Rolou ontem a primeira das duas “difusões sonoras” de obras do francês Pierre Henry, no Auditório do Ibirapuera. As apresentações fazem parte do 42° Festival Música Nova, o mais antigo das Américas quando o assunto é música contemporânea (eletroacústica, eletrônica, concreta etc.).
Mesmo tendo sido anunciado como “Pai dos DJs” na Folha de S. Paulo, uma chamada mais superpop que a Gimenes, e o festival sendo o gratuito, o auditório estava longe de estar cheio. Tudo bem que Pierre Henry não é o RBD, mas onde estava o povo que reclama que o Brasil não tem eventos legais gratuitos, que só se fazem eventos com naming rights e o caramba? Bom, melhor pra quem foi e não pegou fila e teve ainda o luxo de escolher onde sentar.
Na platéia, várias pessoas com cara de conservatório de música e de TI. Parecia um grande encontro de fãs do “IT Crowd”, muito legal. No programa do dia 5 de setembro, estavam duas peças de autoria de Henry, porém, ele próprio, como já havia sido anunciado, não estava presente. Como bem disse alguém na platéia, “uma pena o Henry não estar aqui em persona”.
Pena mesmo. Aposto que muita gente se decepcionou ao ver um “difusor” (o aka para regente, maestro, neste tipo de espetáculo) bem mais jovem comandando a mesa de som – no lugar de Henry vieram seu filho, David Henry, além de outro fera em espacialização, Etienne Bultingaire.
A primeira peça da noite, “Labyrinhthe!”, foi escrita em 2003. Para gravá-la, Henry utilizou sons produzidos por objetos musicais que ele ganhou de presente no seu aniversário de 75 anos – cinco anos atrás. Para executá-la, um de seus discípulos, todo de preto, surgiu do palco e foi se instalar numa espécie de house mix, no meio da platéia. No palco, uma iluminação insinuante mostrava a verdadeira orquestra de Henry: 51 caixas acústicas – o programa anunciava 50, mas eu contei duas vezes! – de diversos tamanhos, indo das subgraves às agudas, instaladas de forma simétrica. No chão, eram oito subragraves e seis caixas pequenas. Sobre as subs, oito caixas de médio-grave. Suspensas bem no alto, penduradas a partir do teto, mais 15 caixas. E, no fundo, como se formassem o coro de vozes principais, mais 14 caixas, menores. Todas lindas, de cor bronze.
O show começou às 21h e pouco. Enquanto olhava praquela orquestra imóvel, pensava que meu almoço já havia vencido há várias horas. Era um barulho no palco, e outro na platéia, do meu estômago roncando. A tal da sinestesia, o transe, eu não sei se veio da música ou das alucinações com um salmão gigante, todo bezuntado de pesto de rúcula, que insistiam em me perseguir.
Fato é que as experimentações com timbres e sonoridades, amplificadas com perfeição, cada uma no seu devido perímetro de freqüência sonora, realmente fazem a gente viajar longe. Há mudanças bruscas de atmosfera, há passeios profundos que exploram determinadas regiões sonoras até o limite e há o quase silêncio. Separada por “músicas” cujos nomes são auto-explicativos (“erupção”, “fissuras”), a peça proporciona uma viagem ao centro de nós mesmos, já que não há ação nenhuma no palco – se bem que uma hora eu vi uma baguete surgindo de uma das caixas. O autor conta com a total abstração e entrega do ouvinte para concluir sua obra. E, ao longo de quase uma hora, a abstração foi profunda, sem pára-quedas e muito imaginativa. Sublime.
Depois de um intervalo que mal deu tempo de fazer xixi e de procurar em vão um mísero bebedouro – só porque o evento é de graça, não dava pra ter um puxadinho vendendo água e café? – apenas um terço do público se encorajou a encarar mais uma hora da doideira sonora.
Desta vez, porém, foi muito menos experimental e quase… bobo. A peça “Xème Remix”, de 1998, pega as nove sinfonias de Beethoven para criar o que seria a sua décima, na qual, segundo o programa, “Pierre Henry imagina o pesadelo do compositor e as alucinações auditivas que ele deve ter tido depois que ficou surdo”. Resumindo: esta era a parte pop da apresentação. Depois da execução de trechos de obras de Beethoven, viria uma espécie de remix das composições, invariavelmente com batidas pesadas e BPM acelerado, lembrando um trance, com sopros de música clássica, vozes infantis e marteladas de fundo.
Aos meus ouvidos, o resultado soou apenas caótico e pouco criativo. Pensei no que Alex, o personagem violento e irônico de “Laranja Mecânica”, teria feito se ouvisse o que Henry fez com seu Ludwig Van. Talvez iniciasse uma obra de caridade para velhinhos e fosse viver numa monastério, em castidade. Eu apenas fui pra casa com uma dor de cabeça…
PS – Agradecimentos à Marcinha Reverdosa, que me emprestou o celular para tirar a fotinho da orquestra imóvel