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A história do funk pelas mulheres: Michele Miranda celebra o gênero no MAR

Baile funk

Foto: Vincent Rosenblatt/Reprodução

Autora do livro Funk Delas conversou com Jota Wagner às vésperas da celebração do Dia do Funk no Museu de Arte do Rio

Quem pegava o trem para frequentar os bailes de periferia no Rio de Janeiro nos anos 80 e 90 tinha poucas certezas na vida. Uma delas, é que o funk jamais seria motivo de orgulho para o povo brasileiro branco da classe média. Hoje, é o maior produto cultural de exportação brasileiro, amado (e copiado) pelos gringos e, lentamente, sendo aceito e respeitado no Brasil como movimento artístico autêntico. Pelas mãos da jornalista Michele Miranda, o funk também ocupa os museus. É sua a curadoria da celebração do Dia Nacional do Funk no Museu de Arte do Rio, o MAR, neste sábado (12). Um evento que conta com bate-papos, aulas de passinho, feira literária e shows. No line-up, grandes nomes como Tati Quebra Barraco, FBC, MC Nem e Iasmin Turbininha.

Imagem: Divulgação

Miranda também é autora do Funk Delas, um livro que conta a história do gênero pela perspectiva feminina, lançado em 2023. Hoje, os maiores expoentes do estilo são mulheres. Até chegarem lá, no entanto, tiveram de vencer muito mais batalhas do que um artista masculino.

Michele Miranda conversou conosco sobre a evolução do funk carioca no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo — a história contada por uma mulher!

Jota Wagner: As mulheres estão no funk desde sempre…

Michele Miranda: Sim. E as mulheres estão no baile funk desde o primeiro, só que não em posição de destaque. Eram convidadas meio como iscas. Aquela coisa do “damas grátis, cavalheiros, 10 reais”. Iam como espectadoras. Depois, passaram a ser dançarinas. Ganharam o direito de subir no palco, mas para dançar. Muito tempo depois, conseguiram virar MCs. Foi então que as mulheres foram se destacando, criando suas próprias características de trabalho, sua personalidade. Isso é maravilhoso acompanhar. Mas tudo ainda é muito desigual.

Michele Miranda. Foto: Divulgação

Nas principais artistas expoentes do funk, há muito posicionamento. De colocar ai, sua segurança, seu modo de ver. O início das MCs já começou assim?

As mulheres chegaram tateando. O funk é um movimento criado no Brasil, do nosso jeito, e muito forte na periferia. Ele foi inventado dentro das comunidades. É legal pensar no contexto dessa época. A primeira mulher com uma carreira consistente como no funk é a MC Cacau.  Ela apareceu primeiro sozinha, em 1994, e nessa época eram as duplas que faziam sucesso. No primeiro disco lançado do gênero, o Funk Brasil [do DJ Marlboro], em 1989, não havia nenhuma mulher. Ela começa contando o que via nos bailes. Quando conheceu o MC Marcinho, ambos dividiam o mesmo empresário e decidiram formar uma dupla, que virou um relacionamento de amor. Se casaram, tiveram um filho, e cantaram sobre tudo isso de uma forma autêntica. Foi a primeira artista de funk a frequentar o Xou da Xuxa, em um momento em que o estilo estava tentando se popularizar.

Nesse momento, havia centenas de bailes acontecendo nas favelas. Começou a ter bailes em Botafogo, Marlboro trabalhava para popularizar o estilo em programas de TV e rádio, ainda encarando muita porta fechada. E a Xuxa, que é uma mulher, abre as portas para o funk em rede nacional, em um momento em que tínhamos arrastões nas praias do Rio de Janeiro e tudo isso era associado aos funkeiros. O funkeiro canta, é um artista, é cultura. O funk não pode assaltar ninguém.

A Cacau começou fazendo letras românticas, o que fazia sentido naquele momento. Falar de amor também é uma forma de empoderamento. E ela fez o que foi preciso para entrar em um meio absolutamente masculino. Então, depois, vem a Tati Quebra Barraco, falando sobre o corpo, sobre a mulher, sobre quem ela é e o que ela quer. A partir daqui, temos também a Deize Tigrona, com o Baile das Popozudas. Também começa a cantar sobre as suas vontades, sobre querer ou não. Porque, para a mulher, mais importante do que querer, é dizer o que ela não quer.

