Maria Rita Stumpf, a cantora cool brasileira que a festa Selvagem descobriu antes que você, lança seu terceiro álbum
Dia 29 de maio chega às plataformas digitais de música o novo álbum de Maria Rita Stumpf, Inkiri Om. Como aperitivo, você assiste hoje em primeira mão aqui no Music Non Stop o videoclipe do segundo single, Canção das Horas, esquenta para o lançamento.
Canção da Horas é uma música que explica com riqueza de detalhes o novo álbum da cantora, febre dos garimpeiros ligados na experimentação brasuca. O vídeo é dirigido pelo videomaker e fotógrafo documentarista Henrique Santian, com participação da bailarina Oz Ferreira ,também co-produtora do clipe.
CANÇÃO DAS HORAS – MARIA RITA STUMPF
Histórias fantásticas do mundo da música
Inkiri Ommmmmmmmmm. Onírico, flutua pela sala quando começo a escrever, invocado por uma voz austera, potente, conclusiva. A sensação que nos acomete (a mesma que tive ao chegar no palco do festival Dekmantel 2018 em que Maria Rita se apresentou) é a de “pare e ouça”.
Muito além de concluir um ciclo para Maria Rita Stumpf, esse álbum envolve mais uma fascinante história da música cujos coadjuvantes, importantíssimos para esse desenlace, são DJs brasileiros fazendo seu melhor: redescobrir música.
A faixa que dança por entre minhas orelhas e dá nome ao álbum, mais um capítulo da série Cânticos Brasileiros (esse é a número 7) composta por Maria Rita, lista o nome de etnias indígenas brasileiras de ponta a ponta do país. Primeira música do disco, já costura a existência de Maria Rita Stumpf e a conecta a seu primeiro disco, Brasileira, lançado 32 anos atrás. Elogiado pela crítica, perdido no oceano musical nacional e então pescado recentemente por caçadores de tesouros musicais, alimentando a vontade de Maria Rita de continuá-lo e concluí-lo na mesma volta do toca-disco.
Conectar o brasileiro ao africano e ao indígena é a razão artística da cantora e compositora gaúcha. “Eu sempre tive uma conexão com a cultura negra, desde a infância. Tu sabes quais são as coisas estéticas, auditivas e visuais que te atraem. E eu sempre fui atraída pelos batuques, pelos tambores e atabaques”, resume. Nascida nos arredores da região dos Aparados da Serra no Rio Grande do Sul e formada em jornalismo em Porto Alegre, Maria Rita testemunhou na adolescência o drama dos índios Caingangue, relegados às periferias das cidades em acampamentos improvisados após anos de estrangulamento do seu território original pela agropecuária. “Já era jornalista nessa época e compus Kamaiurá (Cântico Brasileiro no.3) nesse ambiente: os Caingangues perderam sua reserva, estavam jogados nas ruas, num frio absurdo”.
Caingangue quer terra!
Kamaiurá era a música que Maria Rita e sua turma inscrevia nos festivais da canção que pipocavam no Rio Grande do Sul no início dos anos oitenta. Alguns chamados de festivais estudantis, outros de “música gauderia”, ou “nativista”. “A gente se metia nesses festivais, éramos os loucos da parada. Íamos lá fazendo música de outro jeito. Mas como a temática era música do Rio Grande do Sul, nós queríamos mostrar que música gaúcha era muito mais do que aquilo. Quando entramos com Kamaiurá no festival Musicanto (em Santa Rosa, 1.984), tiramos segundo ou terceiro lugar. O pessoal ficou indignado, saiu na metade do festival”.
Os primeiros versos da canção entoados pela voz atômica de Maria Rita são: “Kamaiurá no Xingu quer falar. Kamaiurá no Xingu quer terra!”. Em meio a um conflito latente entre índios e colonos gaúchos (o público do festival), tais versos cortaram feito língua de chimango na morcilha.
