Vintage Culture, Dubdogz, Curol e outros grandes nomes ajudam a explicar a aurora da cena eletrônica nacional
Em meio a tantas fases vividas nos mais de 70 anos desde o surgimento da música eletrônica, estamos dentro de uma das mais emblemáticas no cenário nacional. Artistas brasileiros conquistando espaços antes nunca explorados no mainstream, ao mesmo tempo que o underground vem fazendo a cabeça do público e dos produtores. As atrações principais estão inclinadas para uma música eletrônica mais conceitual, se assim podemos dizer, baseada nos fundamentos da house e do techno. O exemplo mais latente é o do Tomorrowland Brasil, que rola a partir de 10 de outubro, com mais de 150 artistas no line-up.
Vintage Culture, um dos astros do Brasil mais conhecidos lá fora, explica ao Music Non Stop: “A galera deu uma enjoada do som que rolava antes, isso é evidente. E um outro fator foi a vinda desses grandes festivais pro Brasil. Então, acabou que as pessoas estão escolhendo onde elas querem estar, querem ver os gringos que não tinham oportunidade de ver antes, porque não tinha, por exemplo, o Time Warp e o Tomorrowland todo ano. As pessoas estão muito mais seletivas. E eu acho que isso fez com que os DJs e produtores refletissem e procurassem coisas diferentes”.
Esse chacoalhão no mercado nacional refletiu num amadurecimento geral, tanto do público quanto dos artistas. E apesar de ainda haver um caminho a ser percorrido, todos os olhares da cena eletrônica internacional estão voltados para cá.
“Eu tomei muito pau pra conseguir tocar o que eu toco hoje no Brasil — e olha que eu não toco do jeito que gosto ainda. O público precisa entender que as coisas mudam. Eu sei que é muito legal você ir no show dos Rolling Stones e ouvir todos os clássicos, mas no nosso mundo DJ, a gente tem a função de mostrar música nova. De qualquer forma, acho que nosso país é o novo celeiro da música eletrônica. A gente tem uma geração de produtores geniais, e a música desses moleques toca adoidada por DJs consagrados aqui fora. Estava conversando com o Armin van Buuren um dia desses e ele falou: ‘cara, o que vocês estão colocando na água do Brasil?’. Realmente, tá todo mundo olhando pra cá porque estamos cheios de novos talentos. Eu recebo promos diariamente e fico assustado, porque quando eu comecei a produzir, a qualidade era 30% do que esses caras fazem hoje”, reflete o sul-mato-grossense de quase dez milhões de ouvintes mensais no Spotify.
“Nossa cena amadureceu muito e a qualidade deixou de ser um diferencial para ser um pré-requisito. Mas não acreditamos que ser ‘conceitual e maduro’ tenha necessariamente a ver com um estilo específico de som. A gente acha importante tanto ter o lado conceitual e underground quanto ter o mainstream e aqueles fazendo música acessível para novos públicos”, declaram Marcos e Lucas Ruback, irmãos que formam a dupla Dubdogz, com quase seis milhões de ouvintes mensais no Spotify.
Os gêmeos acreditam tanto que é preciso fazer a cena crescer e se renovar, que resolveram espalhar a palavra da música eletrônica em outras esferas e criar a Dogz Parade, uma festa autoral para atrair novos públicos, apostando em uma música eletrônica alegre e acessível, num espaço onde pessoas que nunca foram a uma festa do gênero são bem-vindas.
Mesmo com a importância do Dubdogz no mainstream, os gêmeos resolveram entrar para o underground e explorar suas raízes no psytrance agregando o techno melódico no projeto paralelo RUBACK (que já faz parte de line-ups de renomadas labels como Zamna e Afterlife). Eles também criaram a ERRORR, gravadora e label party que já emplacou V.A. no topo do Beatport e tem sete edições confirmadas da festa somente em 2024 (incluindo a estreia em Londres). “A gente ama as duas coisas, não precisamos ser uma só. E acreditamos que a cena também não precise seguir um único caminho”, complementam.
Não estranhe. Estar presente em diferentes esferas de circulação musical é mais comum do que você pensa. Big names internacionais da música eletrônica também estão cheios de projetos paralelos por aí, deixando um pé no mainstream e outro no underground. David Guetta, por exemplo, ataca como Jack Back; Tiësto também atua como VER:WEST; Laidback Luke é também DARK CHANELL; Nicky Romero tem o pseudônimo Monocule; Calvin Harris criou o Love Regenerator. Muitos deles, aliás, lançam tracks em colaboração com os dois apelidos.
Essa dualidade entre mainstream e underground é muito recorrente em teoria. Na prática, é difícil entender onde uma acaba e outra começa. E mais que isso: se a música eletrônica não é um gênero de massa, e sim segmentado, como a lógica mercadológica funciona para diferenciar públicos que não são tão diferentes assim?
