Na coluna Transmitter, nossa correspondente em Berlim, Lalai Person, fala sobre o assunto do momento: uma inovação tecnológica que promete revolucionar o mercado da música.
O NFT (token não fungível) foi um assunto que me sugou para uma vórtice quase sem volta nos últimos meses. Se, nas minhas últimas newsletters o assunto NFT era apenas uma obsessão pessoal, agora ele se tornou uma obsessão global, ocupando todo os tipos de mídia (já já estará no Fantástico), grupos de WhatsApp, salas do Clubhouse e o desejo dos artistas de entender o rolê para entrar nessa também, especialmente depois do recorde alcançado pelo artista Beeple com a venda de sua obra por cerca de US$ 69 milhões num leilão na Christie’s. “The First 5,000 Days” poderia ter arrematado mais, mas o sistema não permitiu o novo lance.
Antes de entrarmos num rápido beabá sobre o que é NFT, vou explicar o que significa a palavra “fungível” e falar rapidamente sobre o conceito de blockchain, no qual o bitcoin é a criptomoeda mais conhecida:
- Fungível: Algo que se gasta, que se consome após o uso. É passível de ser substituído por outra coisa da mesma espécie, qualidade, quantidade e valor.
- Blockchain: Um blockchain é um tipo especial de banco de dados onde os dados podem ser apenas adicionados (não podem ser removidos ou alterados). Como o nome já diz, um blockchain se assemelha a uma cadeia de blocos – esses blocos são fragmentos de informações adicionados ao banco de dados. Cada bloco retém um indicador para o bloco anterior e geralmente contém uma combinação de informações de transação, registros de data e hora e outros dados para confirmar sua validade. Como estão vinculadas, as entradas não podem ser editadas, excluídas ou modificadas de qualquer forma, pois isso iria invalidar todos os blocos seguintes (explicação tirada de Academy Binance)
ENTÃO, NA PRÁTICA, O QUE É NFT?
Antes de entrar em aspectos mais técnicos, vou usar a ótima analogia que minha amiga Bia Pattoli usa para explicar para leigos o conceito: “O NFT é o equivalente a uma escritura que você recebe quando compra um imóvel. Na escritura contém todas as informações deste imóvel (quantos cômodos, metragem, garagem etc). Você só tem a posse do imóvel se tiver a escritura. Sendo que na escritura não tem o ‘imóvel em si – nem mesmo foto dele’, tem apenas a descrição detalhada do que você comprou.”
Um prédio pode ter 40 apartamentos, mas cada um é único e validado por uma escritura individual. O NFT é o equivalente à escritura. Nele, há todas as informações relacionadas à arte e/ou à música (ou o que quer que seja) comprada. A arte em si não está lá, mas sua descrição, sim, está na “escritura”.
Ok, então o que é afinal o NFT? A sigla NFT significa “token não fungível”, ou seja, algo que não se troca. A comparação mais básica é o NFT ser equivalente uma obra de arte, como a Monalisa. Ela é única, não é divisível e só tem uma. Este token (NFT) é o certificado digital (equivalente a escritura como falei acima) da Monalisa que garante que ela é a original. É ele quem garante posse e autenticidade no que foi comprado.
O NFT pode ser qualquer coisa: Uma música, um tweet, um vídeo, um gif, uma foto, um par de tênis virtual, um projeto arquitetônico, enfim, qualquer coisa passível de venda.
Geralmente o NFT é 1/1, ou seja, uma obra única, mas há também a possibilidade de criar coleções numeradas limitadas, como já temos hoje nas artes, na moda, na música. Ou seja, posso lançar um álbum exclusivo numa coleção numerada de 100. No marketplace terá essa informação, assim como essa informação estará também neste certificado digital. Um exemplo são os NFTs vendidos pela Grimes, as séries limitadas “Earth” foi 1/303 e “Mars”, 1/388:
No caso da Grimes, a primeira obra criou 303 NFTs distintos, ou seja, quem comprou recebeu no NFT “Earth 1/100”, “Earth 2/100” e assim por diante.
A imagem que simboliza o NFT, como as imagens acima, pode ser replicada pela internet sem problemas. Ela é uma cópia, assim como posso ter uma cópia da Monalisa no meu computador, mas sabemos que a original não é minha. Quanto mais esse “arquivo” se espalha, mais ele fica conhecido, mais ele se valoriza no mercado. Ou seja, em quase todos os casos você pode revender o seu NFT através de novo leilão (ou num preço fechado se assim preferir). Só não poderá vender se o autor da obra assim definiu no NFT.
