Criador da série documental cuja terceira temporada está disponível no Globoplay, Yuri Alves Fernandes conversa com Jota Wagner
O jornalista Yuri Alves Fernandes conversou com o Music Non Stop logo após ter chegado de Perúgia, na Itália. O que o mineiro radicado no Rio de Janeiro foi fazer lá? Receber o “Prêmio Criador de Notícias de Excelência em Jornalismo de Vídeo Independente”, entregue pelo renomado International Center for Journalists (ICFJ). Mais um troféu na estante vindo de um trabalho que, hoje, entende como projeto de vida: a série LGBT+60: Corpos Que Resistem, já em sua terceira temporada.
Desde que estreou, em 2018, a série já levou mais de dez prêmios, nacionais e internacionais. A cada temporada (Yuri parte para a tarefa de viabilizar a quarta neste momento), conta a história de pessoas que chegaram à terceira idade dentro da comunidade LGBT+. Uma vida de luta, preconceitos, resistência e, também, amor, celebrações e conquistas.
As suas primeiras temporadas de LGBT+60 podem ser assistidas no canal de YouTube do Colabora, plataforma de jornalismo independente brasileira, e a terceira no Globoplay. E recomendamos fortemente que o faça. Pela primeira vez, uma geração chega à maioridade com a liberdade de poder ter suas histórias contadas.
Você já produziu três temporadas de LGBT+60. Como vive essa comunidade atualmente?
É a primeira geração de idosos LGBT que de fato está envelhecendo e pode falar sobre seus corpos. Se a gente for pensar, o movimento começa a ganhar força em 1970 e esse pessoal está atingindo a maioridade agora. São pessoas que conseguiram sobreviver e ainda estão vivas. Fazem parte da geração que fez parte da luta pelo reconhecimento dos nossos direitos. Participaram do início do movimento, em meio à ditadura. Estavam preocupados em encontrar formas de se manterem vivos.
Envelhecimento não era a prioridade, nem as segunda, nem terceira pauta. A questão ali era mesmo da sobrevivência. Por isso, ainda é uma comunidade muito invisibilizada, que sofre preconceitos de vários tipos. São pessoas idosas e existe um tabu muito grande em relação a isso. A sexualidade dessas pessoas já é questionada, então imagine uma senhora lésbica ou um senhor gay? É uma dupla vulnerabilidade que acaba tendo poucos espaços. Até mesmo nos debates para falar sobre a pauta LGBT, quem ocupa o espaço são os mais jovens. A própria comunidade se esquece dessa parcela da população. Ou, até mesmo, não tem conhecimento do que eles fizeram, de quem estava ali na linha de frente quando a gente mais precisou. No meu ver, são pessoas que carecem de mais apoio e de mais visibilidade.
Como essa pauta entrou na sua vida?
Foi curioso. Eu vim para o Rio de Janeiro e cheguei a trabalhar na Globo por três anos. Quando saí, a única coisa que sabia era que não queria voltar para o interior de Minas Gerais. Então aluguei um quartinho na casa do Eduardo Michels, um senhor gay, responsável por fazer pesquisas sobre a quantidade de LGBTs assassinados no Brasil. Eu ia dormir e ele estava acordando, porque passava a madrugada fazendo suas pesquisas em noticiários, encontrando possibilidades de morte por homofobia ou transfobia. Tive esse contato mais próximo com o tema vivendo ali. Moramos juntos por três meses, me aproximei muito dele, que depois virou um dos entrevistados na segunda temporada.
Mas isso vem desde a faculdade. Nasci em Ipatinga/MG e fiz faculdade em Juiz de Fora/MG. Me mudei para o Rio com 20 anos, onde estou até hoje. Comecei a trabalhar com a pauta da diversidade, por isso sempre tivesse olhar: aonde a pauta não estava indo, onde as pessoas não estavam e a mídia não estava cobrindo. Em 2012, comecei a falar de famílias que adotam e do direito à família. Comecei a olhar para a comunidade trans que, até então, não tinha tanta visibilidade. Eu sempre trabalhei com o recorte do recorte: o que pode ser aprofundado dentro do recorte LBGT+. Em 2017, fui trabalhar no Colabora, um site de jornalismo independente. Cobrimos sustentabilidade, mas em um sentido muito amplo, onde entra também a questão dos Direitos Humanos. Percebi que não estava lendo nem vendo nada sobre a comunidade LBGT 60+.
