Novos artistas estão moldando a nova MPB. Conversamos com Persie, cantora que transpõe os limites aliando eletrônica e belas letras
Persie e Lucifer Kabra se apresentaram no interior de São Paulo. O Music Non Stop esteve lá e conversou com eles sobre o futuro presente da música brasileira
Será que finalmente estamos dando uma cara para a música eletrônica brasileira?
Em um começo de noite de sábado, atravesso o palco e entro no camarim para encarar, pela primeira vez, a cantora Persie, que faria um show em algumas horas, com abertura da banda Lúcifer Kabra, no Bar do Haules, em Jundiaí, SP.
Me apresento, citando alguns amigos em comum, para derrubar eventuais paredes. Persie me encara com seu olhar de deus dragão japonês, cheio de mistério, encapsulado por um sorriso hipnótico lançado para abrir as portas da minha alma e permitir sua rápida sucção. A artista, também graças à sua vivência no cinema, sabe da importância da imagem e da personagem para a transmissão da linguagem da música em cima de um palco. Se adorna com figurinos e da linguagem corporal para dar a letra, que como conto mais adiante, são parte importante do seu trabalho.
Rodeado por comida, bebidas, bolsas de instrumentos e os demais integrantes de sua banda, a tecladista Carol, a baixista Debbie (que também toca na banda Gran Tormenta) e o guitarrista Gustavo, troquei com Persie as primeiras palavras, úteis para nortear a conversa que teríamos em alguns momentos.
Persie veio da Bahia, e em São Paulo lançou seu dois projetos musicais. A banda Groupies do Papa, formada no fervido ambiente da ocupação Ouvidor 63, no centrão. Sua história repete o êxodo da música brasileira. Gênios do norte e nordeste migrando para São Paulo e Rio para impulsionar seus primeiros passos artísticos. Sampa e Rio são a represa. Mas a nascente cristalina de ideias musicais sempre esteve lá em cima, desde os tempos de Tom Zé, Caetano e tantos outros.
“Tanto a Groupies do Papa quanto este projeto solo nasceram aqui. Mas, como sou da Bahia, sempre trago estas referências… o brega, samba reggae, o coco, todo esse histórico musical brasileiro que nasceu na Bahia, porque foi ali que “descobriram” toda essa música africana, misturada com a nossa cultura indígena. E, para mim, misturar tudo isso com beats eletrônicos é muito interessante”.
A mistura, citada por Persie, tem sido responsável pela expansão e renovação dos limites da Música Popular Brasileira, que a grande massa ainda não percebeu. Estamos muito próximos de finalmente confrontar a nossa própria identidade artística e a apresentá-la para o mundo, assim como aconteceu algumas vezes em décadas passadas. Ao romper com a estética europeia e embutir na música eletrônica os elementos ancestrais que temos dentro de nós, criamos algo realmente único e, acima de tudo, verdadeiro.
Afinal, nós somos muito mais indígenas do que pensamos e, principalmente, do que queremos ser, reprimidos pelos nossos sobrenomes italianos e portugueses, pelo nome na placa do nosso condomínio, pela nossa obsessão por uma dupla cidadania.
É claro que, falando da história da música eletrônica brasileira, não podemos deixar de citar o funk carioca. No entanto, ao contrário rap feito aqui, por muito tempo e com raras exceções, o funk sempre foi um movimento muito mais sociológico do que artístico. A garotada fazia o que podia com o que tinha, e nunca se preocupou em meter o dedo na ferida, lutar contra as mazelas em que viviam ou desafiar os limites da linguagem musical em que atuavam. Demorou, mas agora esta apropriação foi feita e a mistura criou uma sopa que está rendendo muito disco bom, caso do último de Linn da Quebrada, produzido pela Badsista.
Na música brasileira, ouvimos hoje uma multidão de artistas assumindo esta interação passado-futuro com sofisticação. O techno sempre ligou o ritual tribal do batuque a uma vivência urbana, industrial e cinza. Mas nós nunca tivemos isso. Somos camponeses, sertanejos, escravos, ligados muito mais à terra e à natureza, comum às civilizações do lado de cá da linha do equador.
A nova onda, como de costume, arranha os padrões da música pop. Persie é uma filha da cultura underground, das ocupações, festas de rua e clandestinas que tanto contribuem para reverberar novas tendências. Em alguns momentos, a pele que separa o alternativo do mainstream se rasga, permitindo que as bactérias da experimentação infectem boa parte do sistema.