A evolução deste ruído resultou no Brasileira, lançado em 1.988, já com Maria Rita morando e trabalhando como produtora de espetáculos de música clássica no Rio de Janeiro, composto e arranjado em conjunto com um grupo de músicos que Maria Rita levou para a vida: o pianista Luiz Eça, o regente Ricardo Bordini (companheiro de aventuras desde de o Rio Grande do Sul) e o Uakti, grandes experimentadores percussivos mineiros. Um disco “pra lá de minimalista”, segundo ela. Graças ao disco, a cantora foi indicada como revelação feminina no prêmio Sharp do ano seguinte
De Atlântida a Antares na velocidade da luz
Maria Rita elenca seus parceiros conforme conta sua história, no ritmo de quem narra um jogo de futebol pelo rádio, com segurança (de quem já a contou centena de vezes, talvez) e sempre generosamente, dividindo o resultado com todos os que foram participando de sua produção artística, incluindo na prosa quem casou com quem, ramificando para uma outra história que veio à mente e depois voltando naturalmente à meada, enquanto a gente corre atrás à procura do fio.
O ritmo faz se necessário já que Maria Rita fez muita, mas muita coisa. Produziu espetáculos, trouxe ao Brasil grandes artistas internacionais e companhias de dança dezenas de vezes,morou em Lima, trabalhou com Philip Glass e muitos outros ícones por lá, fez assessoria de imprensa, fez Fórum Global mas… (respiro)… vamos ficar aqui “só” na música desta artista.
Conta por exemplo, que obrigou Luiz Eça a tocar um Yamaha DX7 no disco (que tem várias outras piruetas eletrônicas, contribuindo ainda mais para o status de “cult” que ganhou nas décadas seguintes) e foi a única incursão do pianista no mundo dos teclados, que ele odiava.
O Mapa das Nuvens
Cinco anos após o nascimento de Brasileira, Maria Rita lançou um novo trabalho, o Mapa das Nuvens, juntando novas canções com músicas do primeiro álbum compostas em parceria com Luiz Eça.
Luiz havia falecido havia pouco, em 1992, e a chegada do CD ao mercado fonográfico assustou. Com medo de ver seu trabalho perdido na história com o “fim do vinil”, correu para ter um registro oficial nesta nova mídia e garantir para a eternidade a obra composta com o amigo.
A tour de lançamento em 1993 começou com shows em rolês icônicos, como o Jazzmania, mas depois a coisa começou a embaralhar. “Fiz Mistura Fina, Gula Bar, tinha shows de lançamento marcados em São Paulo e Porto Alegre, mas ali, por uma questão com músicos… sabe aquela coisa em que tu luta e luta, mas um dia tu enche…” Como o trabalho com a sua produtora, Antares, também exigia muito de Maria Rita, o lado back falou mais alto que o stage.
O mundo girou implacável, as produções foram se enfileirando e o os dois álbuns de Maria Rita foram afastando dos holofotes. Ficou por ali hibernando até que duas décadas se passaram e então, você sabe, Kamaiurá quer falar. E falou de novo.
Maria Rita, selvagem em outro tempo
A fome de novas músicas, novos timbres, novas tendências que a pista de dança tem é voraz. Quando a novidade não satisfaz, é para o passado que o radar dos DJs aponta. O boogie brasileiro estava na mira desta vez, através de especialistas como o DJ Tahira, e núcleos de festa que revolucionaram São Paulo como Voodoohop, Pilantrage, Mareh e Selvagem.
A partir de então a energia ancestral da obra de Maria Rita entrou em erupção. Foi através do soundsystem da Selvagem, pelas mãos dos DJs Augusto Olivani e Millos Kaiser que o público ouvia, lá por 2016, algumas músicas da cantora.
Praticamente ao mesmo tempo na Europa, o DJ íbero-britânico John Goméz lançou a coletânea Outro Tempo (Electronic And Contemporary Music From Brazil 1978-1992), um clássico instantâneo. Um punhado de faixas brasileiras descoladas com um nível arqueológico de deixar Indiana Jones no banquinho. Além da compilação conter duas faixas de Maria Rita, John conta que o impulso original para toda a pesquisa vai a partir do encontro do disco Brasileira no Japão.
“Os meninos da Selvagem vieram falar comigo, pois queriam fazer um remix do Kamaiurá. Nessa folia de fazer os remix dessa música e de Lamento Africano, me deram opções de DJs para escolher. Acabei optando por aquele francês, o Joakim”, conta a cantora. Selvagem & Carrot Green assinaram o outro lado. Maria Rita sugeriu ainda regravar as faixas. Estava assustada com a baixa qualidade dos edits que se ouviam por aí.
