançadas, centenas de festas, cursos, seminários, um e-book, dois documentários, encontros e a promoção da cultura DJ, inclusive proporcionando a circulação dos profissionais entre as cidades que atuava. A atuação do coletivo, que depois virou uma rede de coletivos, era altamente formativa. Mais DJs, mais produtores de música, mais produtores de festas, mais público.
Difundindo conteúdo que ia desde o básico, como por exemplo explicar o que é o que faz um DJ, até uma série de compilações, documentários e livros sobre o cenário local (além de uma lista de discussão que conectava festeiros da região toda), o Pragatecno não só ajudou a desenvolver o cenário clubber de diversas capitais como imprimiu a elas características bem diferentes das que amadureceram no resto do país. Norte e Nordeste tiveram um rolê muito mais social, colaborativo e principalmente, focado na música eletrônica como arte underground e experimental, própria de um cenário inclusivo, libertário e marginal.
A gentifricação da cena eletrônica está sendo discutida no mundo todo. Quando é que a música saiu da mão das minorias marginalizadas para cair nos escritórios de marketing, agências de booking e gerentes de carreira varia de país para país. Mas a pergunta mais inflamatória deste tema é: o quanto esta padronização esteriliza a verdadeira arte, a vontade de dizer algo ao mundo, ou a necessidade de mudá-lo?
Enquanto no resto do país o processo de embalagem da música eletrônica foi assistida, lá em cima ela foi discutida e contestada por Claudio Manoel e sua turma. Foi tema de seminários e encontros. Foi explicada em fanzines, manifestos e cursos.
O papel da música eletrônica na sociedade. Sua relação com o mundo enquanto experimentação artística. Seu papel de sucessor do punk como resistência cultural e o hedonismo como porta de entrada para uma consciência mais humana. Tudo isso claro, em meio à muita música, festivais e noites Norte e Nordeste afora.
Só lá em cima. E isso nos faz pensar: Um país do tamanho do Brasil não deve ter um eixo cultural só.
O começo de tudo em Maceió
Claudio Manoel sempre foi envolvido com a arte. Organizava festivais de música universitária em Maceió, se envolveu com a turma do post punk na cidade (o que obviamente foi responsável pelo download da cartilha do it yourself em sua cabeça), foi cineclubista e em 1.998 e desde sempre um grande apreciador da música experimental.
“Quando o post punk foi mostrando uma decaída estética e veio a onda grunge, que não me agradava muito, fui me voltando para a música experimental e me aproximando da música eletrônica. Comprei equipamento e comecei a tocar em casa. Comecei em 95 e dia 24 de janeiro de 1998 fizemos nossa primeira festa assinada como coletivo Pragatecno, a Groove em Garça (na Praia da Garça Torta, Maceió)” – nos conta Claudio.
Na época, Claudio Manoel era jornalista e trabalhava na editoria de cultura do jornal Tribuna de Alagoas. Trabalhou também um período no SBT local e dava aula de cultura digital na universidade. Encontrou amigos que curtiam o mesmo som e decidiram fazer festas para mostrar à galera da cidade estes novos sons. “Ficamos meio referência nesta coisa da cultura do DJ porque imediatamente criamos um site, ficamos conhecidos em todo o Norte e Nordeste. Fizemos mostras de vídeos de música eletrônica, apostilas para DJs… toda uma prática que se ampliou além da música. Promovemos um dos primeiros em Live P.A.s em Jaraguá, bairro histórico de Maceió. Dali surgiu o Sombinário“.
As coletâneas Sombinário reúnem produtores da região de atuação do Pragatecno desde uma época em que produzir música eletrônica no Brasil dava seus primeiros passos. Em gestão da oitava edição, as compilações mostraram ao Brasil um sem número de produtores da região, muitos completamente fora do radar nacional graças ao sudestocentrismo característico da cultura brazuca.
O começo de tudo, claro, é formado pela turma de amigos deslumbrados com um novo movimento cultural que mudaria o mundo. “Como todo coletivo, os agrupamentos identitários surgem a partir do afeto. Não o afeto no sentido amoroso, mas no sentido de afetação, de você se sentir afetado por determinada identidade artística, determinada cultura. E então querer encontrar pessoas que compartilham desta mesma afetação que você”.
