
Por que ícones do punk usavam símbolos nazistas nos anos 70
Que o punk-rock é antifascista, não há dúvidas. Mas será que sempre foi assim?
Há dois finais de semana, um homem vestindo uma camiseta da SS, a carniceira tropa de elite da polícia política de Hitler, foi enxotado de um festival punk em Las Vegas com empurrões, garrafadas d’água e xingamentos. O vídeo viralizou na internet e repercutiu em diversos veículos de imprensa dos Estados Unidos. “O punk sempre foi antifascista!”, gritava a galera, revoltada com a cara de pau do maluco.
Que o gênero musical é definitivamente “antifa”, ninguém tem dúvidas. Mas como explicar a fascinação com histórias e símbolos nazistas, presente em uma porção de ídolos da primeira geração do punk, como Siouxsie and the Banshees, Sex Pistols, Ramones e Dead Boys, entre tantos outros?
Por volta de 1977, a suástica passeava pelas festas em bottons, bordados e camisetas, ou em letras como “sou um soldado da infantaria nazista” (Ramones, em Today Your Love, Tomorrow the World), ou então “Belsen era um gás, ouvi dizer outro dia / Nas covas abertas onde os judeus jaziam” (Sex Pistols, Belsen Was a Gas).
A esquizofrenia poética chegou até mesmo a resvelar nos punks brasileiros. Enquanto os Garotos Podres cantaram “Führer, mein Führer / Onde está você?”, e o Ira! “Quero ver gente da minha terra, quero ver gente do meu sangue”, muita gente considerou tais letras como algo bastante distante do antifascismo. Tanto Mao, dos Garotos Podres, quanto Edgard Scandurra, do Ira!, passaram décadas tentando explicar o que queriam dizer naquela época, sem muito sucesso.
O primeiro citou que sua letra era uma ironia e crítica ao massacre palestino (e onde entra o “Führer” nesta história?). Já o Ira! chegou a comentar que, por “gente feia e ignorante”, estavam falando dos militares, apesar de terem admitido que jamais escreveriam uma letra como essa após amadurecerem. Até mesmo David Bowie, ainda preso na jaula cintilante da cocaína, mandou mal demais em 1975 defendendo que a Europa precisava de um novo Hitler e flertando com símbolos nazistas, em entrevista à revista NME.
Se hoje um nazista é expulso a tapas de um concerto punk, é porque realmente houve um imenso amadurecimento na forma como o movimento, em massa, amadureceu. A verdade é que, na metade final dos anos 70, o “pensamento punk” era um verdadeiro balaio de gatos. E coloco pensamento entre aspas porque filosofar sobre o mundo não era a predileção da grande maioria dos ídolos da primeira geração, muito jovens, e desesperados por transgredir. Faz sentido imaginar que dois integrantes dos Ramones e o empresário dos Sex Pistols eram judeus e ainda assim cantavam esses absurdos? E sim, todos eles foram obrigados a passar a vida explicando de onde vinha tamanho devaneio.
“Na época, não entendíamos o peso histórico. Só queríamos ser radicais”, contou Siouxsie Sioux à NME em 1980, anos após desfilar com uma braçadeira vermelha com a suástica em seus shows. “Não aguentávamos ouvir nossos pais se orgulhando em ter vencido a guerra e falando disso todos dias. Era para chocar a sociedade.” A explicação de um ícone do punk revela um dos fatores contextuais que trouxeram os símbolos nazistas para a moda.

Sidi Vicious, dos Sex Pistols, ostentando a suástica na camiseta. Foto: Reprodução
Quando surgiu como um grande movimento cultural na segunda metade do século XX, o punk estava cheio de jovens adeptos que se orgulhavam em ser absolutamente alienados. Uma bela ilustração é a figura de um de seus maiores rockstars, Johnny Rotten, dos Sex Pistols. Um moleque desdentado, com roupas velhas, sujas e rasgadas, babando enquanto falava e se preocupando em xingar tudo o que os velhos respeitavam. A Rainha da sua Inglaterra, a Igreja Católica, a polícia e, principalmente, os bons modos. Uma antítese da intelectualidade embandeirada pelos hippies da geração anterior, ativistas contras grandes dilemas do mundo como, vejam só, as guerras.
Como bons anti-hippies, a ideia dos punks era achar as guerras legais. Muitos usavam memorabilia de guerra, abundantes na Europa, como capacetes, coturnos, jaquetas e medalhas. E se hoje a Segunda Grande Guerra ainda é um dos mais excitantes temas da história humana, com uma infinita quantidade de livros e filmes, imagina em 1977, apenas 30 anos após seu fim. Tudo o que envolvia a geração anterior, como grandes passeatas de protesto e canções políticas, era cafona para o punks.
A violência estética, em roupas ou letras, era símbolo do punk-rock, principalmente na Inglaterra. Tachinhas, roupas de couro, coleiras e a moda BDSM, além de acessórios da segunda guerra, principalmente vindo do lado perdedor, eram orgulhosamente desfilados pelas ruas, provocando horror nos velhinhos ingleses. E como um punk não estava nem aí para os jornais, dane-se o que significavam.

Dee Dee Ramone e a modelo e atriz ícone do punk, Pamela Rooke. Foto: Danny Fields/Reprodução
O tempo passa e, com ele, a burrice. Em pouco tempo, a Inglaterra já havia sido tomada pelo movimento chamado pela imprensa musical de “pós-punk”. Letras mais inteligentes (ela existiam desde o início do punk, mas eram raras), líderes de banda mais conscientes e, claro, uma onda de rejeição à valorização do holocausto.
Bowie, apenas dois anos após sua polêmica entrevista, atribuiu os devaneios ao abuso da farinha: “foram os dias mais sombrios da minha vida. Um terror psíquico”, disse à mesma NME em 1977. Siouxsie afirmou mais tarde que “quando você cresce, percebe que há linhas que não devem ser cruzadas”. O mesmo aconteceu com a grande maioria dos ídolos punks.
A virada final na página aconteceu no começo dos anos 80, quando uma nova onda de bandas já nasceu mais consciente do que significou aquele momento histórico, principalmente ao ver que pairava no ar uma possibilidade de volta da ideologia fascista na sociedade. Foi quando nomes como Dead Kennedys, Bad Brains, Black Flag, entre outros grupos, combateram abertamente as ideos de supremacia branca dentro da música. Os punks (inclusive no Brasil) se entenderam como defensores da classe trabalhadora. Seguiam chocando, mas a indignação tinha alvo certo. A metralhadora giratória de frases ofensivas voltou ao armazém. E, 40 anos depois, nazistas são chutados para fora dos festivais de punk-rock.
