Na jukebox do bar Stonewall Inn. Conheça lendas do jazz e blues que deixaram a comunidade LGBTQIA+ mais do que orgulhosa
Em uma época em que assumir a homossexualidade configurava crime, artistas das primeiras gerações do Jazz e do Blues brilhavam nos palcos enquanto ocultavam suas relações afetivas. Conheça grandes lendas da música que são também grandes orgulhos da comunidade LGBTQIA+
Junho é época de celebração do Orgulho LGBTQIA+, foi escolhida por ser o mês em que ocorreu a Rebelião de Stonewall, em 1969, esta coluna não poderia ficar de fora destas homenagens porque sou discípula dos melhores “Johns” na história da música e portanto defensora do amor supremo e imagino todo mundo vivendo em paz. Meu amor à liberdade, unido ao amor à música vão trazer a seguir o que tocava na jukebox do lendário bar e um pouco da história de alguns músicos que tiveram coragem de assumir suas verdades.
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O som do bar Stonewall Inn
No começo da década de 1960, a relação entre pessoas do mesmo sexo era considerada crime nos Estados Unidos. Somente em 1962 alguns Estados norte americanos começaram a alterar essa lei absurda. O Stonewall Inn, era um dos mais conhecidos bares gays de Nova York e, diferente dos outros lugares, a frequência ali era grande de jovens de periferia e várias pessoas que haviam deixado suas casas, devido ao preconceito de suas famílias.
Para resumir a história, em 28 de junho, de 1969, policiais invadiram o bar e alegando a proibição na venda de bebidas alcoólicas, prendeu funcionários e agrediu frequentadores que “não estavam vestidos adequadamente”, revoltados com a extrema violência policial, a multidão fora do bar, começou a jogar pedras nas viaturas, hoje em dia isso pode soar normal, mas na época, esse confronto foi muito inédito, reza a lenda que a música não parou e eu fico imaginando o que estava tocando no meio da resistência, no filme que passa na minha cabeça, a trilha sonora é o hit de Shorty Long, Here comes the Judge, de 1968.
A partir desse dia, simpatizantes da causa e muitos que se escondiam e não tinham coragem de assumir sua sexualidade foram às ruas protestar, nos arredores do Stonewall Inn. Essas manifestações cresceram e deram origem ao que hoje conhecemos como mês do Orgulho LGBT.
Os anos 60 e a desconstrução do preconceito
Os efervescentes anos 1960 vieram para quebrar antigos costumes e pensamentos. A década da luta pelos direitos civis, da pílula anticoncepcional, do amor livre, do Woodstock, da popularização do rock’n’roll. E essa também é a década que marca o início da luta pelos direitos LGBT, nas caixas de som do Stonewall, os artistas da gravadora Motown, aberta em 1959, eram as principais vozes que embalavam as noites, Marvin Gaye, Gladys Knight, Jr Walker, Diana Ross, são alguns nomes que fizeram a trilha do nascimento de uma luta, que se espalharia pelo mundo todo. Mas a jukebox ainda contava com Sly and The Family Stone, Archie Bell & The Drells, Dusty Springfield e vários outros.
Se a gente rebobinar na história da música, é óbvio que existiam muitos músicos, cantores e cantoras que eram homossexuais, mas não era comum que assumissem. O medo de perder público, da violência, além do fato de ser crime, obrigava muitos a ficarem calados. A cantora de blues Ma Rainey, por exemplo, foi uma mulher muito à frente de seu tempo. Em plenos anos 1920, a mãe do blues, casou se duas vezes com homens, mas subverteu totalmente as normas heterossexuais, foi presa por fazer uma orgia com mulheres e teve um caso com sua protegida e colega de blues Bessie Smith. Entre as centenas de composições de Rainey, “Prove it on me blues” (1928) é uma das que fazem referência explícita aos seus casos com mulheres.
