Paredões de caixas de som levam cultura sound system ao Centro de São Paulo no Dia Municipal do Reggae

Otávio Rodrigues
Por Otávio Rodrigues

Eram 11h da manhã de domingo, e uma galera já circulava pelo calçadão, entre alguns quilômetros de cabos, finalizando a montagem das mesas de som e dos paredões de caixas – mas paredões, mesmo! Na cultura sound, cuja devoção primordial vem expressa no nome, não se trata apenas de curtir uma boa música – no caso, reggae e suas incontáveis variantes –, mas também a potência sonora dos diferentes sound systems.

No domingo (11), quatro desses cachalotes estiveram frente a frente na av. São João, entre o prédio dos Correios e o Paço das Artes (pra ficar em apenas duas referências arquitetônicas de valor). A bordo de milhares de watts, equalizadores, divisores de frequência, câmaras de eco e outros dispositivos siderais, Reggae Arquivo, Trezeroots, África Mãe do Leão e High Public, autênticos representantes da cena, cercaram um bolo de gente com suas caixas acústicas rombudas, fazendo tremer as pedras pretas e brancas do Centrão de São Paulo.

 

FLOWER POWER 

O encontro era parte do Dia Municipal do Reggae, que na verdade é, ou deveria ser, festejado um mês antes, 11 de maio, dia da morte de Bob Marley, em 1981. Mas, data boa é a de quando sai a verba, então… Realizado pelo Fórum do Reggae, um grupo aberto que agrega músicos, produtores, jornalistas, radialistas e agentes culturais, e com apoio da Secretaria de Cultura, a celebração teve também mesas temáticas, oficinas de capoeira e de nyahbinghi (percussão tradicional rasta) e shows no Anhangabaú com as bandas Dialeto Dub, Indaiz, Damata, Vibração Sol e União Rasta, todas emergentes, então encerramento com Mato Seco, essa sim, mais conhecida. Evento bem organizado, bonito, acabou atraindo meninos e meninas, carecas e cabeludos, bondes, famílias e crianças, tudo no mais autêntico espírito paz e amor – que é, no fundo, a mensagem “revolucionária” do reggae.

ONDAS SUBSÔNICAS

Equipamentos de som, mesmo os assim mais pesados, não são exclusividade do reggae, compõem o DNA de muitos gêneros musicais, do rock ao funk, dos salões do tecno-brega no Pará aos do samba rock em São Paulo. Mas foi na Jamaica que ganharam dimensão fenomenal, seja pelo apreço que os ilhéus têm pelas frequências abaixo dos 50Hz, largamente conhecidas como supergraves, seja pela importância que esses colossos avassaladores têm no desenvolvimento e propagação da música jamaicana – ainda hoje, é nos sounds de Kingston que muitos dos grandes hits são lançados.

 

A LITURGIA 

Os maranhenses, meio sem querer, foram pioneiros na conexão sound system de índole jamaicana. Sem querer, sim, porque não copiaram: já usavam as radiolas, como são chamadas, só que tocando outros gêneros dançantes, até que o reggae virou moda por lá. Já em São Paulo e Rio, o modelo é mais ortodoxo, segue a liturgia dos sounds originais, jamaicanos e ingleses, com personagens e papéis bem marcados. Há um selector (ou selectah, no patois jamaicano), o cara que opera o som e põe os discos pra rolar. Tem o DJ, que apesar do nome atua como mestre de cerimônia, provocando a massa, e principalmente como toaster, improvisando com rimas sobre a base rítmica. Um sound reúne vários desses artistas, que em geral trabalham cooperativamente pra manter a coisa funcionando – não se pode chamar de um empreendimento muito rentável, e o que não faltam são histórias de performances feitas no amor, mesmo.

 

Naturalmente, ao redor de um sound existe uma família, um grupo de fãs, vizinhos da rua, amigos, dançarinos e dançarinas – e até a família de verdade. E como em São Paulo tudo tende a se tornar grandioso e massivo, o fenômeno dos sounds já agrega gente bastante pra inspirar o surgimento de torcidas. Assim como no futebol, tem quem siga o sound preferido em toda e qualquer gig, faça sol ou chuva. E não é difícil compreender tanto entusiasmo. Frequências supergraves não são captadas pelo ouvido humano, mas acolhidas pelo corpo, particularmente no ventre e abaixo da cintura. Sob os efeitos monstruosos de unidades de potência combinadas e o suporte de alto-falantes de 18 e até 22 polegadas, afora outros recursos, somos estremecidos de dentro pra fora em uma massagem improvável, enquanto sentimos os chakras excitados por vibrações pulsantes, resultado do que parece ser uma cápsula de vácuo ao redor do corpo, algo que se forma e se desmancha continuamente, no ritmo. Pegou?

ATROPELADO POR UMA JAMANTA

Uma estratégia consagrada é iniciar a música só com os sons agudos, o que não impede que seja logo reconhecida, arrancando aquele uhhh da galera. A maioria conhece o repertório, que pode incluir reggae clássico, dance hall, dub e tendências mais modernas e megadançantes, como steppa. E nessa hora, quando o ritmo começa apenas fritando os tweeters, muitos ali já sabem o que está por vir – e o querem, como querem! A certa altura, claro, o selectah, inclemente, solta a boiada e abre os graves de uma vez. Tive a repetida sensação de ser atropelado por uma jamanta, mas saí sem um arranhão. Em êxtase.

Nesse soundclash (encontro de sounds), a disputa era discreta. Além da amizade entre as famílias, o propósito era juntar e fortalecer. Estavam lá o mestre Stranjah, parceiro de Magrão na festa Fresh, as Sound Sisters, revelação feminina na cena, Zambol e Mc’s Phantom, DK e o veterano Xandão Cruz, entre outros que colaram, como o lendário Rica Caveman, da banda Nomad, um dos pioneiros de toda a história, e Ualê Figura, respeitado toaster da nova geração. Balada boa e referencial, servida em finíssima porcelana, das que estão ajudando muita gente a perceber a nobreza da música jamaicana e sua importância na formação da dance music contemporânea.

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