A empolgação de Millos e Augusto, aliadas à disposição de Maria Rita, resultaram no relançamento remasterizado de Brasileira, um disco de remixes, um minidocumentário, show no Oficina em SP e uma apresentação memorável no festival Dekmantel em 2018, cujo line-up também contava com John Gomez e Selvagem.
Tudo assim, meio de surpresa. Nada disso foi planejado (pelo menos não por Maria Rita). Perguntei a ela como se sentiu ao ver tudo isso acontecendo concomitantemente e de forma tão orgânica. “Todo mundo me perguntava isso e eu não conseguia responder a essa pergunta. Eu não sabia como me sentia em relação a isso. Não senti uma excitação ou uma expectativa, foi uma coisa estranha. Talvez porque eu, gato escaldado…”
O amor que existe em mim saúda o amor que existe em ti
Após o Dekmantel, o universo (olha ele aí de novo) começou a empurrar Maria Rita – budista com nove viagens à Índia, além de Tibet e Nepal no currículo – para seu novo disco. “Eu já tinha resolvido lá atrás, em priscas eras, que eu gravaria mais um disco a partir de Brasileira, nem que fosse para só eu ouvir”. A empolgação em fazer uma sequência de shows novamente encontrou força contrária. E após uma série de dificuldades eis que uma “trombada” na Avenida Paulista imobiliza Maria Rita em casa por dois meses. Inkiri Om quer falar.
O disco que você ouvirá dia 29 começou a ser trabalhado naquele momento. É absurdamente conectado ao Brasileira de 1988, como se fossem discos compostos logo na sequência. Um álbum duplo, separado pelo tempo. A sonoridade, a vibração afro-indígena, o apelo identitário, a eletrônica se arrastando por detrás. Não de uma forma escrava ou formulística, mas como uma necessidade urgente em concluir algo.
Consciente. A imagem da capa (desenvolvida pelo designer Juliano de Oliveira Moraes, a partir de pintura de Julio Saraiva e obra de Miguel Gontijo, criada especialmente para o álbum), contém um Oroboro, a cobra comendo o próprio rabo, a simbologia do ciclo que se encerra e se abre para um novo.
Inkiri Om tem faixas de Maria Rita e seus parças, além de interpretações de faixas de artistas que vivem em seu coração, como Taiguara, Violeta Parra e Milton Nascimento, entre outros. A cantora não se preocupou em formatar o disco para as pistas de dança, uma vez que foram os DJs os grandes responsáveis pelo redescobrimento de sua obra, mas há momentos e batuques que dão toda a pinta de circular pelos soundsystems ou virarem futuros remixes.
“Eu e o Matheus (Câmara, Entropia – Entalpia) nos encontramos e, com tudo isso acontecendo com os índios, incêndio nas florestas e tudo o mais, disse a ele: ‘Vamos fazer uma sequência de Kamaiurá. Sua base são os tubos do Uakti, percutidos etc. A gente pegou uma célula daquilo e mandou para o Ricardo Bordini, que complicou aquilo tudo e nos mandou de volta. Foi então que o Inkiri Om começou a nascer. Mas não me pergunte como isso aconteceu porque a gente não sabe como essas coisas acontecem. Ela simplesmente vão”.
Inkiri significa “o amor que existe em mim saúda o amor que existe em você”. É um cumprimento secular usado pelos indígenas da região da península de Maraú, na Bahia. “Om”, como todo raver já sabe, é o mantra mais importante do hinduísmo, o som do universo.
Além de Paulo Santos (fundador do Uakti), Bordini e Matheus, cuidaram do disco Philipe Ingrand (o francês Doudou), Lui Coimbra, Marcos Suzano, Danilo Andrade e Jovi Joviniano, todos músicos que Maria Rita foi coletando ao longo das experiências que a vida lhe trazia.
“Eu faço música do meu jeito, pra eu ouvir e pra eu gostar”. Não resta dúvida. Não seria justo dizer que à época do lançamento de Brasileira a compositora gaúcha estava à frente do seu tempo. Assim como também não é correto dizer que Inkiri Om reescreve o que aconteceu no passado. Voltando às origens enquanto propõe algo que ainda é novo há tantos anos, Maria Rita Stumpf nos mostra que o tempo, na verdade, não existe.
VEJA O DOCUMENTÁRIO BRASILEIRA