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Mercedes Ladies: como o 1º grupo feminino de rap foi engolhido pelo machismo

Sheri Sher - Mercedes Ladies

Sheri Sher, das Mercedes Ladies. Foto: Reprodução/Facebook

Conheça a fascinante — e pouco contada — história de Sheri Sher, DJ RD Smiley, Tracy T, Eve-a-Def, Zena-Z, DJ La Spank e DJ Baby D

“Eu tenho um sonho, eu acho… Tenho a urgência de ser alguém”. Assim se apresenta Sheri Sher, fundadora do primeiro grupo de rap feminino na história, em seu livro Mercedes Ladies, a única fonte disponível para conhecer a trajetória de garotas que, por volta de 1976, resolveram fazer do hip-hop uma forma de expressão, de grito e de fuga de um Bronx cheio de problemas. O prólogo da obra já é uma aula:

“Eu quero ser uma atriz, mas eu moro na periferia. Ninguém é descoberto aqui. Quem viria para esta parte do Bronx, correndo o risco de tomar um tiro ou ser assaltado, para descobrir talentos? Quero ser uma advogada, alguém importante, mas a quem estou enganando? É preciso boas notas e dinheiro para a faculdade, a não ser que tenha algum talento especial para conseguir uma bolsa. Minha mãe não pode pagar meus estudos. Ela tem 10 bocas para alimentar sozinha. Trabalha dia e noite para colocar comida na mesa e manter um teto sobre as nossas cabeças. Está nervosa o tempo todo. Não tem tempo para conversar sobre os meus sonhos. Eu entendo. Então, só o que eu posso fazer é imaginar.

É difícil prestar atenção na escola. São tantos problemas em casa e parece que os professores também não estão nem aí. Nunca chegaram em mim para perguntar ‘hey Shelly, por que você falta tanto às aulas? Você precisa estudar’. Mas não. Eles não se importam comigo nem com minhas batalhas. As ruas me chamam; com a urgência de crescer a cada dia. Eu quero algo, mas não sei o que é, ainda. A única coisa que eu sei é que não quero ser uma drogada. Não quero vender drogas e nem roubar. Não suporto ver minha liberdade sendo tirada de mim. Mas que outras escolhas eu tenho? Quero ser alguém especial, mas o quê? Eu sou uma mulher negra. A única coisa que me pertence é meu corpo. Posso dar para todo mundo ou mostrar alguma autoestima, e tentar conseguir algum respeito dos homens ao meu lado. Decidi respeitar meu corpo. Vendê-lo está fora de questão”.

Cara, isso é a completa descrição do que leva jovens de todo o mundo a rimar sobre as batidas dançantes de um DJ. E no caso de Sheri Sher, descreve a coragem de se juntar às amigas DJ RD Smiley, Tracy T, Eve-a-Def, Zena-Z, DJ La Spank e DJ Baby D em meio à aurora do movimento que tomou conta dos Estados Unidos. Para se ter ideia da contemporaneidade das Mercedes Ladies, seus primeiros shows foram ao lado do inventor do scratch, Grand Wizzard Theodore, nas primeiras casas que abriam suas portas para aquela música falada que nascia nos bairros mais pobres de Nova Iorque.

As Mercedes Ladies. Foto: Reprodução/DailyRapFacts

Assim como aconteceu em tantos outros lugares e épocas, as Mercedes Ladies começaram a fazer música como uma opção ao mundo das drogas, uma saída artística para a “falta do que fazer dentro de casa” e como uma forma de peitar o machismo das ruas. Sher e sua turma usaram a poesia, a inteligência e o talento como aglutinadores de respeito. E deu certo, o grupo dividiu palcos com nomes como Afrika Bambaataa, Red Alert, Kool Herc e Grandmaster Flash & The Furious Five.

Filha de uma jamaicana, Sheri Sher conta através de uma escrita passional e muito fluída sobre o caminho que a levou a formar uma das mais importantes (e mal documentadas) artistas da história do rap. As Mercedes Ladies nunca gravaram um disco, apesar de dividirem o mesmo empresário de Grand Wizzard Theodore. Não há nenhum vídeo disponível, nem mesmo amador, com sua performance registrada. Ainda assim, graças a seu livro, é possível compreender a gestação do hip-hop.

A adolescente Sheri contrariava a mãe passando o dia inteiro na rua: “Jamais quis ser de uma gangue. Mas quem disse que andar com as mesmas pessoas a semana inteira não fazia disso uma gangue?”. Ainda assim, é preciso uma descarga de motivação extra para tomar uma decisão como montar um grupo musical. Para ela, a descarga de adrenalina foi pesada. O vizinho, que sempre foi o melhor amigo da família, capaz de comprar presente de natal para as nove crianças e aparecer no apartamento para ver se estava tudo bem nas noites em que sua mãe fazia jornada dupla, se embebedou e invadiu a casa dos Sher com uma arma na mão, atirando nas crianças. Por um milagre, todos sobreviveram e ele foi preso.

