Nova DJ preferida de artistas pop, a americana The Blessed Madonna comemora mais mulheres no mercado
Poucos DJs podem bater no peito e dizer que são adorados tanto no universo do pop quanto no underground. Sobretudo na música eletrônica, a coisa funciona assim: música que toca no rádio não serve para tocar numa pista de dança “séria”. E vice-versa (dificilmente você vai ouvir uma faixa de Detroit techno tocando na Jovem Pan, por exemplo). Mas a vida ensinou à DJ, produtora musical e dona de gravadora Marea Stamper que verdades absolutas são feitas de açúcar e derretem com o mero vapor de uma pista recheada de dançarinos felizes.
Acho que, se você ouvir 100 sets meus ao longo dos últimos 10 anos, vai ver que o existe de consistência neles é brincar com o pop dançante e com a forma como ele interage com a música underground. Frankie Knuckles fez isso, Pet Shop Boys fez isso, Masters at Work fez muito isso. Sylvester foi um artista pop, Donna Summer também. Para alguns de nós, estar no pop e no underground ao mesmo tempo não gera grandes confusões.
A frase, que separa artistas e Artistas da dance music, foi proferida por Marea, nome verdadeiro da americana nascida em Louisville, Kentucky, The Blessed Madonna, durante passagem-relâmpago pelo Brasil no início de novembro para tocar no evento de lançamento da plataforma Green Your City, da cerveja Heineken, na Praça Victor Civita, em São Paulo.
Super-receptiva e animada, ela me recebeu em seu camarim momentos antes de subir ao palco e fazer (mais) um set com equilíbrio perfeito entre faixas antigas com cara de novas e faixas novas com ar de vintage. Com mais de 10 anos de estrada como uma DJ de muito sucesso internacionalmente, The Blessed Madonna, mesmo que mais presente no universo dos festivais e clubs mais conceituais, vem chamando a atenção de gente graúda do pop. Um desses nomes a se encantar por Marea foi Dua Lipa, que, durante a pandemia, a convidou para remixar seu álbum Future Nostalgia. Em agosto de 2020, depois de meses enfiada em seu estúdio em casa, The Blessed Madonna lançou com o Dua Lipa o álbum Club Future Nostalgia, com participações de Mark Ronson, Moodymann, Paul Woolford, Midland, Jayda G e Masters at Work. Foi o começo de uma mudança radical em sua vida.
Aos 44 anos, Marea não tem medo de mudanças. Prova disso é seu nome de DJ, que ela mesma mudou de Black Madonna para The Blessed Madonna, por conta de “controvérsia, confusão, dor e frustração” que o nome vinha gerando. “Todos nós temos a responsabilidade de tentar criar mudanças positivas de qualquer maneira que pudermos”, argumentou quando anunciou a nova alcunha, em julho de 2020, logo após a morte de George Floyd e o início do movimento Black Lives Matter.
Novamente de mãos dadas com Dua Lipa, só que desta vez com outro gigante do pop, Elton John, The Blessed Madonna foi alçada ao olímpo das paradas de sucesso como uma das remixers do mega-hit Cold Heart. A música é um mashup de antigas canções de Elton John que foi parar no número 1 das paradas, com participação vocal de Dua Lipa e remixes de DJs, entre eles, a nossa Marea.
E ainda vem mais pela frente: para 2022, Marea promete um álbum explosivo de faixas autorais com participações de produtores de música pop com “p” maiúsculo, como Paul Epworth, produtor de artistas como Adele. Se ela está com medo? Deu para sentir que não! Bora ler como foi esse papo ouvindo um dos episódios de We Still Believe, seu finado programa de rádio no Mixcloud (não fique triste, atualmente ela mantém um programa na BBC 6, para ouvir é só clicar aqui).
Music Non Stop – Uma coisa que eu acho muito incrível no seu trabalho é que você não só apoia a luta contra racismo, homofobia, entre outras, mas você é muito ativa no combate. Como e quando isso começou?