Me lembro que vi uma matéria sobre idosos LGBT, para falar de suas vidas, e nenhum mostrava o rosto. Pensei: é meu papel jornalístico tirar essa invisibilidade. Pela matéria que vi, parecia que estavam falando de criminosos!
Acho que é a primeira vez que a gente tá tendo uma geração que se mostra, né?
Sim! E eu apostava que tinha muita gente que queria mostrar seu rosto, que queria falar. Isso tem um impacto tão grande para quem assiste. Foi quando decidi fazer a série. Apresentei a pauta para o Colabora e eles aprovaram. A princípio, seriam só cinco entrevistas. Nem tinha ideia de que se tornaria uma série.
Quais foram os maiores desafios que você encontrou durante as pesquisas?
No início, foi justamente encontrar esses idosos. Há muita gente, mas como encontrar? Eles não se expõem nas redes sociais, então foi preciso fazer um bom trabalho de pesquisas, que é o que eu mais gosto. A única pessoa que eu sabia que queria entrevistar era o João Nery. Ele já era conhecido, deu entrevistas para Jô Soares e Marília Gabriela, entre outros. Eu também queria representar a diversidade dentro da comunidade. Não queria só homens gays e mulheres lésbicas. Procurei ter pelo menos uma travesti, uma mulher e um homem trans também. Talvez possa ter sido essa minha maior dificuldade, a de encontrar esses perfis em mundo novo para mim.
Fora isso, houve a dificuldade de execução. O Colabora é um site independente, não tínhamos muitos recursos. Eu fazia a câmera principal, a edição, roteiro, divulgação… Muito trabalho. Não sei como eu consegui, era muito novinho!
O artista de circo, que faz malabarismos no trapézio e depois vai vender pipoca…
Quando a gente é novo, tem esse gás. Passava as madrugadas editando e amarradão. Fiz quase tudo sozinho. Em cada lugar diferente eu tinha um câmera que me ajudava e eu ficava ali, na secundária. O mesmo rolou na segunda temporada, em que a gente tratou dos casais. Também tive dificuldade nas personagens, tanto que só tivemos três episódios. Quis lançar no dia dos namorados, fazer uma coisa romântica. Tudo teve de ser feito muito rápido.
Na terceira temporada, já mudou tudo. Eu já tinha um retorno do que havia sido publicado. Com isso, conseguimos nosso primeiro edital público, foi o primeiro dinheiro que rolou. Então, tive equipe e tempo para fazer uma pesquisa mais aprofundada.
Yuri Alves Fernandes. Foto: Divulgação
Cada temporada é sobre um tema diferente, ou sobre pessoas diferentes?
É um guarda-chuva meio aberto. São sempre histórias separadas, de cada indivíduo. A primeira é muito sobre resistência, luta, então é muito dura. Fala do contexto da Ditadura Militar. Um período pré-Bolsonaro, com um clima de muita tensão no Brasil, sobre o que iria acontecer com as minorias. Ele é muito político no sentido de falar sobre as violências. São cinco episódios e um compilado só sobre as memórias da Ditadura.
A segunda é mais romântica, sobre casais e sobre o amor, construção de família — sem, é claro, deixar de falar de luta, preconceito, porque isso está inerente em tudo. A terceira é mais sobre celebrações, porque meu objetivo também é mostrar que não existe só um caminho possível na terceira idade. O que mais você escuta é sobre a solidão, o que também existe. Mas tem muita gente celebrando, realizando sonhos, casando e adotando filhos na terceira idade.