“Artistas como Edgar e a Saskia, que tem outra construção musical, que fogem da lógica e do tempo, usam muito o contratempo nos beats… os que saem da casinha e que fazem esta mistura. Posso falar até do Baiana System também e outros artistas, que têm na origem o samba reggae, o pagodão mesmo, e usam uns beats e colocam coisas que não são nada comerciais e estão tocando nos grandes festivais. Inclusive, eu acho que esta desconstrução está bastante em evidência. Você pode ver que, até nas músicas mais pop, esta desconstrução agrada bastante. Essa mistura”.
Enquanto uma parte desta galera trabalha esta identidade de formas mais intrínsecas e subjetivas, caso do artista Craca, por exemplo, de quem já falamos aqui, uma outra parte se apropria de outro elemento que sempre foi a menina dos olhos da música brasileira: as letras.
Na condição de apaixonado pelas palavras e excitado com a qualidade das letras que tenho ouvido ultimamente, pergunto a Persie sobre suas inspirações (e aspirações) em relação a isso.
“Tudo (nas letras) é autobiográfico. Tudo é a sua experiência, sua vivência. Mesmo que seja uma ficção, é algo que você criou, então é a sua ficção. Então, sim, eu falo muito de mim, de onde eu venho também. Falo sobre mim e meus próprios sentimentos e isso se espelha em outras pessoas porque não somos tão únicos assim né. Os nossos sentimentos também são o de outras pessoas. Eu sempre gostei muito de música, mas as letras vem principalmente do muito que eu escrevo. Na maioria das vezes, primeiro eu faço as letra e depois vem a melodia. Às vezes, ambas vêm juntas.
Persie também traz consigo um elemento comum em vários outros artistas de sua geração e isso se expressa bastante na condução do seu show. O cruzamento de linguagens provocada pela atuação em vários campos artísticos. A cantora usa a música para aplacar a vontade de um contato mais imediato e direto com as pessoas, algo inexistente no cinema, onde também troca seus tapas.
“O cinema e a música são diferentes, mas também muito parecidos. No cinema, eu atuo mais no backstage. Eu faço direção de arte e dirijo, mas você vê uma obra pronta que é feita a varias mãos. A banda, pra mim, deixa muito mais próximo o artista de quem está em recebendo. No audiovisual tem a edição a distribuição… mas ambos são maravilhosos.
Na correria da divulgação de seu primeiro álbum, Odaléa, Persie apresenta um show redondo e cativante. A estética dos beats começa nos remetendo a um puteiro de beira de estrada em uma madrugada estranha dirigida por David Lynch, e então vai ganhando corpo e tensão conforme a artista performa. Vemos, ouvimos e reconhecemos o novo, que como dizia o finado Belchior, sempre vem.
Lucifer Kabra
A banda de abertura, parte do clã de Persie, é Lúcifer Kabra. Formada pelo gaúcho Lufe, que também atua no cinema e transporta para o palco todo o peso teatral de sua performance, está lançando seu primeiro álbum agora, dia 12 de agosto.
O grupo compartilha com Persie a missão de dar um novo tom à música brasileira. Embora se apresentando com bateria acústica, Lúcifer Kabra explora a eletrônica sem pudor, aproveitando-se da liberdade de mistura que existe atualmente.
“A gente está naquele momento de grande expectativa. De virada de ciclo, de virar a chave e finalmente lançar o disco na íntegra, que começamos a produzir deste antes da pandemia, o que retardou um pouco seu lançamento. Fizemos seis shows de pré-lançamento e foi muito massa. Eu acredito que o cenário atual é muito diverso em relação ao tempo atrás, onde tínhamos a galera do rock para um lado, a galera do rap para outro, a do samba… agora meio que misturou e tem muitas coisas acontecendo de forma híbrida. Isso é muito interessante e muito estimulante. Eu acho que o disco tem a ver com essa cacofonia de possibilidades estéticas e de linguagem. Estamos muito animados com essa virada porque, a partir do momento em que o disco foi lançado, as pessoas vão passar a entender melhor nosso show. Afinal, todo mundo se emociona com o que conhece e gosta” – explica lufe, contando sobre o momento atual da banda.
Lufe me conta que o tesão da banda está nos shows. O disco que sai dia 12 é, portanto, um instrumento. O bom e velho cartão de visita, instigando o ouvinte a estar no show performático do Lúcifer Kabra.
O show que rolou no sábado foi parte das ações da gravadora Maxilar, capitaneada pelo guerreiro do underground Gabriel Thomaz. Tanto Persie, quanto Kabra, são artistas do selo, que ainda conta com mais dezenas de outros lançamentos de artistas nacionais, incluindo o seminal tributo brasileiro ao Kraftwerk, que você conheceu aqui.