
O dia em que Hermeto Pascoal esmurrou Miles Davis
Em homenagem ao eterno Hermeto Pascoal, Jota Wagner conta uma das histórias mais surrealmente hilárias da vida do Bruxo
Diferentemente do que fez a vida toda, Hermeto Pascoal deixou muita gente triste no final de semana. Tudo bem, é assim que a gente lida com a morte. O Bruxo foi um dos mais geniais artistas da história brasileira, viveu a boa vida e deixará um legado musical eterno. Foi, também, um dos caras mais generosos do meio musical.

Quando o procurei para lançar o compacto da música A Máquina do Tempo pelo projeto Colors Soundsystem (2024), que continha longos samples de sua flauta e precisava de uma autorização formal, a equipe do cara respondeu quase que instantaneamente: “Pode usar, o Hermeto não liga para essas coisas, não”. Mais tarde, fui saber que ele permite que qualquer um pegue uma de suas centenas de partituras não gravadas e as lance, sem necessidade de qualquer negociação formal. Se ele escreveu, é para cair no mundo, independentemente do artista que decidir fazê-lo.
Além de toda essa beleza humana, Pascoal também colecionou histórias divertidíssimas ao longo da vida. E uma delas foi sua estranha relação com Miles Davis. O jazzista estadunidense gravou três músicas do Bruxo e não deu-lhe os devidos créditos, registrando em seu nome. E dá-lhe mais generosidade. Hermeto não o processou, e ainda declarou à Folha de São Paulo: “Como eu tinha minha amizade com ele, não liguei para isso — e ele também não ligou”, completando que o músico ajudou a abrir portas internacionais em sua carreira.
A boa onda de Hermeto em relação a Miles pode ter também um tantinho de culpa, após o brasileiro surrar o “amigo” em uma lota de boxe. Essa história está contada para o meu livro Parece Piada, Mas é Música, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2026. Conheça um pouco dessa noite surreal!

O dia em que Hermeto Pascoal esmurrou Miles Davis
De todas as figuras carimbadas da música, o Bruxo Hermeto Pascoal, nosso amado cruzamento de Papai Noel com Lampião, é o cara que qualquer pessoa boa onda adoraria receber para jantar. O homem tem uma impressionante rapidez mental, verbal, musical. Compositor ávido, simplesmente deixa disponível as partituras das suas músicas não aproveitadas para qualquer um gravar, sem precisar nem mesmo de autorização prévia dos filhos, que hoje tomam conta da montanha de criações do bom (e doido) velhinho.
Não para de falar quando precisa, a ponto de suas entrevistas se tornarem infindáveis e hilários bate-papos. Também não sai do palco quando deve. Quando tocou no mítico Festival de Águas Claras, em 1981, a banda que tocaria depois dele simplesmente teve de adiar o show para a noite seguinte. O motivo? Hermeto mandou seus músicos para o camarim, sentou-se na frente do palco e desceu a boca em sua flautinha até o Sol nascer, na frente de um público tão maravilhado quanto exausto.
Respeitado no mundo inteiro, foi justamente com a maior lenda da história do jazz, o excêntrico Miles Davis, que Hermeto protagonizou o mais surreal causo de sua carreira. Em uma noite que começou com o “Crazy Albino” dando um toco em Miles, achando que estava tomando uma cantada, e terminou com um cruzado muito bem dado na boca. Assim, na zoeira.

Hermeto Pascoal estava na fila para entrar em um show do Airto Moreira em Nova Iorque. Sentiu um toque nas costas, se virou e viu um carinha de cabelos encaracolados falando com ele feito uma matraca. Era Davis, que faria uma participação no show de Airto.
Sem entender patavina nenhuma, já que o gênio algodão-dôcico da música brasileira não falava, não fala e nunca falará inglês, Hermeto destratou o papa do jazz. “Achei que ele era gay”, comentou em diversas entrevistas que deu sobre o caso.
O mal-entendido foi resolvido no camarim, depois do show, com a ajuda do tradutor Airto. Trocaram afagos e elogios mútuos sobre a música um do outro, até que Davis convidou todo mundo para um after em sua casa, “elegantíssima”, segundo o próprio Hermeto.

No rolê, Miles Davis passou a noite alugando o pobre gênio brasileiro, no que parecia ser uma espécie de ritual de iniciação. Ficava tocando notas no seu trompete e intimando o brasileiro a dizer qual era, na intenção de comprovar que Hermeto Pascoal tinha ouvido absoluto.
A azucrinação seguiu noite adentro, até que Miles começou a falar de boxe. Descreveu sua paixão pelo esporte e, pasmem, avisou que tinha um ringue em casa. Queria que o “amigo” Pascoal lutasse com ele. Quando viu que o desafio não era brincadeira, Hermeto tirou a camisa, vestiu luvas emprestadas e pulou as cordas, pronto para o combate do século.
O que Miles Davis não sabia, é que o alvo e elétrico multi-instrumentista guardava no bolso dois trunfos: teve aulas de boxe durante toda a sua juventude, e era dono de um par de olhos de camaleão. “Meus olhos têm vida própria. Enquanto o direito ficava fixo no olhar dele, o esquerdo estava mirado nos movimentos do seu corpo”, conta o mão de ferro. Na primeira mancada de Davis, fez-se a profecia. Hermeto mandou-lhe um cruzado, uma martelada, um quebra-queixo, bem no meio da fuça.

A luta terminou, e a amizade entre os dois durou para sempre.
Ah! Quem apelidou Hermeto Pascoal de “Crazy Albino” foi Miles Davis.