Uma pergunta recorrente é “Por que eu vou pagar pela imagem da Grimes se todo mundo pode tê-la?”. É o conceito da posse. Todo mundo pode tê-la, mas a original poucos têm e quem tem, sabe que tem. Mas claro que é possível criar obras e experiências únicas que só quem c compra pode ter, como um meet & greet, um show particular ou o que a criatividade do artista levá-lo a criar.
O NFT está numa plataforma chamada Ethereum que usa a tecnologia blockchain. Eu recomendo este texto para quem quiser entender melhor o que é o Ethereum, mas isso não nos interessa nesse primeiro momento. Porém, foi o Ethereum que permitiu a criação de tokens não fungíveis e dos contratos inteligentes. Eu gosto muito deste guia criado pela Binance sobre o NFT, que é bem didático e detalhado.
VAMOS À PRÁTICA
Quando um artista cria um NFT de uma música, ele define tudo o que está vendendo para criar o certificado (a tal da “escritura”). Pode ser apenas um arquivo de música, como num arquivo de MP3, até o copyright, se assim o artista desejar, ou mesmo um meet & greet virtual ou real, acesso ao backstage em qualquer lugar que o artista for tocar etc. Aqui o céu é o limite para o que o artista quiser oferecer.
Um exemplo é o produtor Jacques Greene, que lançou um NFT da música Promise, incluindo o publishing rights, mas colocou a condição do uso só ser feito sob autorização dele. No site do marketplace onde a música foi vendida, há um vídeo de 6 segundos simbolizando esse NFT. Segue a descrição abaixo do que foi vendido, sendo que tudo o que está na “descrição”, está no NFT (que vira os códigos que estão na imagem):
Um outro exemplo é o músico canadense Clarian, que colocou à venda seu novo álbum, “Whale Shark” com os publishing rights num NFT no último dia 4 de março (um dia antes do Kings of Leon, cof cof cof). Eu achei ousado ele pedir de cara o equivalente a US$180 mil como lance mínimo para a venda (que eu não consigo avaliar no caso específico deste artista, mas entendo que, se é para dar os direitos do álbum, que seja por um valor que compense). Por enquanto ele não teve nenhum lance.
A REVOLUÇÃO DA MÚSICA
O produtor 3LAU é o nome mais proeminente e mais bem pago da música no mundo dos NFTs. Assisti a um bate-papo com ele no SXSW Online sobre NFT na música e em projetos de marcas (como NBA, Atari, Nike etc., que já estão há tempos nesse universo). Ele falou bastante em como o blockchain pode revolucionar a música, uma das indústrias mais recentes em NFTs. O 3LAU usou como exemplo o seguinte, “se o UBER revolucionou o transporte e o Airbnb, a hospedagem, o NFT é a possibilidade de transformar a música.”
O que os três têm em comum? Não há intermediário além da plataforma que conecta quem está vendendo com quem está comprando. No caso da música, é o fã se relacionando e comprando diretamente do artista.
PIONEIROS NO NFT
Quem afirmou que o Kings of Leon foi a primeira banda a lançar um álbum em NFT não pesquisou direito. O próprio 3LAU relançou o álbum Ultraviolet em 25 de fevereiro com coleções distintas, que geraram 33 NFTs, muito mais bem pensado e estruturado do que a banda de Nashville (de quem eu prefiro a música à do 3LAU, mas…), faturando US$11 milhões no leilão.
O luso-americano RAC foi um dos primeiros produtores musicais a lançar um NFT em outubro de 2020. Seu envolvimento tem sido tanto com o assunto, que ele lançou uma agência criativa especializada em NFT. Ao lado do 3BLAU, o RAC é outro artista para acompanhar de perto. De vez em quando eles armam bate-papos no Clubhouse.
Deadmau5, Mike Shinoda (do Linkin Park), Carl Cox, Steve Aoki, Disclosure, Plastikman e o Aphex Twin são alguns dos artistas que também lançaram obras em NFT, mas não necessariamente música. É aí que está o pulo do gato. Como falei acima, o céu é o limite para a imaginação e a criatividade. O NFT é um grande playground para pensar em tudo o que um artista pode oferecer, desde experiências até merchandising ou faixas e/ou remixes exclusivos, por exemplo.
Já tem brasileiros também na área. O artista brasileiro Uno de Oliveira criou um NFT em parceria com o André Abujamra, que foi vendido por US$3,224. Numa sala no Clubhouse, o Abujamra comentou que o dinheiro que ele e o Uno fizeram com esse NFT, ele não ganhou em seis meses de streaming no Spotify.
Outra notícia relacionada foi o anúncio da revista/site XLR8R em torno do lançamento em abril de seu marketplace de NFT focado em música eletrônica.
QUANTO CUSTA CRIAR UM NFT
Como falei, qualquer coisa pode se transformar num NFT. Para criá-lo, é necessário fazer o mint (ainda não há um termo bom em português para ele, mas é o equivalente a “cunhar”), nome dado ao processo de transformar algo em um NFT, ou seja, codificá-lo e colocá-lo em blockchain.
