TEXTO POR JOTA WAGNER
Começo de noite de sábado. Após consumir no meio da rua algumas cervejas compradas em botecos vizinhos ao MIS (super rock’n’roll), algumas dezenas de pessoas se ajeitam nas cadeiras do centenário prédio em Campinas. Era hora de assistir ao documentário recém-lançado Time Will Burn, de Marcos Panayotis e Otavio Souza.
Após os aplausos finais, um bate-papo aguardava o pessoal que fez o filme ao lado do ET, rockstar local. As perguntas que pipocam se misturam com depoimentos nostálgicos. E as poucos as figuras que estavam na plateia vão se revelando como peças importantes da cena roqueira que se formou na primeira metade da década de 90 e apresentou ao país uma safra gigantesca, altamente criativa e inovadora de bandas independentes brasileiras.
Bandas que já nasceram acreditando que as gravadoras eram inacessíveis para o som que compunham e fizeram da fita cassete reproduzida em casa (as demo tapes) o meio oficial de divulgação do seu som. Nessa pegada mesmo… o bom, velho e onipresente DIY.
Vinte anos depois, a história deste momento finalmente está sendo contada. Livros e documentários bastante competentes florescem e trazem à tona a epopeia de sonhos e frustrações de milhares de garotos e garotas que resolveram inventar uma nova música urbana para o país. Um movimento formado por diversas microcenas locais, cada uma com algumas grandes bandas, casas de shows e um pequeno, fiel e interessado público, conectados por uma rede de correspondência que consistia em envelopes repletos de fanzines, flyers e, como não poderia deixar de ser, fitas demo.
Time Will Burn retrata com maestria a cena que fez a cama para o sucesso estrondoso dos Raimundos e Planet Hemp logo depois. O pessoal que enfrentou o mainstream do jeito que se deve enfrentar: com desrespeito e arrogância (umas das explicações para toda uma geração de bandas que cantavam em inglês).
O documentário se concentra na história das bandas Pin UPs (ícones de Sampa), Killing Chainsaw (Piracicaba), Second Come (Rio de Janeiro) e Mickey Junkies (Osasco) e mostra como eles pegaram os cacos da cena pós-punk paulista (de Fellini, Mercenarias, Patife Band…) e botaram seu som para rolar em buracos do underground e programas de TV prafrentex. Termina falando dos festivais Juntatribo, na Unicamp, que catapultaram os Raimundos. Para os quatro protagonistas do Time Will Burn, porém, a festa estava acabando.
Trailer oficial de Time Will Burn
Onde há uma garagem, há um sonho, no entanto. Para toda uma leva de novas bandas, o Junta marcava o começo de uma era. O documentário Sem Dentes – Banguela Records e a Turma de 94, do jornalista Ricardo Alexandre (contemporâneo, testemunha ocular da coisa toda) fala do impacto sentido no mundo independente quando a mão da major Warner Music pousou sobre uma cena organizada (para ser generoso) por moleques, guitarras, fanzines, skates e baseados. Uma cena que, de certa forma, já se acostumava a andar paralelamente (independentemente) de TVs, gravadoras, rádios e grandes revistas. Banguela foi um sublabel da Warner, formado com o apoio de gente experiente na indústria, mas antenada no que acontecia no underground.
A história é contada através de entrevistas com todos os envolvidos e ênfase especial no figura do produtor musical Carlos Eduardo Miranda, observador do rise and fall de bandas e cenas desde sempre.
Trailer do documentário Sem Dentes – Banguela Records e a Turma de 94
As perguntas, mais do que as respostas, vão se sobrepondo ao assistir aos dois filmes. Seriam os Raimundos o veneno que matou uma estética cool, vanguardista e inteligente que vinha sendo construída pouco a pouco por músicos talentosos, apelando para o refrão fácil, o bom humor e a putaria? Os Mamonas Assassinas do underground? Planet Hemp, com o assunto da maconha, teria feito o mesmo? Foi a Banguela responsável em meter o funil na quantidade gigantesca de bandas e selecionar, com o olhar de uma gravadora multinacional, só o que teria o apelo mais popular possível (a velha história de capitalizar em cima de um movimento, ou moda)? Ou será que a molecada é que era amadora demais e “amarelou” quando a coisa estava prestes a ficar séria?