Sempre pelo escopo do underground. De pensar o movimento a carregar caixas de som, o coletivo era envolvido em todas as etapas da produção. “apesar de conseguir pequenas notas na agenda do jornal que trabalha, fazíamos questão de divulgar as festas através da circulação de flyers e fanzines. Também sempre fizemos questão de montar projetos semanais ou mensais na cidade”.
Outro ingrediente na receita deste sururu de capote foi a relação de Claudio com aquele que foi o primeiro coletivo de música eletrônica brasileiro, o B.U.M. – Brazilian Underground Movement, encabeçados pelos DJs Péricles Sodré (in memoriam) e Halley Seidel no subúrbio carioca.
“É importante falar que tínhamos uma ligação muito importante com o B.U.M.” – conta Rodrigo Lobbão, fundador do coletivo Undergroove, hub do Pragatecno em Fortaleza e hoje um dos DJs mais importantes na história da dance music underground do Ceará – “Eles tinham um coletivo em Niterói e sei que o Cláudio se identificava muito com eles”.
Péricles chegou, inclusive a montar um núcleo do Pragatecno no Rio de Janeiro. Mas a demanda não rolou. “Nossa articulação só fazia sentido no Norte e no Nordeste” – conta Claudio, que sempre nutriu um respeito gigantesco pelo pessoal do B.U.M.
Conquistando a Bahia
Após dois anos sacudindo Maceió, Cláudio se mudou para Salvador graças a um mestrado na UFBA (escreveu a primeira dissertação sobre a cultura do DJ e a cibercultura no Brasil). O Pragatecno Salvador começou suas atividades em 2000, quando da mudança do “inquieto” Claudio Manoel. A unidade Maceió continuou viva e ativa, com o DJ Beto Farias à frente. Logo, encontros começaram ser organizados para que os DJs locais ouvissem o que tinha a dizer o buda da música eletrônica nordestina.
“Soube que estava rolando uma nova onda de música eletrônica na Bahia. Então rolou uma reunião em um shopping na Pituba, na loja de Klessius Leão, que fez um encontro de DJs em Salvador para apresentar os profissionais das antigas os novos que estavam chegando com uma nova frequência musical. Eu já estava tocando Drum´n´Bass sem mesmo saber quem era o Praga. Quando soube do coletivo, quis saber quem era. Descobri que DJs amigos estavam lá como o Môpa, Santz e conversei com eles. Fui no evento, conheci Cláudio e ele me convidou para entrar”, explica o DJ Telefunksoul, pioneiro das batidas quebradas em Salvador (e na atividade forte até hoje), que na época já tocava como convidado nas raves Soononmoon, outro importante música de divulgação da música eletrônica em Salvador, porem mais voltado para a cultura raver.
Em Salvador o Pragatecno também apostou forte em projetos ocupando os clubs. A festa Opsom por exemplo, semanal, durou dois anos na cidade sempre com casa cheia. Nesta época o Praga já se conectava com agitadores de outras cidades do Norte e Nordeste. Núcleos como Undergroove (Fortaleza), Pragatecno Paraíba, Cotonete (Belem), entre vários outros, parcialmente ou totalmente influenciados pelo Pragatecno original, formaram uma rede de colaboração, de valorização dos profissionais locais e de compartilhamento de informações acerca da cultura do DJ jamais vista antes no Brasil.
Nos anos 90, uma das mais importantes formas de se apropriar da internet para fazer evoluir uma comunidade eram as listas de e-mails. Vale explicar: você se cadastrava a um grupo, recebia um endereço de e-mail e então todas as mensagens que você enviava para este endereço eram recebidas por todos do grupo. Foi assim que a BR-Raves conseguiu reunir por exemplo, na aurora da cena eletrônica brasileira, uma bela turma de agitadores deste universo de todo o Brasil trocando informações, enriquecendo-se mutuamente compartilhando experiências ou simplesmente quebrando o pau em discussões intermináveis. Somos humanos.
A rede Pragatecno não ficou de fora. Criou sua própria lista para discutir demandas da parte de cima do país e conectou gente de todas as cidades, além de bastiões do cenário eletrônico do sudeste como Gaía Passarelli e Camilo Rocha, ambos fundadores do website Rraurl.com, indispensável fonte de notícias de música eletrônica nesta época e uma importante referência para os coletivos do Praga. Ali mais conexões se formaram e a disseminação do ideal de Claudio e sua turma ganharam reverberação.