The Blessed Madonna – Meus avós maternos eram ativistas de Direitos Civis nos Estados Unidos durante o governo Jim Crow. E isso sempre foi esperado na minha família, sermos antirracistas. Mas quando você começa a adentrar as estruturas de poder no universo da música, quando você se torna testemunha dessa estrutura, tudo ganha mais importância. Se você ama pessoas pretas, pessoas que não são brancas, o que você precisa fazer é mostrar o que quer mudanças. Se você está numa posição em que pode escolher line-ups, tomar decisões, você precisar tomar as decisões certas. Eu amo muitas pessoas pretas na minha vida, então sinto o medo que eles sentem. Se você nasceu uma pessoa branca dos EUA, com certeza a probabilidade de você errar nesse ponto é enorme, então você tem que fazer de tudo para acertar.
Music Non Stop – Estava ouvindo o seu programa We Still Believe no Mixcloud e ouvi um especial sobre Ron Hardy. Você acha que esses ídolos de Chicago são menos conhecidos do que deveriam?
The Blessed Madonna – São duas coisas ao mesmo tempo, se você já viveu em Chicago você sente uma proximidade com essas lendas, mas muitos deles estão tocando por trocados ou então trabalhando num restaurante, sem nenhum reconhecimento. Mas ao mesmo tempo também tem uma overdose sobre esse tema, das lendas, de um jeito que elas são colocadas num sarcófago. House music não é como vinho, precisa estar viva, mudando. Temos muitos artistas jovens que estão detonando! Algumas lendas ficaram realmente paradas no tempo, enquanto, por outro lado, lá também tem muita gente jovem com muito talento que merece espaço!
Music Non Stop – Como você consegue se manter informada com tanta música por aí?
The Blessed Madonna – Tenho muita sorte que muita gente me manda música, é só uma questão de arrumar tempo pra ouvir todos os promos que recebe. E eu ouço! Sou uma consumidora e amante de música, também busco dicas de pessoas com que estou trabalhando no estúdio. Essa turma sempre me mostra “novas” músicas, seja da Aretha Franklin ou de alguém que fez uma música ontem!
Music Non Stop – Como você encontra as “novas” velhas músicas que você sempre coloca nos seus sets?
The Blessed Madonna – É isso, tenho sorte de trabalhar com pessoas incríveis que me mostram discos que às vezes passaram batido por mim. Claro que você pode se perder no buraco negro do “crate digging” (comprar discos de vinil) e nunca mais sair! Eu mesma tenho mais de 10.000 discos em casa e teria muito mais se eu não viajasse tanto.
Music Non Stop – E como está sendo voltar a viajar?
The Blessed Madonna – No geral tem sido bom, mas é importante não mentir sobre o fato de que é bem complexo também. Acho que muitos de nós que estávamos acostumados a sempre viajar percebemos que é muito bom ficar em casa também, é bom dormir em casa, sabe? Tenho cachorros, um marido, amo nossa vida juntos. Eu tinha aceitado a solidão, que é parte desse trabalho, mas acho que precisamos nos afastar do fato de não nos sentirmos gratos por ter a possibilidade de fazer nosso trabalho na música, pois há muitas partes que não são nada glamurosas. Precisamos entender que na nossa profissão há muitos problemas de saúde mental, passei por maus bocados já, fiz anos de terapia. Então quando as eventos voltaram, percebi que teria que dosar muito bem a minha volta, fazer escolhas. Isso depende de mim, somente.
Music Non Stop – Você vai viajar menos?
The Blessed Madonna – Sim! Também porque estou compondo bastante agora. Durante a pandemia eu assinei um contrato com a WarnerBrothers, comecei a compor para artistas pop…
Music Non Stop – Tipo Elton John, Dua Lipa…
The Blessed Madonna – Mas não somente remixes, agora estou realmente compondo com nomes grandes. Coisas que não foram lançadas ainda, mas estou basicamente trabalhando nisso de segunda a sexta 10 horas por dia. Tenho feito imersões de composição, estou amando. Tenho composto com muita gente incrível.
Music Non Stop – Como você consegue transitar tão bem do underground ao pop?
The Blessed Madonna – Acho que, se você ouvir 100 sets meus ao longo dos últimos 10 anos, vai ver que o existe de consistência neles é brincar com o pop, com o pop dançante, e a forma como ele interage com a música underground. Frankie Knuckles fez isso, Pet Shop Boys fez isso, Masters at Work fez muito isso. Sylvester foi um artista pop, Donna Summer também. Para alguns de nós, estar no pop e no underground não é uma confusão.
Music Non Stop – Moroder também!