Qualquer transação feita em NFT (criar, transferir a venda para o dono etc.) gera um custo de gás, que tem preço dinâmico e hoje não sai por menos de US$ 70 por conta do boom que anda rolando. São dois itens imprescindíveis a serem considerados: o valor mínimo para criar o NFT + percentual cobrado pelo marketplace em cima da venda (10 a 30%). Atualmente somente o OpenSea, um eBay dos NFTs, não está cobrando o mint.
Qualquer transação feita de NFT gera custo de gás. Mas o que é afinal o gás? É o nome dado à tarefa de executar essas transações. Quando eu crio um NFT, eu pago o gás para o mint; quando vendo o NFT, novamente é cobrado o gás, já que transfiro o NFT do meu usuário para o usuário que comprou, ou seja, tenho aqui uma transação, e assim por diante.
O preço do mint varia de acordo com o arquivo e sua complexidade, que será transformado num NFT, ou seja, quantos blocos ele vai gerar, além da variação de valores por conta de alta demanda, que tem valor dinâmico, assim como o Uber.
Como criar um NFT? Eu vou recorrer a este passo a passo que explica detalhadamente como criar o seu. Mas será necessário entrar para o blockchain, caso ainda não o tenha feito, comprar a moeda Ether (do Ethereum) e depois criar uma carteira no MetaMask (a que eu uso) ou Trust Wallet. E então escolher um dos marketplaces disponíveis: Rarible, Ethernity, Opensea, Cargo, Nifty Gateway, Mintable, SuperRare, Foundation, Sorare, Mintbase, Knownorigin e Makersplace.
O André Abujamra está lançando a plataforma Phonogram.me de stockmarket focada em artistas brasileiros, que é uma ótima opção também para já começar com alguém assessorando de perto o processo.
O FUTURO
O NFT vive hoje o mesmo que a corrida pelo ouro viveu. Todo mundo quer participar! Mas o alto consumo de energia gasta para criar um NFT, um ponto crítico amplamente discutido e em busca de soluções, demanda a criação de projetos que façam sentido. A ideia não é criar apenas para dizer que fez e gerar “PR” sobre uma obra. O “PR” gera por dois motivos: ou o artista é renomado e tudo que ele faz aparece na mídia ou porque se criou algo realmente genial.
BLOCKCHAIN E PIRÂMIDES
Atualmente um dos empecilhos é o fã precisar estar inserido no blockchain (ou se inserir) para poder comprar NFTs, o que não é tão simples. Mas há uma ótima luz no fim do túnel, como o NBA Top Shot, que vende figurinhas colecionáveis em NFT. O fã não necessariamente sabe que está comprando um NFT. Ele sabe que está comprando figurinhas numeradas, colecionáveis, únicas e/ou raras, pois a Dapper Labs, empresa responsável pela plataforma, criou uma interface em que o usuário compra com cartão de crédito normal. Mas é justamente o NFT que garante a ele a autenticidade do que foi comprado. Para se ter uma ideia, nos últimos 30 dias foram vendidos US$50 milhões em figurinhas de NBA. Não sabemos quando surgirá um marketplace facilitando esse processo, mas torcemos para que seja logo.
As histórias acerca do NFT são muitas e elas não param de surgir. Há desde teorias sobre o boom ter sido motivado por especulação de investidores de criptomoedas até comparações do mercado de NFT com as pirâmides. Nessas especulações paira a pergunta: “estamos vivendo uma bolha?”. Para Mike Novogratz, da Galaxy Digital “nós tivemos uma bolha em 2017, agora não é bolha, é movimento”. A própria venda da obra do Beeple por US$69 milhões levanta várias questões em relação à especulação do mercado e tem fomentado a discussão sobre o que é a arte atual.
Gosto muito da frase da Shara Senderoff, da Raised in Space, uma empresa focada em música e tecnologia: “A indústria da música tem relutado em se inovar, em abraçar ativamente as soluções de tecnologia necessárias para enfrentar seus desafios. E, por causa disso, a indústria da música se colocou do lado errado da história quando o assunto é tecnologia.” A pandemia, por fim, acelerou a possibilidade de disrupção na indústria da música e tem mostrado um potencial enorme para explorar diversas possibilidades para os artistas.
Seremos nós os próximos a serem tokenizados, como propõe o Mint Me? Espero que não. Mas, enquanto não viramos tokens, vamos estudar o mercado, entender essas novas oportunidades e criar relevância. Eu acredito bastante que o futuro da música está no blockchain. Como disse o Portugal the Man: “O NFT é o novo rock’n roll”.