A rede Pragatecno
Internet à mão, cena eletrônica se desenvolvendo, gente pensante coordenando o rolê e coletivos alinhados ideologicamente fazendo festas em diversas capitais. Estava formada, operante e ativa a rede Pragatecno, uma teia de produtores culturais, DJs e fazedores de música e arte conectadas a uma identidade cultural ligada ao experimentalismo, à cibercultura e, no caso específico do Praga, à manutenção da música eletrônica como divisão de contra cultura atuando no front.
O DJ João Ricardo, por exemplo, baseado em São Luiz do Maranhão, chegou junto graças às portas abertas pela Internet. “Quando eu voltei para São Luiz em 2002, depois de passar um bom tempo em São Paulo, eu ia a eventos em Fortaleza, que estava mais próximo de mim, para ver o DJ Rodrigo Lobbão, que tocava Techno lá. Nos tempos do Ceará Music. Fiz contato com ele, fiz com o Claudio na lista do Pragatecno, referência do underground aqui e assim foi… até que ele me chamou para um evento na Bahia, de três dias”. O evento em questão é o encontro de núcleos do Pragatecno apoiado pelo instituto Brasil – Alemanha, o Goethe.
O Brasil, como não poderia deixar de ser, seguiu o padrão de evolução americano e europeu no cenário (ainda não usaremos os termos “mercado” ou indústria”) eletrônico. No início só havia tédio. Eis que a insatisfação com o comercialismo formulário da música tocada nas pistas de dança aliadas a uma mãozinha dada por laboratórios farmacêuticos e uma inovação musical marginalizada que serve perfeitamente ao momento cria um big bang cultural. Algo novo. Algo esplêndido. Algo que vai, enfim, mudar o mundo. Vai acabar com a guerra, com a hipocrisia do conservadorismo, com a repressão sexual e finalmente apresentar aos seres humanos a forma mais leve, feliz e sublime de aceitar o amor.
E eis que no jardim do éden repleto de inocentes festivos, as coisas se desorganizam. Somos humanos. Este é o momento em que a reluzente maçã chamada “profissionalização” é mordida pelos que tem “visão empreendedora”. E o que era um rolê mambembe, anárquico e subversivo num porão falido underground se transforma em um universo organizador por agentes, bookers, empresas de promoção, assessores de imprensa, tour managers, diretores artísticos… A era do logotipo.
É neste momento que o Pragatecno assume sua identidade “praga”. Aquilo que se espalha. Os ideais da rede contaminaram, bixaram mesmo, o Norte e Nordeste brasileiros impregnando os atores (DJs e Produtores Culturais) dali com um anti comercialismo que simplesmente não existiu em nenhum outro lugar do Brasil.
Através do Pragatecno, estas regiões disseram “não, obrigado” ao egocentrismo imposto pelas empresas do sudeste que se apropriaram da cultura eletrônica. Mais do que isso, promoveram eventos que valorizavam a criação de um eixo próprio, onde artistas discutiam suas realidades, apoiavam artistas locais e também incluíam os códigos regionais à suas produções.
