De uma canção chamada São Paulo ao reconhecimento mundial, guitarrista lendário celebra sua carreira de meio século
O primeiro compacto lançado pelo Chic, em 1977, traz no lado B uma canção chamada São Paulo (assim mesmo, com til). Foi escrita depois que Bernard Edwards, fundador da banda ao lado de Nile Rodgers, visitou o Brasil. Conheceu as praias, o Carnaval carioca, mas se encantou mesmo pelos paulistanos. Uma baladona funky que começa com barulho do mar, um apito de mestre de bateria e tem uma vibe regada na estética de brasileiros como Cassiano e Eumir Deodato, entregando que ele também ouviu nossa música.
São Paulo é a música predileta de Nile Rodgers da era Chic. Edwards não está mais entre nós. Faleceu no Japão, durante uma turnê em 1996, aos 43 anos. Rodgers o tem, até hoje, como sua maior influência musical. O guitarrista multitarefa, que além de uma das maiores bandas da história trabalhou com nomes como Madonna, David Bowie e Daft Punk, será uma das principais atrações do C6 Fest 2025, agora se apresentando como Nile Rodgers & Chic.
O que veremos no palco dia 25 de maio será uma biografia contada em forma de música, tocada por um dos maiores guitarristas de todos os tempos. E que biografia! A história de Nile Rodgers tem tantas nuances e dramas que será um calvário concentrá-la em duas horas de show. Quando montou o grupo, ele e Bernard já eram tarimbados músicos de estúdio e de apoio a outros artistas em cima do palco. Tanto que, desde que começaram a fazer música até o momento em que conseguiram um contrato com a Atlantic Records para lançarem seu primeiro single, foram necessários sete anos de batalha.
Outra personagem estará presente (em espírito) no show de maio em São Paulo. Alfa Anderson, cantora que assumiu os vocais de apoio do Chic logo após a saída da cantora original, Norma Jean Wright (lá em 1978), faleceu há menos de um mês, em dezembro de 2024, aos 77 anos. Certamente, Rodgers e a banda se lembrarão da amiga, em sua homenagem.
Nile viveu uma vida louca, que serviu como referência para o que fez na música. Tanto que o Chic foi considerado a “banda de rock que a disco music precisava”. Filho de boêmios usuários de heroína, começou a usar drogas ainda garoto. “A heroína era a droga sofisticada entre os negros, que achavam cafona usar álcool ou marijuana. Para meus pais, era a coisa a se fazer”, contou o músico durante palestra na Red Bull Music Academy de Madri em 2011. Seus pais andavam entre os artistas de Nova Iorque, especialmente do jazz, principalmente depois que começaram a revender a droga no circuito hipster da cidade.
Mas que história é essa de banda de rock que a disco precisava? Pois é. Desde o começo, Nile Rodgers se considerava um hipster. Ele queria levar para a disco influências do rock europeu e até mesmo da banda de hard rock espetaculosa Kiss, coisas que gostava e ouvia. Se refere aos primeiros anos do Chic como “sophisto-funk”, um funk sofisticado. Desde adolescente, era ligado na alta culinária, a ponto de declarar que passou anos no combo “cocaína, caviar e vinho”. Desde 1994, no entanto, está sóbrio, após tocar chapado em uma festa na casa de Madonna e, no dia seguinte, assistir à gravação em que se viu tocando de forma horrível. Hoje é um grande defensor dos cuidados com a saúde física e mental. Levando em conta sua história, seus hábitos, influências e sua música, Chic foi um nome mais do que apropriado para a banda que o levou ao estrelato.
Apesar de ser o responsável por sucessos gigantescos nas festas de disco music, como Le Freak e Good Times, Rodgers sempre considerou seu trabalho (e realmente é) muito mais do que disco. Uma banda funk e soul de primeira. Tanto que recusou-se a trabalhar, no auge do hype, com Aretha Franklin por um motivo inusitado: “Nós dissemos ‘não’ porque não queríamos ser a banda que levaria Aretha para a disco music”, contou ao jornal The Guardian, em 2014.
Isso não significa que a banda não sofreu no histórico dia em que o fascismo invadiu o mundo da música. A infame Disco Demolition Night. Uma noite em que milhares de discos de vinil, inflamados pelo radialista Steve Dahl, foram queimados durante o intervalo de um jogo de baseball no estádio Comiskey Park, em Chicago (justo Chicago!). Na montanha de discos hereges destruídos, estavam muitos do Chic. O episódio estigmatizou Rodgers como um dos arquitetos daquele gênero musical. Hoje, é unânime o absurdo daquela noite, mas por alguns anos, lhe custou a agenda de trabalho.
Fazendo uma analogia com uma luta de boxe, a Disco Demolition Night foi um soco que levou a disco music ao chão. O juiz abriu a contagem, mas ela se levantou, voltou para a briga e, alguns rounds depois, venceu Steve Dahl por nocaute, entrando para a história como a grande vencedora. Nile Rodgers, no entanto, foi um dos que sentiu forte a porrada no queixo.
Sua vingança veio através da música. A disco passou a ser influência no trabalho de muita gente da música pop (tendência que perdura até hoje, para castigo eterno de Steve Dahl), e Nile passou a ser chamado para colaborar nos discos dos maiores nomes da música. Só que o cara não se contentava em apenas chegar no estúdio e plugar sua guitarra no amplificador. Dava tanto pitaco que logo estava sendo promovido a produtor. “Let’s Dance é um disco metade meu, metade do Bowie”, explica.
O fantástico álbum de 1983 de David Bowie (Rodgers ainda produziria Tonight, em 1984, e Never Let Me Down, em 1987) foi o responsável por colocar as carreiras do produtor e do artista novamente em velocidade de cruzeiro. O guitarrista estava saindo da ressaca da demonização da disco, e David precisava ajustar a rota de sua vida profissional. Quando começaram a trabalhar em Let’s Dance, David Bowie estava até mesmo sem uma gravadora interessada em seu futuro. O resultado? Um dos maiores clássicos da discografia do Camaleão do Rock, e a dupla levou o Grammy pelo álbum do ano. Em 1984, foi a vez de Rodgers emprestar seu talento a Like a Virgin, da Madonna. Mais um Grammy para colocar na estante.
A lista de artistas que bateram na porta de Rodgers ilustra seu talento e importância na música, bem como sua influência, desde o começo da carreira, para além da black music. Donna Summer, INXS, Duran Duran, Coldplay, Beyoncé e, claro, Daft Punk.
Quando a dupla francesa se escondeu da mídia para produzir seu álbum definitivo, Random Access Memories (2013), não teve dúvida: Nile Rodgers tinha que estar com eles. E o mundo todo dançou Get Lucky — da festa mais hipster de Nova Iorque ao casamento em Ribeirão Preto. Um hit mundial no qual os riffs de guitarra do fundador do Chic foram primordiais. E de quebra, levou mais um Grammy para casa.
Toda essa história, cheia do rise and fall na vida pessoal, mas com apenas “rises” na música, faz com que a apresentação de Nile Rodgers & Chic no C6 Fest 2025 seja esperada com ansiedade. Tá todo mundo contando os minutos para o domingo, 25 de maio. Tá todo mundo pensando como é que o maluco vai fazer para sintetizar toda esta gigantesca vivência em um show com começo, meio e (infelizmente desde já) fim. Um ciclo contado desde a viagem de Bernard Edwards a São Paulo dos anos 70 até a apresentação de Rodgers na mesma cidade, meio século depois.
Uma vida em música. E que vida! E que música!