A capa do livro “Mercedes Ladies”. Imagem: Reprodução

O susto fez com que a mãe mudasse de área, para uma quadra dominada por gangues como os Five Percenties, alinhados com o islamismo. Cada gangue tinha suas próprias gírias e um modo de próprio de falar, funcionando como mais uma forma de identificação. Os Percenties falavam rápido e muito. Mais um capítulo sobre a gênese do rap.

Novo bairro, nova escola e novas amigas, que mais tarde formariam as Mercedes Ladies, animadas pelo fervo de uma rua chamada Boston Road, sempre com música e eventos, graças ao trabalho de sua gangue, a Boston Road Crew, que vivia convidando DJs como Grandmaster Flash e Grand Wizzard Theodore para animar as festas gratuitas. “Crew” era um nome usado pelos próprios integrantes para se distanciar do termo “gangue”, relacionado ao territorialismo e à violência. As coisas estavam mudando, por ali. No entanto, “praticamente não havia mulheres nos eventos”, conta Sher, e ainda reinava forte a ideia de que mulher só servia para ser a namorada de alguém.

Foi nessas festas que ela conheceu Sha Rock, a primeira MC mulher que ela viu cantar. Sha fazia parte do grupo The Funky Four Plus One More, que tinha como DJ ninguém menos do que Jazzy Jeff, mais tarde astro mundial do rap ao lado de Fresh Prince (que hoje conhecemos como Will Smith). “Ela era toda bonitinha, com cara de bebê, mas quando pegava o microfone, ninguém tinha dúvida sobre quem é que mandava.”

Foi a inspiração final para as três amigas Sheri Sher, Zena-Z e RD Smiley (a amiga que consquistou as duas carrancudas colegas de escola, porque sorria ao ser apresentada) decidirem montar um grupo de rap. Após divagarem na escolha do nome (desistiram de alguns bem ruins, como Boston Road Girls, Cowgirls ou Rodeo Girls), deciram por Mercedes Ladies por soar “classudo”. E sim, pessoal, o nome foi mesmo inspirado na marcada de automóveis Mercedes-Benz, pois soava chique.

As Mercedes Ladies, então, tinham a faca e o queijo na mão. Eram queridas entre a turma da Boston Road, conhecidas por todos, amigas de Grandmaster Flash e Grand Wizzard Theodore e tinham, principalmente, o talento e a vivência exigida para se escrever boas letras. E eram as pioneiras. O primeiro grupo da história formado só por mulheres, incluindo as DJs. Para a cereja do bolo, eram totalmente inseridas na cultura rastafari graças à mãe de Sher, jamaicana. Não faltava nem mesmo empresário. Um cara chamado Trevor, dono de um mercadinho e empresário de Theodore, topou vender as meninas logo que surgiram.

A vida fácil acabou por aí. O futuro reservou às Mercedes Ladies uma sequência de revezes que durou quase dez anos. Trevor, o primeiro empresário, não pagava um só centavo às garotas. O grupo tentou trabalhar com vários outros (todos homens) e as decepções se acumulavam. Ganharam prêmios e concursos na cidade, tocaram com todo mundo e viram seus amigos, como Grandmaster Flash e KC and Sunshine Band, se transformarem em estrelas mundiais. Mas se a coisa andava com os amigos homens, empacavam com Sher e sua crew.

Parte das Mercedes Ladies. Foto: Reprodução

Andando entre os famosos, elas descobriram o “demônio branco”, nome dado por Sher à cocaína. O uso da droga aparentemente “empoderadora” aliada ao ambiente de perseguição pela fama do meio artístico não ajudou — muito pelo contrário.

As Mercedes Ladies chegaram a gravar um single em estúdio, sucedido por um balde de água fria. Depois de pronto, a gravadora resolveu desistir de lançá-lo por considerar a gravação “preguiçosa”. Mas a porrada final veio quando as Mercedes foram chamadas para acompanhar o namorado de Sher, Donald D, em 1984.

O mano chamou o grupo para entrar em estúdio novamente para gravar com ele seu primeiro EP, produzido por Grandmaster Flash. As meninas vibraram quando ouviram sua voz nas rádios pela primeira vez. No entanto, quando conseguiram colocar as mãos pela primeira vez no vinil, a frustração foi gritante: “Donald’s Groove por Donald D, produzido por Grandmaster Flash”. O nome delas não havia sido creditado em lugar algum. Após um show de lançamento lotado em Nova Iorque, Sher perguntou sobre o cachê ao namorado. Donald respondeu-lhe que havia gasto toda a parte das garotas nas roupas que elas estavam usando.

À Sheri Sher, o destino reservou como compensação algumas entrevistas, verbetes completamente genéricos em sites especializados na história do rap e um ótimo livro. Ainda sem tradução para o português, Mercedes Ladies (268 páginas, ed. Dafina) pode ser encontrado aqui.

Orgulhosamente para nós, brasileiros, partiu de São Paulo uma das homenagens feitas ao legado do grupo, graças à pesquisadora Kika Souza, de olho no apagamento da história das mulheres dentro do cenário hip-hop. Desde março de 2023, Souza organiza um concurso de dança, cuja primeira edição rolou dentro do Centro Cultural São Paulo, o CCSP. Sabe qual o nome da batalha? Mercedes Ladies!

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