Fundado em 2016, selo/núcleo brasiliense vem tendo cada vez mais destaque no universo das baixas frequências
Toda cidade ajuda a moldar muito do que somos e fazemos, especialmente quando criamos. Seja pelos seus ruídos, ritmos ou relevos, cada aglomeração urbana modula sentimentos e mostra novos horizontes na mesma medida em que mata sonhos e mobiliza anseios. De todas as formas artísticas que criamos nesses lugares, a música parece ter o poder de melhor expressar as agruras e alegrias que vivemos neles. Por isso mesmo, uma gravadora acaba por tornar-se não apenas o principal coletor e condutor de todas essas energias criativas e afetivas que animam a juventude desses aglomerados populacionais, mas especialmente difusores globais das musicalidades consumidas e produzidas neles.
Pensando nestes termos, o que poderia surgir de uma metrópole como Brasília? Qual a sonoridade estimulada por uma imensa laje de concreto instalada em meio ao Cerrado brasileiro, concebida para ser o cerne burocrático do país? E mais importante ainda: quais projetos tal ambiente de distanciamento interpessoal e a perspectiva de “utopia derrotada” que caracterizam essa cidade fomentam? A resposta mais autêntica que temos no presente momento é o que a Nice & Deadly vem fazendo.
Uma plataforma artística idealizada por um grupo de crias da capital federal que encontrou no amor compartilhado pelos mais diversos gêneros musicais baseados em emissões de baixas frequências e bases fraturadas, um rico substrato inventivo. Alimentados por uma farta mistura que inclui dub, jungle, dubstep, juke, dancehall, footwork, grime, UK garage e todos os demais aparentados que florescerem de modo especialmente vigoroso em territórios urbanos pelo mundo afora, os projetos do coletivo ganharam considerável projeção global num curto espaço de tempo. De 2016 pra cá, são mais de 20 lançamentos, incluindo criações de artistas como RHR, CRAZED (BR), Static Structures (Escócia/Austrália) e Philo (Alemanha).
Mas grande parte deste apelo vem do fato de que a Nice & Deadly é profundamente enraizada em sua cidade natal, e cada parte de sua identidade revela esta conexão. A unidade estilística ao redor desses gêneros não é apenas resultado de uma coincidência de gostos, mas sim fruto de uma confluência de propósitos e possibilidades, sendo o principal deles o de ocupar espaços. Afinal, os graves são ondas omnidirecionais, que se expandem e injetam força cinética por onde passam, uma dinâmica que o coletivo brasiliense sempre buscou emular em cada uma de suas iniciativas como núcleo de eventos ou gravadora.
Unidos pela amizade e afinidades musicais, impelidos pela carência de lugares para desfrutarem o som que curtiam, inspirados pelos feitos de selos inovadores como o britânico Hyperdub e impulsionados por essa potente sinergia sônico-criativa, seus membros (os DJs e produtores Data Assault e Rassan e a professora de filosofia Lorrayne Colares) buscaram contribuir tanto com o mosaico musical que os informou quanto com a missão de reinjetar vida na urbe que os formou. A mesma que, no decorrer dos anos após sua pomposa fundação e a promessa de progresso que ela encerrava, se tornou tragicamente prenhe de ambientes relegados ao esquecimento.
Afinal, essas sonoridades que são a alma da N&D possuem algumas qualidades bastante compatíveis com uma metrópole de concreto que foi construída priorizando funcionalidades datadas e acabou por criar uma segregação perene. Elas grassam vigorosamente na inospitalidade dos ambientes em que são propagadas, ao mesmo tempo que se sustentam num fazer e fruir musical que encontra na comunidade seu momento mais precioso. Ambos traços distintivos de tudo que faz a Nice & Deadly pulsar de maneira tão genuína, mesmo com um catálogo que hoje em dia congrega talentos oriundos de lugares tão distantes quanto Colônia e Brisbane, mas tambem criando pontes com coletivos afins por todo o Brasil.