Marginália Metropolitana DJ GB com livro Marginalia Metropolitana. Foto: Gabriela Felin/Divulgação

Marginália Metropolitana: a revolução eletrônica que nasceu nas ruas de Porto Alegre

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Jota Wagner conversa com Gabriel Bernardo, o DJ GB — um dos organizadores e autores do livro/coletânea/festa Marginália Metropolitana

“O que me pegou e pega muita gente é o primeiro impacto. Um universo novo de sensações, um som que eu não entendo, esse estilo de condução narrativo-musical que prescinde da produção do sentido na forma mais tradicional: uma música sem letra, sem refrão, essa coisa da galera dançando sem uma coreografia”, conta Gabriel Bernardo, o DJ GB, um dos criadores da festa Arruaça e parte da turma de artistas de Porto Alegre que está lançando neste sábado (03) o livro/coletânea musical/festa Marginália Metropolitana, uma iniciativa apoiada pelo Estado do Rio Grande do Sul unindo artistas que se envolveram no movimento das festas de rua da cidade por volta de 2015.

O projeto consiste em uma coletânea (ouça acima) com 14 produções de sete artistas que mariposam pelo núcleo de Porto Alegre, um livro escrito por seis autores (Gabriel Bernardo, Eduarda Heineck Fernandes, Mariana Gonçalves da Silva, Leo Felipe, Bruno Barros e Tom Nunes) com pensatas sobre o movimento que, segundo Bernardo, reconectou o público alternativo à música eletrônica na metrópole gaúcha, e uma festa (porque ninguém é de ferro), na rua e gratuita, feita pelo Coletivo Plano, para promover a celebração de tudo isso, na tarde deste sábado, na Praça Revolução Farroupilha, em frente ao Mercado Público, no Centro da capital gaúcha.

Com textos bem-escritos, escorregando para o acadêmico, Marginália Metropolitana já sai da prensa com status de documentário. Ouvindo o disco, é possível sentir um pouco da rua fria e do intercâmbio cultural promovido por seus artistas, entre centro e periferia. GB conta mais, em entrevista ao Music Non Stop.

Jota Wagner: Como surgiu a foi sua aproximação com o universo do livro?

Gabriel Bernardo: Comecei a tocar em 2010, quando entrei na universidade. Foi a maneira que encontrei para me expressar artisticamente. Não sabia tocar nenhum instrumento, gostava de música e então aprendi a discotecar. Em 2014, mais ou menos, criamos o coletivo Arruaça, citado no livro em vários momentos porque não está no “tempo do livro”. Desde então fui conhecendo pessoas e atuando paralelamente à minha atividade profissional. Enquanto isso, na psicologia, eu fui enveredando a minha pesquisa acadêmica para as festas de rua. Um jeito de juntar uma coisa com a outra e ser feliz.

Marginália Metropolitana

A capa de “Marginália Metropolitana”. Foto: Divulgação

A escrita sempre foi uma linguagem na qual eu me sentia mais à vontade. Aos poucos fui fazendo este trampo para a galera como reviews, releases… Acabei me tornando uma referência, aqui em Porto Alegre, de alguém que tem essa facilidade.

Como surgiu a ideia de um projeto que vai além de uma coletânea de músicas?

Esse projeto passou por um edital estadual. O Wender [Zanon], grande organizador, já tinha feito trabalhado no álbum do Marcelo Lose, curador da coletânea. A ideia era fazer uma coletânea de artistas que vivem, ou viveram a maior parte de sua vida, nas cidades satélite de Porto Alegre. Uma vida sem tanta evidência. São artistas que têm uma sonoridade bem peculiar, mais suja, vinda da marginalização das comunidades trans, negras. E pessoas que se encontravam nas festas de rua do Centro de Porto Alegre. Esse é o mote da Marginália Metropolitana.

Como a verba conseguida pelo edital permitia, surgiu a ideia de juntar tudo isso a um livro. Desde o início, a ideia é que fossem vários autores diferentes, para dar essa noção de multiplicidade. E também surgiu a oportunidade de uma festa de rua como lançamento do projeto.

Arruaça - Marginália Metropolitana

Edição da Arruaça, em Porto Alegre. Foto: Divulgação

O rolê de música eletrônica é diferente para quem está na periferia?

Eu acho que algumas coisas são diferentes, e tem outras que podem ser alcançadas por tudo mundo que se joga nessa experiência. Para o marginal, há questões materiais que são muito importantes, questões de afeto, do transporte que ele vai utilizar para chegar na festa, se vai ter grana para beber. Se ele quer tocar, se vai ter acesso a equipamentos — e isso faz diferença. De alguma forma, existe uma rede de compartilhamento para que as pessoas consigam conquistar isso.

Por outro lado, tem a coisa de buscar um lugar para se expressar e até mesmo os mais ricos se beneficiam disso. Muitas vezes, a pessoa pode ter grana e não conseguir se expressar em casa, em sua comunidade. Isso é algo que é compartilhado e o que eu acho mais bonito. Quando essas cenas se misturam, as pessoas podem se aceitar de fato, criar um ambiente de segurança para que isso venha a acontecer.

