Jota Wagner explica quem foi a cantora e atriz inglesa, que faleceu nesta quinta-feira, 30 de janeiro, aos 78 anos
“Você precisa escrever algo lindo e sensível sobre a Marianne Faithfull.” A ordem veio de dentro do coração. Assim tem sido o dia a dia da geração 40+. Ao acordar, corre-se o risco de dar de frente com a uma notícia como a do falecimento da barda inglesa, aos 78 anos, “pacificamente, na companhia de sua amorosa família”, segundo sua assessoria comunicou nesta quinta-feira, 30. Enquanto isso, tears goes by.
Em primeiro lugar, ao inferno com essa história de “namorada do Mick Jagger“. O vocalista dos Rolling Stones teve muitas namoradas. Marianne, só existiu uma. E viveu muito bem, e por muito tempo, após o rockstar deixar sua vida. Faz parte do time de mulheres que ajudaram a destruir o conceito de groupie, garotas que só serviam como acompanhantes de músicos, ao lado de outras monstras como Patti Smith (que nos deu um baita susto em São Paulo na última quarta-feira), Kim Gordon, Kim Deal, Debbie Harry e tantas outras.
Seus dois álbuns de estreia, o autointitulado e Come My Way, ambos de 1965, eram folk passando longe, muito longe, de Bob Dylan, o grande inspirador de todos naqueles tempos. Trazia algo de celta em sua voz, mostrando que dava para ser banquinho e violão sem tocar country music. Foi lançado, inclusive, no mesmo ano que June Mitchell estreava, do outro lado do Oceano Atlântico. Cinco anos antes, outra rainha do folk, Joan Baez, botava na praça seu primeiro disco, dois anos antes da aparição de Dylan, mostrando que as mulheres já nadavam de braçada naquela onda musical. E a prova de que Faithfull foi uma artista do primeiro time é justamente o fato de estarmos citando a nata da música dos anos 60 em um texto em sua homenagem.
Dividir a cama com um sex symbol em tempos de patriarcado funcionou como uma tatuagem na testa da artista, que até hoje é citada muito mais como namorada do que como cantora. Que erro grotesco. Ao todo, Marianne Faithfull lançou 22 álbuns. Seu mais recente, de 2021, chama singelamente She Walks in Beauty. Em todas as suas plataformas de streaming, as fotos são de Marianne atual, mostrando que a artista vivia e produzia no presente, apesar de muitas vezes revisitar o material de seus primeiros anos de carreira.
Em 1967, Faithfull já levava a atuação como profissão, e não brincadeira. Estreou no londrino Royal Court Theatre com uma adaptação de Anton Pavlovich Chekhov. No mesmo, ano, atuou para Jean-Luc Godard, interpretando a si mesma. Caiu na armadilha das drogas ao mesmo tempo que começou a andar com a nata do rock britânico, o que quase custou sua carreira (chegou a recusar três papéis em bons filmes). Mas nem mesmo a heroína foi capaz de destruir tamanha fortaleza. Em 1979, lançou o aclamado Broken English, já “viciada” na cena punk e pós-punk que tomou conta da ilha.
Marianne foi Marianne para sempre, desde então. Gravou com David Bowie, participou de The Wall, do Pink Floyd, andou com Leonard Cohen. Em seu projeto de apoio às vítimas da AIDS, teve Charlie Watts e Ron Wood como seus backing vocals (pega essa!), fez Brecht no teatro. Quando decidiu reunir canções inéditas para seu álbum Kissin Time, de 2002, recebeu material de Blur, Beck, Billy Corgan, Jarvis Cocker e Dave Stewart. No disco seguinte, compôs em parceria com PJ Harvey e Nick Cave. Bem, que artista em sã consciência não trocaria alguns anos de vida para trabalhar ao lado de Marianne Faithfull?
Uma das primeiras Riot Grrrls da história, ajudou a colocar as coisas em seu devido lugar. Curiosamente, fui dormir ouvindo um podcast quântico na noite de ontem, onde tentavam me explicar (em vão) que quem está vivo nesta realidade já pode ter morrido em outras. E quem morre nesta, segue vivo em universos paralelos. Bem, me avisem que ônibus passa no outro mundo onde Marianne Faithfull segue viva. Queremos ir para lá!