Nem precisa dizer que Sem Dentes é imprescindível para entender o mercado da música no Brasil.
De forma bem mais descontraída, o mesmo Ricardo Alexandre traz flashbacks divertidíssimos dos anos 90 em outro formato, mas também importante para resgatar a década: o livro Cheguei Bem a Tempo do Balco Desabar – 50 Causos e Memorias do Rock Brasileiro (1993-2008), da editora Arquipélago.
O livro já começa bem no título. O desabamento no palco do show do segundo Juntatribo (justamente porque a tribo toda quis se juntar à banda ao mesmo tempo), foi a melhor história do festival.
No entanto, cada capítulo conta uma história igualmente divertida envolvendo bandas, casas de shows , personagens que fizeram barulho na época. Serve também para contar a trajetória do próprio autor, que saiu de sua banda em Jundiaí no meio do movimento da “Seattle Brasileira” (forma com que o pessoal das bandas ironicamente chamava a cidade e que virou até projeto de gravadora, a Visite Jundiaí, a Seattle Brasileira Records), para escrever sobre música em grandes jornais até se tornar editor da revista Bizz.
Como praticamente tudo o que fala sobre a década, o sentimento geral do livro é o de coito interrompido. A sensação de algo que poderia ter sido, mas, incompreensivelmente, não foi. Parece que tudo o que aconteceu no Brasil, toda a energia depositada pelas bandas, todos os riffs tocados, acabou como um grande suicídio de Kurt Cobain. Ou uma cagada de volante de Chico Science. A sensação daquele espirro que some no caminho entre o nariz e a boca.
Outro livro incrível para entender o trabalho e a dedicação de quem tinha uma banda naqueles tempos é o Magnéticos 90 – A Geração do Rock Brasileiro Lançado em Fitas Cassete, de Gabriel Thomaz (Autoramas) e Daniel Juca, lançado pela editora Ideal.
Gabriel conta (em formato de quadrinhos, desenhados pelo Juca) sua história no rock brasiliense. As bandas que curtia, o nascimento do Little Quail And The Mad Byrds, grupo que o preparou para os Autoramas, e suas viagens pelo Brasil tocando e fazendo o que hoje é chamado de networking. Gabriel sempre foi o papa do networking, no melhor sentido que esse título pode ter.
Durante o livro, o autor aproveita para contar um pouco da história de centenas de bandas e casas de shows da época, sem sair nunca do foco principal do livro: a cultura das demo tapes. Dono de uma coleção invejável, citações e capas das mais importantes obras do rock “magnético” estão no livro.
Antes da internet, a movimentação de toda uma cena era predominantemente local. Começar a se relacionar com pessoas de outras cidades era somente o passo seguinte. Isso significa que diversas cidades tinham seu organismo próprio: bandas, casas de shows, lojas de discos e botecos ponto de encontro onde os zines, demos e flyers circulavam. Festinhas na casa dos mais inconsequentes pulverizaram a diversão durante o ano todo.
O estado de São Paulo tinha o quentíssimo “circuito caipira”, formado por Jundiaí, Campinas, Americana, Piracicaba, Sorocaba, Limeira, Santa Bábara do Oeste e esticando até Ribeirão Preto. Tudo isso além da cidade de São Paulo. Cada capital, aliás, tinha seus expoentes e vida própria. A cena carioca foi retratada pelo jornalista Leonardo Panço (da banda Soutien Xiita) em seu terceiro livro, Esporro. A pegada é a de contar os “causos” da época em que tocar, festar e ainda viver de música não parecia uma utopia absurda. Entender um pouco da poderosa cena carioca da época, com bandas que ficaram na história tanto na música quanto na energia das suas performances (o próprio Second Come, por exemplo) é indispensável. Fazer isso lendo o livro de um de seus personagens é, alem de tudo, muito divertido.
ONDE VER/COMPRAR
- Time Will Burn vai ser exibido em alguns festivais no primeiro semestre de 2018 e depois será disponibilizado nas plataformas digitais.
- Sem Dentes já percorreu o circuito nacional de documentários e agora está disponível on demand pela Net Now.
- Magnéticos 90 e Cheguei Bem A Tempo De Ver O Palco Desabar estão disponíveis nos sites das maiores livrarias. Já Esporro, pelo menos na pesquisa deste que vos escreve, só pode ser encontrado em sebos online.