Formado pelos irmãos Pedrão e Lugui, o Cat Dealers, que recentemente se apresentou no palco principal do Tomorrowland Bélgica, também tem um projeto paralelo para chamar de seu, o Sapiens, que nasceu como uma válvula de escape para sons diferentes que gostam de produzir, mas sem compromisso em construir uma carreira em cima disso. Com a experiência do mainstream, estão experimentando o underground, e seguem numa linha de pensamento parecida com a do Dubdogz: “O amadurecimento desse público no Brasil diz muito sobre a maior capacidade crítica em relação à música e ao interesse em descobrir novas sonoridades, mas não necessariamente está relacionado ao gosto musical”.
“No pós-pandemia, parte da cena mainstream se fragmentou em vários subnichos, com o amadurecimento do público que antes consumia Brazilian Bass, e agora procura por outras sonoridades mais underground. E esse movimento é bastante natural. O mainstream sempre foi porta de entrada para o consumo da dance music, e com o amadurecimento desse público, e da própria cena como um todo, sons mais conceituais ganham força em determinado movimento, e às vezes, deixam de ser tão conceituais, fechando o ciclo do mercado”, discorrem.
Com mais de dois milhões de ouvintes mensais no Spotify, Bhaskar entende que vivemos um momento especial no Brasil no ponto de vista de amadurecimento do público e que, mais do que nunca, estamos alinhados com o que está acontecendo no resto do mundo com relação à música eletrônica:
“Sinto que está havendo uma separação maior do que existia, por exemplo, entre 2017 e 2019, quando públicos de outros gêneros escutavam muita música eletrônica também por conta do lance do Brazilian Bass ser uma coisa mais mainstream. Agora eu acho que a cena está se tornando mais underground. É um ótimo momento, o nosso mercado nacional se internacionalizou bastante e eu só vejo vantagens nisso: ajuda tanto a desenvolver a cena do ponto de vista conceitual, como de trazer novidades para o Brasil, porque o público vai ficando cada vez mais exigente”.
Uma coisa é certa: a cada ano, a quantidade de artistas nacionais em rolês gringos tem aumentado. Prova disso é o próprio Tomorrowland Bélgica de 2024, que bateu recorde de nomes brasileiros (Alibi, Aline Rocha, Alok, ANNA, Antdot, Bhaskar, Blazy, Cat Dealers, Dre Guazzelli, Dubdogz, Maz, Liu, Vegas e Zerb), tanto no mainstage quanto em palcos diversificados. Os artistas também seguem em extensa agenda de turnê no verão europeu, com passagens em locais icônicos como Ibiza. Mochakk e Vintage Culture, então, nem se fala! Os caras são unanimidade em line-ups de eventos de todas as sonoridades, de Time Warp e Awakenings a Exit e Kappa Futur Festival, além de clubs como DC-10 e Hï Ibiza.
No mesmo sentido, a DJ sensação da afro-house Curol atesta que a cultura nacional da música eletrônica tem sido cada vez mais exportada, mas ressalta que ainda há problemas no mercado.
“Em qualquer evento de música eletrônica, é possível ouvir músicas de artistas brasileiros durante a noite toda, então posso afirmar com convicção que estamos no melhor momento. Estamos com diversos nomes destacando-se em diferentes frentes, mostrando um ótimo trabalho, o que me faz enxergar que temos algo tão maduro quanto conceitual. No entanto, acredito que todos esses artistas que estão despontando no mercado internacional ainda precisam ter muito mais visibilidade e reconhecimento dentro do próprio país”, ressalta.
“Entendo que seja difícil, já que na era da internet a atenção se difunde rapidamente. Antes tínhamos Alok e Vintage como representantes de ponta. Eles continuam, mas junto deles agora chegaram Mochakk, Maz, Antdot, Beltran, Classmatic, ZAC, Kiko Franco, Aline Rocha, Mila Journée, Carola e eu. Esses novos talentos estão elevando a qualidade e a diversidade da nossa produção musical, e é essencial que recebam a valorização que merecem tanto no Brasil quanto no exterior”, complementa.
Por fim, o DJ e produtor brasiliense VINNE, que já lançou música ao lado de nomes como Hardwell, Dillon Francis e MC Binn, também acredita que ainda exista um desequilíbrio da cena em reconhecer a diversidade de estilos e artistas:
“O efeito disso é DJs e produtores talentosíssimos conquistando o mundo inteiro e, só assim, tendo esse sucesso refletido no Brasil. Além disso, a curadoria no mainstream ainda precisa evoluir. Muitas vezes, as escolhas parecem ser mais influenciadas por interesses comerciais do que pelo verdadeiro talento e inovação, o que resulta em uma acomodação geral. O público mainstream ainda tem certa resistência ao se deparar com sonoridades diferentes, deixando pouca margem para novidades, mas tenho visto surgir várias iniciativas independentes, coletivos que vêm dando espaço para novos artistas. Isso tá começando a mudar o jogo, trazendo mais diversidade para cena. Acho que estamos sim caminhando para algo mais maduro. O público da nova geração tá vindo mais aberto a novas experiências, a conhecer novas sonoridades, e isso é ótimo, considerando que maturidade não é só sobre ouvir o ‘fino’ da música eletrônica, e sim sobre saber explorar as vertentes e respeitar as que não agradam tanto”.