Pós-punk (ou Post-Punk) é mais um daqueles termos que foi vítima de todo tipo de crime hediondo que consta no Código Penal perpetrado pela indústria musical. Enquanto categoria da música popular moderna, ela foi sequestrada pelos góticos e obrigada a viver deprimida como uma nomenclatura alternativa do synthpop, estuprada pelo público indie e forçada a ser vista como mera concubina da genialidade do Joy Division e, por fim, assassinada e esquartejada pela imprensa musical, que não apenas subscreveu às atrocidades aqui citadas, como também a desfilou, mutilada e desgraçada, por todo o Hall of Shame do Rock’n’Roll como um capítulo marginal dessa já enviesada história.
Quem a conhece desde suas abundantes e coloridas origens, sabe que toda essa injustiça é algo imperdoável que lhe foi perpetrado nas últimas décadas e transmitido incólume através de uma geração. Especialmente seus fãs sérios aqui no Brasil se ressentem a cada vez que Factory Records, Human League e Cocteau Twins são conclamados como o alfa e o ômega do gênero. Não se enganem: há muito mais vida e diversidade pulsando em seu interior do que aquilo que circunscreve um punhado de selos e seus artistas mais conhecidos.
Tudo entrava na mistura desde o início: jazz, soul, kosmische muzik, música dos recônditos do vasto ex-território colonial britânico, folk arcaico, vanguarda industrial-eletrônica… um cadinho de influências que rendeu um rico e denso caldo, recobrindo uma cacetada de coisas que, de outra maneira, nem o mais pirado etnomusicólogo pensaria em juntar, quanto menos embalar com a roupagem do rock britânico. É importante lembrar também que o ensejo para essa musicalidade era dado, de um lado, pelo clima intelectual animado pelos Cultural Studies e, de outro, pelas promessas do multiculturalismo que floresciam como resposta às questões inerentes ao pós-colonialismo.
É neste denso contexto acadêmico e político da Grã-Bretanha dos anos 70 e 80 que figuras como Adrian Sherwood – uma das mais emblemáticas dessa época, produto dos mais previsíveis e mais louváveis de seus tempos: um nerd branquelo cuja paixão sempre foi a alquimia aural do mais puro dub jamaicano – inseriram suas propostas estéticas, das quais Missing Brazilians é uma das menos conhecidas e mais fascinantes.
Também é a síntese da excelência e ousadia de uma das parcerias mais profícuas e intensas dessa época: a dele com Kishi Yamamoto, uma mulher das mais talentosas que foi cofundadora de seu monumental selo On-U Sound, cuidando de praticamente toda a parte gráfica e fotográfica, produzindo bandas fenomenais, além de tocar piano e teclado em um release ou vinte do catálogo.
O álbum Warzone (de 1984) da dupla é um dos poucos que figuram apenas os dois nos controles, reagindo e interagindo nessa fornalha de criatividade que era o estúdio da On-U e colaborando com alguns músicos e vocalistas, entre eles, uma jovem Shara Nelson (para quem não sabe ou lembra, ela é a voz de um dos maiores clássicos do Massive Attack, Unfinished Sympathy) em uma de suas primeiras aparições gravadas. O resultado? Pense na trilha para realizar a anamnese de um território global devastado por conflitos, uma psicogeografia da guerra baseada em frequências. Música psicobélica, se preferir.
Warzone é uma obra que vai deixar todos os acólitos da cena atual de bass music e sonoridades afins um tanto boquiabertos – mesmo alguns mais educados já reconhecendo Sherwood por suas experimentações com Pinch – já que, como tudo a que Sherwood e Kishi dedicaram seu tempo e talento nos últimos 30 anos, é absolutamente atemporal e assustadoramente visceral, tão contemporâneo de nossa música e sociedade que foi reprensado recentemente.
Ouça e teste os graves do seu soundsytem 🙂
The Missing Brazilians – Warzone (álbum completo)