Milli Vanilli Milli Vanilli. Foto: Reprodução/YouTube

Doc sobre “maior escândalo da história da música”, “Milli Vanilli” leva à questão: quando o público passou a topar ser enganado?

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Documentário recém-lançado conta a história do escândalo midiático que acabou com a carreira (e a vida) da dupla Milli Vanilli. Mas eles não foram os únicos a enganar geral

Em Milli Vanilli, ótimo documentário lançado nesta quarta-feira (25) pela Paramount, a história da dupla formada na Alemanha por Robert Pilatus e Fabrice Morvan é contada — desde seu início até a trágica morte de Pilatus, entregue às drogas após ter sua carreira interrompida pelo o que mídia chamou de “maior escândalo da história da música”.

Por imposição de seu produtor Frank Farian, Robert e Fabrice não podiam gravar as vozes de suas músicas. Farian pagava para outras pessoas cantarem no estúdio, e soltava um cheque gordo para que mantivessem tudo em segredo.

Milli Vanilli ganhou o mundo com sucessos como Girl, You Know Is True e, logo após receber o Grammy de Melhor Artista, em 1990, se desentenderam com seu produtor, que foi à imprensa e entregou a farsa que ele mesmo criou.

Amigos de origem pobre e com parco domínio da língua inglesa, Fab e Rob foram entregues aos leões, para serem devorados pela imprensa, humoristas e músicos. Os verdadeiros mentores da farsa: produtores, empresários e gravadoras, saíram ilesos do massacre.

“Acabamos abraçando a mentira”

Fabrice Morvan imigrou para a Alemanha sem saber nem falar a língua nativa. Conheceu Robert Pilatus, que jamais conheceu a mãe e vivia com uma família adotada, em uma festa. Pouco tempo depois, se consideravam irmãos. Ambos vinham da cultura do breakdance e dançavam muito bem.

Os dois viam a carreira artística como a saída para o perrengue. Se mudaram para Munique e começaram a fazer umas festas por lá. Nos eventos, subiam no palco e dançavam para o público.

Com o sucesso das performances, montaram o grupo Empire Bizzarre e lançaram um LP independente. Nas entrevistas com a dupla apresentadas no documentário, fica claro que o objetivo de suas vidas era unicamente a fama. Estava gravado em suas mentes e direcionava tudo o que faziam.

Como o Empire não decolou, decidiram procurar um produtor renomado para mostrar seu trabalho. Eis a pior escolha de suas vidas.

Eles não eram os únicos

Uma das maiores influências da dupla era o grupo alemão de disco music Boney M, que tinha como integrante o cantor e sex symbol Bobby Farrel. Descobriram quem era o responsável pelo seu sucesso, o produtor Frank Farian, dono do estúdio FAR, e bateram em sua porta.

Farian viu nos garotos uma nova mina de ouro. Eram bonitos, se vestiam bem, tinham uma sexualidade exótica e estavam cegos pelo sucesso. Primeiro, colocou na mesa um contrato para vários discos que, na empolgação natural dos artistas iniciantes, assinaram sem ler.

Foi somente durante a gravação que Farian chamou os dois de canto e avisou: “Vocês não vão cantar, apenas dublar as músicas no palco”.

O que a contrariada dupla não sabia até então, era que não se tratava de uma novidade no estúdio FAR. Bobby Farrel, do Boney M, também não cantava. Era apenas um dançarino bonito que dublava as músicas (o famoso lip sync).

Como funciona?

Uma trilha, somente com o vocal principal, é gravada em estúdio e levada para os shows. Enquanto toda a banda executa seus instrumentos, a voz é disparada em sincronia e, para os cantores, basta só mexer os lábios e torcer para não dar pau no equipamento — coisa que já chegou a acontecer com o Milli Vanilli nos Estados Unidos (veja abaixo).

Os cantores secretos são chamados de ghost singers (cantores fantasmas), e a técnica era extremamente comum, principalmente nos filmes de Hollywood. A ponto de várias estrelas, em filmes diferentes, dublarem a mesma cantora fantasma — caso de Audrey Hepburn, Natalie Wood e Debora Kerr, cuja voz era a da cantora Marni Nixon.

No Brasil, a técnica também foi muito utilizada, principalmente com apresentadoras de programas infantis e boybands.

Grandes estrelas do pop

Hoje em dia, é comum artistas levarem uma trilha vocal gravada para o palco, que é tocada por trás da voz principal para dar um “reforço”. Quando o fôlego dá sinais de esgotamento, dá-lhe dublagem.

Vários ícones do pop já foram pegos com a boca (fechada) na botija: Michael Jackson, Britney Spears, Beyoncé e até Red Hot Chili Peppers. Uma lista da Billboard elenca os piores micos de artistas que usaram o recurso.

Que outros truques são comuns?

Com o advento da tecnologia, várias técnicas são bastante comuns em grandes shows. E eles ficaram tão naturalizados que são vistos como recursos válidos, com o objetivo de dar mais qualidade ao espetáculo.

VS: O chamado VS é um sistema que permite levar gravações de instrumentos e vozes do estúdio para os shows. E vale tudo: desde saxofones e orquestras que não podem ser executados ao vivo, até guitarras, que servem para dar aquela “engordadinha” no som.

Ghost singers ao vivo: Cantores ficam em segundo plano no palco, ou até mesmo escondidos, fazendo a mesma voz das estrelas.

Backing vocal, mas nem tanto: Para compensar inconstâncias durante a apresentação, técnicos de som escolhem uma das vozes do coral de apoio (os backing vocals), e a deixam em volume igual ou mais alto do que o vocalista principal, o lead singer.

Amplificadores cenográficos: Usado para melhorar a qualidade da mixagem, os instrumentistas ligam seus instrumentos diretamente na mesa de som do palco, os enormes amplificadores, no palco, ficam desligados, fazendo cenografia.

Os recursos são caros, e por isso, mais comuns aos artistas que levam dezenas de milhares em suas turnês pelas grandes arenas do mundo.

Pense nisso na próxima vez que ouvir uma banda iniciante em algum boteco underground e alguém comentar: “aaaah, mas o Metallica toca muito mais!”.

E na música eletrônica?

A linha entre o que é verdadeiro e falso é ainda mais tênue quando se trata de música eletrônica. Ghost producers, os famosos “produtores fantasma”, que vendem suas criações musicais para serem assinadas por terceiros, são comuns há muito tempo.

Além disso, há vários DJs que se apresentam com sets pré-gravados e fingem que estão mixando ao vivo — sem nem falar de outro hábito do mercado, o das collabs entre um nome menor e outro maior: a música é assinada pelos dois, mas foi feita pelo nome menor, que fica feliz em ter a assinatura de uma estrela do seu segmento na esperança de também ter sua carreira projetada.

A dúvida

Robert Pilatus e Fabrice Morvan foram execrados quando a farsa veio à tona. Além de nos perguntarmos “por que só eles?”, outra questão fica martelando nas nossas cabeças: nos últimos 30 anos, quando foi que o público se conformou em ser enganado?

O documentário

Documentário de 107 minutos, Milli Vanilli estreou hoje (25 de outubro) e pode ser assistido com exclusividade na plataforma Paramount+. A produção é uma parceria entre as empresas MRC, Keep On Running Pictures e MTV Entertainment Studios.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.