Agora o funk está nos museus. Em 2025, podemos celebrar a aceitação do funk, que por tanto tempo foi visto como algo malfeito, relacionado à bandidagem?

Essa parceria com o Museu de Arte do Rio me deixa emocionada. Fiz o meu lançamento lá com a MC Cacau e ela me contou que o livro a levou a lugares que a gente nunca imaginou. Primeiro, estar em um livro. Muita gente no evento, pela primeira vez, estava entrando em um museu. Na época, estava rolando uma exposição chamada Funk & Ousadia. As pessoas chegaram lá e viram uma exposição dedicada ao que eles faziam. O MAR também é um museu que abraça a periferia e a população.

Foi preciso o gringo aceitar o funk primeiro, para começarmos a respeitar?

Olha, acho que a gente já falava que era legal antes do gringo. Desde quando tudo era mato. Mas sempre precisou alguém do asfalto falar que o funk era legal. Temos uns “aliados do asfalto” que são super importantes. Como a própria Xuxa, Caetano Veloso e a Regina Casé, com seu programa Esquenta. Mas é, sim, como você falou. Os primeiros festivais a colocar artistas de funk no line-up foram gringos.

Me lembro que o Lollapalooza levou o MC Kevinho para tocar no Chile, mas ele não tocou no Brasil. Não me lembro qual o motivo ou se o festival se explicou sobre isso. A Deize Tigrona é uma artista gigante na Europa, está há meses lá, fazendo show com agenda lotada. Não sei se a gente dá, aqui no Brasil, o valor que ela merece.

Você não precisa gostar da música para entender que existe um movimento cultural sólido, que gera trabalho para muita gente. Já existe essa consciência por parte do poder público? Como faz a Coreia do Sul com o K-pop, por exemplo…

O funk salva muita gente, assim como o hip-hop e o trap. Isso está no depoimento dos artistas. A MC Carol fala muito disso, e eu já cheguei a chorar ouvindo ela falar. Ela diz que o funk salvou sua vida. Ela não tinha dinheiro para pagar sequer uma conta. Com o funk, viu que podia ganhar 50 reais de cachê, a ponto de poder comprar absorventes! Foi o ponto em que ela entendeu que não precisava virar uma traficante ou roubar para sobreviver. E não são só os artistas. É o técnico de som, o roadie… o funk salva muita gente.

Mas não tem investimento, não é o K-pop. Quando faço meus projetos, todo mundo me diz “que corajoso, necessário, alguém precisava falar sobre isso”. Mas na hora de ajudar com patrocínio, não se consegue nada além dos editais. E uma lei como a Rouanet não pode ser a única solução para a cultura no Brasil. Os festivais hoje parecem um shopping center, com tantas marcas participando. Então, vemos que elas têm dinheiro para investir.

É preciso investir nos artistas, porque eles estão fazendo a roda girar. No evento que estamos fazendo no MAR, estamos contratando DJs novos, que estão no início da carreira, comprando seus equipamentos, e a Tati Quebra Barraco, uma das principais artistas do Brasil. Temos as duas pontas. Há um mercado, mas eu vivi batendo na porta de muita gente para tentar fazer coisas que não sejam só Lady Gaga e Madonna no Rio de Janeiro.

Artistas que estão usando beats de funk em seus álbuns…

A Mariah Carey anunciou que vai chamar a Luísa Sonza para fazer um beat de funk com ela! Madonna já fez. Hoje, em 2025, o funk é o gênero musical que tem mais possibilidade de exportação. Uma forma de internacionalizar nossa cultura. A Anitta, por exemplo, está lá fazendo isso sozinha.

Para quem é o evento de sábado, celebrando o Dia do Funk no MAR?

Para todo mundo. Para a comunidade. Para quem quiser chegar. Todo mundo no Rio de Janeiro tem uma história emocional com o funk. Ele está em todos os lugares, desde a favela até casamento de milionário.

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