A galera marginal também muitas vezes encontra nesse ambiente uma fonte de renda. É raro conseguir viver disso como artista, mas acaba conseguindo trabalhando no bar, na produção… Uma das colaboradoras do livro, a Mariana Gonçalves, paga o doutorado dela com cachês de DJ.

As festas de rua trouxeram à tona uma primeira geração em que a periferia também atua em cargos de empreendedorismo ou chefia, como donos de festas, produtores de artistas e de eventos…

Estamos num processo disso acontecer. No cenário eletrônico, estamos dando os primeiros passos nesse sentido, aqui em Porto Alegre. Mas, paralelamente, tem também o rolê da galera do hip-hop, que se utiliza dessa mesma rede de recursos como galpões abandonados, a coisa do it yourself. Ali, eles já estão mais adiantados, trabalhando com moda e fazendo seu rolê.

A grande maioria dos artistas retratados no livro entraram na cena por volta de 2015. Tudo começou ali?

Porto Alegre teve um cenário de eletrônica muito forte antes disso. Nós não estamos inventando a roda. O que a gente fez, talvez, foi criar um novo momento das festas de rua e isso mudou o game. Misturou alguns públicos que não tinham se encontrado ainda. Quando começamos a fazê-las em 2014, a linguagem predominante não era a música eletrônica. Era parecida com o que vimos em São Paulo, com a Voodoohop, uma mistura de música brasileira, beats, música latina.

Edição da Arruaça, em Porto Alegre. Foto: Divulgação

Porto Alegre tem seus lugares importantíssimos como o Bar Ocidente, o Fim de Século (que depois virou Neo)… Na virada do milênio, tivemos alguns clubs como a Spin, a Fulltronic do Fabricio Peçanha, com DJs internacionais e milhares de pessoas. Em algum momento isso enfraqueceu e o público voltou para o rock alternativo, um gap que ainda quero entender através de uma pesquisa.

A geração que a gente influenciou a partir de 2014 não estava mais frequentando clubes de música eletrônica. O que a Arruaça e todo esse movimento faz é aproximar estes dois momentos. Chamamos DJs das antigas, que se sentiam muito estimulados frequentando as festas e tudo o mais.

Como começou a história da Arruaça?

Comecei a estudar psicologia na UFRGS. Durante a Ditadura Militar, os cursos de humanas foram jogados para bem longe, em um área que era rural. Isso fez com que esses cursos ficassem isolados, onde rolaram várias festas. Já a psicologia ficou na área central. As nossas festas do diretório acadêmico juntavam mil pesssoas, foi um aprendizado para nós antes da Arruaça. Em 2013, com a tragédia da boate Kiss, a universidade endureceu as regras para festas no campus. Foi também uma época em que havia muitos debates sobre a ocupação do espaço público.

Em 2012, também fomos a uma Virada Cultural e ficamos em uma pista da Voodoohop. Quando voltamos, pensamos em criar um coletivo e fazer festas de rua. A prefeitura ainda não se ligava nesse tipo de evento, não entendia o que era. Fazíamos festas de madrugada, onde não havia moradores para incomodar, inicialmente com a galera da psicologia. Tudo começou a crescer e em 2019, precisamos legalizar o negócio, no sentido de pedir autorizações e fazer em até as 23h.

Arruaça - Marginália Metropolitana

Edição da Arruaça, em Porto Alegre. Foto: Divulgação

Qual a importância do rolê para um jovem e por que ele é tão reprimido?

O que me pegou e pega muita gente é o primeiro impacto. Um universo novo de sensações, um som que eu não entendo, esse estilo de condução narrativo-musical que prescinde da produção do sentido na forma mais tradicional, uma música sem letra, sem refrão, essa coisa da galera dançando sem uma coreografia. O flerte que acontece ali na pista quando todo mundo está meio alterado, que não é algo romântico ou sexual. Às vezes a gente flerta na pista de música eletrônica sem ter a intenção de pegar aquela pessoa. É só porque a gente está se divertindo, então tem algo ali que se cria, esse primeiro impacto que é de um terreno de liberdade que as pessoas não costumam experimentar em festas mais tradicionais, é uma outra gramática, outro modo de funcionamento e outros objetivos.

Conforme ir às festas vira um hábito, isso se perde um pouco, mas ao mesmo tempo se cria uma comunidade nova. Mas é uma comunidade que está pautada em alguns valores que sejam singulares desse rolê: uma relação com substâncias específicas — não é geral, mas acontece com muitas pessoas —, se fala sobre isso e se partilha isso. Com um tempo, as pessoas desencanam disso, mas há esse momento.

Há também a coisa da distensão do tempo. Ir a uma festa, ir a um after, começar a tocar, porque é muito convidativo. A pessoa pode não tocar em festas, mas muita gente aprende e passa a tocar com os amigos. A relação com a música é diferente. Tudo isso faz com que as pessoas criem uma relação de apaixonamento pelo rolê. E claro, cobra o seu preço. Se jogar demais cobra o preço para o corpo, muitas vezes há trabalhos não remunerados, tudo tem seu lado bom e ruim.

O que assusta a sociedade em geral é justamente o desconhecido. As pessoas são muito intensas nessa parada e isso gera o desconforto.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.