O compositor Cole Porter, criador de letras sofisticadas, foi casado por muitos e muitos anos com Linda Lee Thomas. O músico mantinha um apartamento só para festas gays. As músicas “Easy to Love”e “You’d Be So Nice To Come Home To ” são algumas das compostas para os amantes que Porter era obrigado a manter escondidos. O relacionamento dele com Linda, era de cumplicidade, muito amor e respeito, sua companheira sempre soube que ele era homossexual, há rumores de que Linda também fosse lésbica ou bissexual e que também mantinha seus casos, o casamento os blindava e dava um passaporte para os círculos sociais.
A dificuldade em se assumir abertamente
Billy Strayhorn, compositor de algumas das músicas mais conhecidas no jazz como “Take the A Train”, viveu sua homossexualidade abertamente. Infelizmente isso impediu sua projeção como músico e ele viveu a sombra de Duke Ellington. Lush Life, um standard composto por Strayhorn quando ainda era adolescente e já revelava algum “cansaço” de garotas em palavras como “seus rostos cinzentos e tristes”. A música ficou conhecida, executada pela Duke Ellington Orchestra ou nas vozes de Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald.
Billy Tipton, nasceu Dorothy Lucille Tipton, em 29 de dezembro de 1914. Começou a tocar profissionalmente na década de 1930, quando só em apresentações públicas se vestia de homem. No início da década de 1940, assumiu completamente sua identidade masculina na vida pessoal. Ficou conhecido nas décadas de 1950 a 1960. Ao longo de sua vida, manteve sigilo sobre sua sexualidade, casou-se com mulheres e adotou três filhos. O segredo de Tipton só foi revelado após sua morte.
Billie Holiday causou impacto não apenas no jazz, mas na música como um todo. Sua história é recheada de canções absurdamente belas que transcendem o tempo. No auge de sua carreira teve diversos casos com mulheres e não se importava em tornar pública sua bissexualidade. Seu caso com a atriz da Broadway Tallulah Bankhead foi um dos mais duradouros. Tallulah chegou a escrever uma carta ao diretor do FBI J. Edgar Hoover, implorando pela libertação de Billie quando ela foi injustamente acusada de porte de ópio. A acusação fazia parte da perseguição a que Holiday foi submetida por sua postura combatente e por ter usado sua voz para gritar por direitos, com a música Strange Fruit, por exemplo. Apesar de um entorno que continuamente tentava derrubá-la, o senso de justiça e postura honesta e descarada fizeram de Billie um ícone também na comunidade LGBT.
À frente de todos, Tony Jackson
Nos idos de 1890, o pianista, compositor e cantor Tony Jackson, um dos artistas mais conhecidos de Storyville, o bairro de New Orleans onde o jazz nasceu, era abertamente gay. Em um tempo em que, como você bem pode imaginar, assumir publicamente era absolutamente raro . Segundo o historiador de jazz Al Rose, Jackson era tão popular que seu jeito de se vestir pode ter influenciado os artistas que vieram a seguir, e ligas de manga, ascot, chapéu coco e um colete xadrez são realmente o que vem à mente quando imaginamos em um músico de jazz de salão. Algum tempo depois da virada do século, Jackson se muda para Chicago, onde o famoso trecho de casas noturnas da cidade, conhecido como “The Stroll”, ao que tudo indica, oferecia uma atmosfera mais inclusiva, em ambientes em que negros e brancos se reuniam para dançar jazz e homossexuais, guardadas as proporções da época, tinham mais liberdade. Lenda do ragtime Tony Jackson, nunca foi gravado. Ele faleceu em 1921, quando o recurso ainda não existia, mas influenciou músicos posteriores sem dúvida alguma e está no Hall da Fama LGBT de Chicago.
Qual a ligação entre a música e orientação sexual? O que Stonewall Inn ou The Stroll têm em comum? Clubes e salões onde as composições eram tocadas, dançadas, vividas e forneciam um espaço para as pessoas se sentirem um pouco mais livres. Artistas que compuseram canções de amor, de libertação, sentimentos que não reconhecem gênero, são almejados, vivenciados e deveriam ser aceitos com a beleza que tem.
Em um mundo onde se identificar como LGBTQIA+ continua a significar discriminação, é importante e reconfortante conhecer a história, ter orgulho dela, das personalidades e lugares que lutaram pela liberdade de poder amar quem quisessem, deveria ser simples, espero que um dia, e que esse dia seja em breve, seja.