Registro da memória familiar por meio do audiovisual
Fazer um documentário é uma das maneiras possíveis de registrar memórias no cinema. O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo explora a memória que se esvai com o passar dos anos.
A diretora do curta-metragem, Monique Rangel, se define como “uma roteirista que, ocasionalmente, dirige”. Formada em Comunicação com habilitação em Cinema pela PUC-Rio está trilhando seu caminho como roteirista e produtora. Para ela, dirigir não é uma profissão que enxerga com prioridade, mas “diante de uma história que precise ser contada, eu vou assumir a função necessária para torná-la realidade”.
Tendo dirigido até hoje apenas dois curtas, Rangel nos contou que “ambas as experiências aconteceram de forma orgânica. No primeiro filme, Era uma vez nos tempos da ditadura, eu ainda estava na universidade e dirigi em parceria porque eu queria explorar a função. Mais do que isso, era uma história que eu queria muito que as pessoas ficassem sabendo. Em O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo, eu assumo a direção por se tratar de um projeto pessoal em todas as camadas.”
O curta resgata sua história, de sua família, comentou, “literalmente, minha voz. Não poderia ter outra pessoa à frente da direção. Sabe constelação sistêmica? Eu acho que esse filme é um grande exercício de constelação. É um movimento que só poderia ser feito por mim e, principalmente, de mim para o mundo”.
O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo
O filme nasceu após anos de insistência de um amigo da diretora, que é roteirista e na época morava com ela. Segundo, Rangel, “sempre que conversávamos, eu acabava contando uma história absurdamente fantástica, mas pautada na mais pura (e dura) realidade”. Neste ponto, Monique nos contou como foi influenciada pela literatura de Gabriel Garcia Marques, pois, “um belo dia li Cem anos de solidão e me identifiquei com tudo aquilo num grau inimaginável”.
Assim sendo, a roteirista precisou se livrar da resistência em expor sua vida privada e transformá-la em algo público, pois a história de sua minha família “realmente precisava ir para tela”. Ela nos contou que precisou reformular seu planejamento, afinal, “Na época, eu tinha sido selecionada para desenvolver uma comédia romântica em uma incubadora de projetos chamada Laboratório Audiovisual Cocriativo. Tendo em mente que, cada terreiro que fecha é um universo que se cala e que a hora de falar é agora por conta de todas as violências que os adeptos de religiões de matrizes africanas tem bravamente resistido, eu troquei de projeto”.
Segundo Monique, inicialmente “O filme seria um longa chamado Banzo e o primeiro corte do curta-metragem ainda tem esse nome, mas eu mudei porque ressignifiquei a minha própria história durante o processo”. Ainda sobre omquanto o curta mudou sua autopercepção, nos relatou que “Estar aberta é uma das posturas mais importantes para o processo de criação em documentário. Uma das poucas coisas que sempre fiz questão ao ponto de serem inegociáveis, do começo ao fim, era fazer um documentário que tivesse um pé no realismo mágico e o outro na realidade. Tudo com o máximo de amor, cuidado e respeito ao sagrado”.
Minhas memórias sobre Tiradentes
“Se olharmos só pelo lado profissional, a Mostra de Cinema de Tiradentes é a melhor maneira de começar o ano. Por inaugurar o circuito de festivais, não há vitrine melhor”, respondeu Monique ao perguntarmos sobre o quão importante é o festival. Mas, entrando em uma parte mais pessoal nós confessou que, “Entretanto, soma-se nessa essa conta a particularidade da minha história. Sempre que o meu editor perguntava ‘para quando você quer o filme pronto?’, eu respondia: ‘Para a Mostra Tiradente”.
Certamente Rangel tem seus motivos e como ela mesmo nos disse, “O motivo é simples. Passei minha adolescência trabalhando em uma sorveteria, localizada em Tiradentes, como funcionária extra em época de eventos, feriados e folgas de funcionários. Curiosamente, o lugar tem nome de cineasta. Isso faz uns 16 ou 17 anos. Foram várias edições da Mostra trabalhando no balcão e vendo o movimento de longe. Sem tempo sequer para assistir um nanometragem”.
A Monique Rangel que conhecemos tem sua formação como roteirista e diretora formada pela vontade de participar do festival. Na época dos freelas de balconista, “O meu foco era juntar dinheiro para pagar um pré-vestibular e conseguir uma bolsa para cursar Comunicação. Sabe como é, a cada escolha uma renúncia”.
Inegavelmente, para ela, “estar na Mostra de Cinema de Tiradentes é realizar um sonho e encerrar um ciclo”.
Em breve, novos projetos
“Como dizia a mãe do Forest Gump, ‘a vida é uma caixa de chocolates’. Então, tudo leva a crer que o meu próximo projeto será como roteirista de um longa-metragem”, relatou Monique ao perguntarmos sobre seus projetos em andamento. Ela completou contando que desenvolveu o argumento no Laboratório de Narrativas Audiovisuais Negras da Flup. “Ainda está no primeiro draft e há muito trabalho pela frente. É um filme que se passa em São João Del-Rei e tem como protagonista uma adolescente negra em uma jornada de autoconhecimento. É uma trama de rito de passagem com bases no realismo mágico”.
Antes de encerrar, Rangel ainda fez uma observação: “Não me resumo e nem me limito a nada, mas acho a narrativa fantástica uma excelente aliada na hora de conquistar pessoas e comentar o mundo”.