“uma das criticas que a gente recebia era estar promovendo oficinas de DJs, ou seja, criando pessoas pra competir com a gente mesmo. Mas a nossa ideia sempre foi isso. Espalhar música, que a gente amava, e para espalhar música, tínhamos que propiciar que as pessoas tivessem acesso à informação, às técnicas. Nunca foi problema pra gente fazer oficina de DJ. Nunca foi. E eu acho que este foi um dos legados. O compartilhamento do que a gente tinha, dentro do coletivo, como conhecimento. Passar adiante. No geral, eu acho que além de os coletivos funcionarem como um abrigo de experiências pessoais, existenciais… porque o artista utiliza sem saber o coletivo como um laboratório de existência mesmo. É um local efetivamente de aprendizagem. Uma coisa teria sido eu tentando uma trajetória sozinho, sem meus companheiros e companheiras, com quem troquei tanta informação, com quem foi tão bom estar junto (e como temos estado ainda). Por conta desta rede tenho amigos no Brasil todo. Do ponto de vista pessoal já é um ganho muito grande. O outro, do ponto de vista cultural e social, que é o fato de compartilhar uma cultura e informação que poderia ser outra coisa. Outra linguagem, outra sensibilidade… poderia ser cinema, poderia ser teatro… poderia ser uma produção acadêmica, entendeu… é o mesmo conceito de um grupo de pesquisa dentro de uma universidade. As pessoas estão juntas, trocam informação e compartilham conhecimento. A gente está, na verdade, fazendo uma função meio dupla: além de compartilhar arte, a gente acaba propiciando entretenimento para as pessoas. Então a gente acaba gerando espaço para que outras pessoas, que a gente nem sabe quem são, se encontrem nas festas, gostem daquele ambiente e se identifiquem. Foi assim que eu aprendi a gostar de música… através de eventos organizados por outras pessoas” – Livro de Claudio, versículo 1, capítulo 1.
A citação acima sintetiza o início, o fim e os meios do Pragatecno. E também a espinha dorsal do movimento. “O Claudio sempre foi um agregador maravilhoso pra gente. Porque ele tem todo o embasamento acadêmico… ele sempre teve uma consciência de todas as ações dele, ao mesmo tempo em que ele conseguia unir a isso a consciência artística e estética, e o respeito também à individualidade dos integrantes… ao gosto de cada um… ele nunca interferiu nisso. Além disso, havia a sua programação com a diversão. Com o hedonismo mesmo que a noite envolve. Ele sempre conseguiu equilibrar com maestria isso. O posicionamento político, regional e social. De realmente querer fazer algo que fosse marcante e diferente do que rolasse no sudeste e no sul e também fazer com que isso se decentralizasse um pouco, porque isso era fundamental pra gente”. As palavras são do DJ Benjamin Ferreira, referência nacional em discotecagem e atualmente residente em São Paulo. Benjamin, ao lado de outros atores importantes como Sâmia Batista, Jamille Pinheiro e Byanca Almeida, fundou o coletivo Cotonete, seminal difusor da cultura eletrônica no extremo norte do país e, claro, parte da rede Pragatecno (a convite de Claudio).
“O Claudio tinha esta coisa do mentor. Ele foi muito importante porque, alem de ser um cara muito inteligente, na coisa da pesquisa musical, de mostrar algo diferente dentro da música e de encontrar, dentro da música eletrônica, algo experimental e artístico… esse teor conceitual que tinha foi passado pra gente. Foi muito importante para que a gente tivesse no Undergroove, não só o coletivo de DJs, fazendo festas e oba oba. Não! Tinha que ter algo a mais. Eles faziam fanzines em Salvador, com resenhas de discos… o cara dava toques de como deveríamos nos comunicar em nosso site. Não só pra gente como para todo o Nordeste. E ele nunca se colocava como o líder. Veja que no documentário dele, ele fala algo como os coletivos não terem um líder. Todos trabalham em prol de algo, pode haver divisões de tarefas, mas não deveria ter um líder. Mas, apesar disso, lideres naturais existem. O cara não precisa dizer que é, não precisa achar que é… mas o Claudio era sim, um líder” – entrega Rodrigo Lobbão.
Mesmo tendo esfriado depois de 2005, não há como fazer a caipirinha da música eletrônica brasileira sem jogar no copo o Pragatecno. Para alguns, a epopeia capitaneada por Claudio Manoel e tantos outros heróis da resistência pode ser o limão, para outros o açúcar e para outros de outros o limão. Mas jamais, jamais o gelo.
Mais do que “estudo de caso”, os ideais do Pragatecno poderiam ser assimilados pelo “eixo” da música eletrônica brasileira. Toda identidade cultural, todo cenário, todo movimento… são uma árvore. E a arte… aquela feita com sentido, com dor, com porquê, é sua seiva. Suas raízes só se aprofundam na terra quando algo realmente significativo corre por dentro dos seus troncos. Se não, o tempo vai garantir que tudo seque.
Mas precisamos das pragas. Vale a pena assistir ao documentário produzido pela turma. A direção, claro, é de Claudio Manoel.
Site oficial do Pragatecno: http://pragatecno.wordpress.com