“Boogie Naipe” não é só um álbum. É a conclusão de um processo.
O início mais evidente é a própria formação musical de Mano Brown – e dos outros integrantes do Racionais. Não é segredo que eles sempre foram ouvintes, pesquisadores e fãs de soul, funk e r’n’b dos anos 70 e 80. Como a maior parte dos grupos de rap que surgiram nos 90, a base para tudo o que fizeram depois reside ali.
Quem cresceu escutando Marvin Gaye, Jorge Ben, Tim Maia, Cassiano, Djavan, Carlos Dafé e toda banca da Motown, querendo copiar os passos de James Brown e Michael Jackson nos bailes black, não se desfaz do groove – ou do boogie. Para ouvidos mais atentos, essas conexões sempre estiveram presentes, nas entrelinhas ou nos samples.
É engano, portanto, achar que Mano Brown (ou Pedro Paulo) se transformou de repente. Quem entendeu esse disco como ruptura se esquece (ou desconhece) desse longo caminho. Há anos, Brown vem deixando clara sua decepção com a caretice do hip hop atual. Chama de carcereiros os que criticam os Racionais por terem “baixado a guarda” para o showbiz. Tema recorrente em entrevistas recentes (algo que há dez anos era raríssimo: Brown falar com jornalistas), a liberdade de explorar outros caminhos, de errar e arriscar, são ideias que parecem ter se sedimentado no seu discurso, enquanto mais pedras iam sendo arremessadas pelos fundamentalistas do rap. “Lutei por liberdade e agora eles me aprisionam”, disse uma vez. Mil trutas, mil tretas.
OUÇA BOOGIE NAIPE DO MANO BROWN
O recado veio como tapa na cara no ano passado, quando ele gravou uma faixa no disco do funkeiro carioca Naldo Benny. A chiadeira ressoou na mesma intensidade, e Brown parece ter conseguido exatamente o que queria: mostrar que não é fantoche da opinião alheia. Lidem com isso.
Outro equívoco dessa safra acompanhou o lançamento de Boogie Naipe: dizer que Brown se tornou romântico. Balela. Esse tema já aparece, por exemplo, no álbum Cores e Valores, de 2014 – pra muitos, o marco da “abertura” dos Racionais. Eu Te Proponho traz um Brown meio Barry White, rimando sobre o sample de Liquid Love, de Roy Ayers: “De cara com seu sexo, amei, sabor do mel/Vou ao céu que cê crê, estresse ou loucura/espécie de cura, esquece/Estou por mim, por um triz/Vou entre suas coxas, minha diretriz”. Seguindo por essas pistas, Boogie Naipe não traz surpresa. Traz desfecho.
Um dos aspectos mais comentados, e que talvez seja a principal novidade em relação às etapas anteriores do processo/álbum, é o fato de Brown, o melhor MC do país, cantar em trechos de algumas músicas. Esse parece ter sido o calcanhar de aquiles pros fãs mais fervorosos: ouvir o mano voz de trovão vacilar na afinação resultou numa espécie de vergonha alheia que não cabe na moldura que ele desenhou (e na qual muita gente se apegou): o vida loka, o zica, artigo 157.
Mas é exatamente nesses momentos que fica claro o quão confortável Brown está na própria pele. Cantarolar (dizer que ele “canta” é exagero, são pequenas passagens, em poucas músicas), “lalaiá-laralaiá”, funciona quase tiração de onda, uma demonstração de que ele tá curtindo o que tá fazendo, como quem dança na pista sem se preocupar com a pose ou com quem tá olhando. É clichê pra caralho dizer isso, mas tem a ver com maturidade. O famoso foda-se que fica mais poderoso com a idade – 46, no caso dele.
Musicalmente, não tem polêmica. Todos os tributos ao passado são pagos com respeito e reverência: da disco music dos Bee Gees ao Marvin Gaye da fase mais psicodélica, da banda Black Rio ao soul com arranjos de bossa nova de Cassiano, Tim Maia, Jorge Ben, Mtume, estão todos citados/homenageados.
Algumas escolhas, especialmente a maneira com que as participações femininas foram editadas, me parecem incoerentes. Num disco dedicado a relacionamentos, sedução e sexo, as vozes das mulheres cumprem o velho papel da biatch, surgem de maneira secundária ou boba, com gemidos, palavras soltas ou besteiras como a lista de avenidas paulistanas proferidas com voz sexy de rádio na madrugada em Boa Noite São Paulo (Cidade Jardiiiiim… Á guas Es prai a daaas). Com tantas cantoras jovens e MCs talentosas na nova geração, Brown poderia ter aproveitado a onda pra desafiar o próprio machismo, que ele francamente não esconde – mas também não combate.
Com tantas participações (Max de Castro, Seu Jorge, Don Pixote, Simoninha, Carlos Dafé, William Magalhães – filho de Oberdan Magalhães, fundador da banda Black Rio, entre outros e outras), era meio esperado que houvesse altos e baixos nas letras e temáticas. “Quero ser seu Superman/Seja minha Louis Lane” é tão tolinho que quase arranha a lírica de Brown – e esta sou eu bancando um daqueles carcereiros, caga-regra do rap.
Dance Dance Dance tem um groove redondo, mas poderia ter só a parte do Brown – Seu Jorge não me desce.
Adicto é uma das melhores do disco, beat e letra (“De bar em bar/decorando o balcão”) a serviço de uma abordagem com mais frescor. Mulher Elétrica é excelente, mas foi gravada há tanto tempo que tem vida própria, parece um flashback no conjunto. Amor Distante, Mal de Amor e Gangsta Boogie são minhas outras eleitas.
Felizes/Heart to Heart até podia ter um efeito de clímax, do encontro com o ídolo, mas achei o resultado fraco. É a que leva assinatura de Leon Ware, um dos produtores de I Want You (1976), de Marvin Gaye, mas soa fria, desconectada do clima do disco.
O verdadeiro herói de Boogie Naipe (depois de Eliane Dias, mulher de Mano Brown, que comanda a produtora Boogie Naipe e merece um capítulo, um tratado só pra ela, e não apenas um parênteses), justiça seja feita, esse cara é Lino Krizz.
Mano Brown feat. Lino Krizz – Amor Distante
Personificação da elegância discreta, produtor do disco ao lado de Brown, é cantor, compositor e quinto elemento dos Racionais. Nos anos 80, formava com o irmão gêmeo, DJ Dri, a dupla Os Metralhas, conhecida pelo Rap da Abolição. Deveria ter seu nome inscrito no Olimpo da música black brasileira – já gravou com Sandra de Sá, Jorge Ben, Claudio Zoli, Paula Lima, tantos outros. Nos shows dos Racionais, segurava a onda nos momentos mais pesados quebrando a dureza (tristeza) das rimas com seus refrões em timbre mais sincero do que potente em clássicos como Fórmula Mágica da Paz.
O disco é todo muito explícito, nas ideias, na intenção, nas referências. Mas está escondido numa estrofe curta de Gangsta Boogie o melhor verso de Boogie Naipe, e que talvez resuma o processo todo: “Porque a cena é hostil / tento me manter alto”.
Voa, Pedro Paulo.