The Blessed Madonna – Moroder foi uma inspiração pra mim nesse sentido. Ele fez tanta coisa que quebrou paradigmas e ao mesmo tempo fez tanta coisa pop e circulou por tantas áreas! As pessoas com quem estou trabalhando no dia-a-dia têm me ensinado muito sobre isso. Tenho também passeado muito entre gêneros. Tenho inclusive escrito letras para artistas pop. Um exemplo disso é que estou trabalhando com Paul Epworth, que já produziu Adele, e estamos fazendo disco music underground.
Music Non Stop – Você acha que foi a disco music que te ensinou a ter essa flexibilidade?
The Blessed Madonna – Sim! Se você olhar a evolução da Salsoul, algumas coisa da Filadélfia, essas coisas eram super underground, mas, por outro lado, você tem Teddy Pendergrass ou (a faixa) Don’t Leave Me This Way, coisas que foram um estouro. Estou mirando bem no meio, quero fazer um disco que, se for tocado no piano, sem toda a produção luxuosa, mesmo assim ele vai soar fantástico. E tive a enorme sorte de ter sido abraçada por um monte de produtores que eu admiro muito. Todo dia tem sido uma pós-graduação em Música com esses gigantes. Foi um insight do tipo ‘eu vou precisar aprender a fazer isso’, ter um trabalho que me possibilitasse trabalhar de dia e ganhar dinheiro, eu cuido dos meus pais e tal. O projeto com Dua Lipa foi o que começou tudo isso.
Music Non Stop – Você acha que vai ser mais produtora e menos DJ daqui pra frente?
The Blessed Madonna – Sim! Especialmente quando o meu álbum sair, acho que provavelmente vamos ter uma versão de show com as pessoas que estão participando.
Music Non Stop – E quando sai o disco?
The Blessed Madonna – Ano que vem! Estou nos finalmentes, tenho que terminar logo mais. Não sei quando vou terminar, mas acho que daqui a pouco os caras da Warner vão aparecer no estúdio cobrando (risos). Eles são ótimos, mas estou trabalhando no disco há três anos, então…
Music Non Stop – Então durante a pandemia você trabalhou remotamente com os colaboradores?
The Blessed Madonna – Sim, basicamente via zoom. Mas foi incrível. Estou realmente focada em fazer o disco perfeito.
Music Non Stop – Você é uma super radialista! Adoro seus programas! Tudo o que você fala é improviso?
The Blessed Madonna – Não! De jeito nenhum. Tenho os mesmos roteiristas do Pete Tong, da Annie Mac. Agora na BBC 6 estou com eles. Então levamos o conceito do We Still Believe (programa que ela fez no Mixcloud durante a pandemia) para a BCC. E o programa está indo superbem! Estou me divertindo muito, tipo para o Halloween me transformei na Cursed Madonna. O programa é todo sobre investigar música e me divertir.
Music Non Stop – Você acha que o mercado está mudando, as mulheres estão ganhando protagonismo no mercado da música?
The Blessed Madonna – Esse é um jeito interessante de dizer, “ganhando protagonismo”. Vou usar e te dar crédito (risos). Acho que sim! Se você olhar os line-ups você vai ver muito mais mulheres. Por muito tempo só tinha Monika Kruise, Honey Dijon…
Music Non Stop – Elle Allien…
The Blessed Madonna – Sim, Ellen, uma guerreira maravilhosa!! Bom, eu faço parte do início de uma mudança, com mais mulheres! Hoje já existe uma nova geração, com DJs fenomenais! Antes parece que tinha uma cota, eles sempre colocavam apenas uma mulher e um cara mais velho! Está mudando sim. Mas se você me perguntar se as mulheres estão ganhando mais? Não sei se as mudanças estruturais estão acontecendo na rapidez que deveriam. Tipo o que uma mulher DJ faz quando tem um filho? Se ferra, basicamente. Então ainda existe muita coisa pra melhorar, mas realmente estamos melhorando demais. Nos anos 90 era horrível. As mulheres que viveram aquela década são soldadas. Ellen é uma gigante. Honey Dijon também. Heather, Minxs, que começou a discotecar nos anos 80. Grandes heroínas. Agora em todos os estilos musicais você terá pelo menos uma mulher no topo daquele gênero. As mulheres estão sendo headliners e isso é uma mudança maravilhosa! Vamos esperar que isso só melhore, porque você sabe que sempre há como retroceder!! Não quero ser pessimista, só odeio homens! Bricandeira (risos).