Eu acho que essa série mostra diferentes modelos de velhices que, quando a gente é LGBT+, não tem nenhum modelo, não sabe para onde ir. A terceira temporada fala sobre conquistas.
Claro que eu vou te perguntar da quarta temporada…
Eu quero muito fazer, desde o ano passado. Tenho de correr atrás de patrocínio, talvez conseguir um edital. A gente não quer retroceder, quer continuar mantendo a qualidade. Quando olhava para o lado e via uma equipe de seis pessoas trabalhando comigo, pensava: “sério que eu não preciso mais me preocupar com tudo?”. O que eu quero agora é sair um pouco do eixo Sudeste. Quero ir mais para Norte e Nordeste e mexer um pouco com as questões regionais. Trazer realidades diferentes.
Falando do mercado audiovisual, mesmo para uma série premiada como a sua, há dificuldade na captação de recursos?
Pra falar a verdade, me falta tempo. O LGBT+60 é uma coisa, mas também tenho meu trabalho como diretor no Colabora. Cuido das questões financeiras, administrativas e jornalísticas. Acontece que a série virou um projeto pessoal, e não tenho muito tempo para fechar um projeto. Não caredito que seja tão difícil assim, não, mas eu preciso estar focado nisso. Esse prêmio na Itália foi justamente um empurrão que eu precisava para ir atrás.
Você já considera esse trabalho como um projeto de vida?
Hoje eu acredito que sim. No início eu ouvia pessoas no jornalismo me falando “você não tem o receio de ficar conhecido só por tratar desse tema?”. No início isso me incomodava e eu fica pensando que realmente tinha de fazer outra coisa. Mas se nós temos jornalistas especializados em economia, por que não ter alguém específico falando de diversidade e, sendo ainda mais específico, na terceira idade? Hoje eu sinto que isso é um projeto que não tem mais como eu parar de fazer. Ele tem sete anos e continuo recebendo prêmios, sendo chamado para falar em locais, porque é algo que as pessoas vão conhecendo aos poucos. Para cada um que o conhece, abre-se um mundo novo e me chamam.
A série já foi transmitida em outros países?
Aqui, venceu o Rio Web Fest, que é internacional. Ele já foi transmitido em cineclubes e festivais menores em Portugal e na Argentina. Mas, como está disponível no YouTube, pode ter chegado há muitos lugares.
E como é a resposta da comunidade 60+ em relação à série?
Existem muitos projetos no Brasil sobre a terceira idade LGBT 60+, mas poucos no audiovisual. Tem muita pesquisa acadêmica, profissionais de medicina e psicologia. Acabo tendo conhecimento desses outros projetos quando as pessoas me procuram. Mas o audiovisual impacta de uma forma diferente. Chega de uma forma mais acessível. Por parte dos idosos, principalmente, recebo mensagens de gratidão. Eles se sentem muito valorizados, gratos por ter alguém mantendo essa pauta viva e falando sobre eles. Não só dos que assistem, mas também de quem foi entrevistado.
Um dos entrevistados, o Márcio Guerra, me mandou uma mensagem falando que “poderia morrer amanhã, porque alguém documentou minha história”. Fui convidado para o casamento de duas idosas, uma de 69 e outra de 73 anos. Fui à cerimônia e gravei. Também fui ao aniversário de 65 anos da Sissy Kelly [ativista trans], sozinho, para Belo Horizonte. Fui porque ali, o mais importante, era celebrar aquele momento, de uma pessoa que já viveu em situação de rua, que conviveu com o HIV… Infelizmente, ela faleceu em 2024.
Essas pessoas estão tendo o protagonismo que merecem, se sentindo representadas de alguma forma. Porque algo que a série toca, é justamente a falta de modelos da velhice.
Quando você é hétero, imagina sua velhice porque seus avós são héteros também, tão como as representações nas novelas, nos filmes. Minimanente, você pensa “vou estar casado, no domingo com a família, cheio de netinhos”, ou então que vai estar viajando, com seu amor. Quando você é LGBT, tem pouquíssimas referências. Você não sabe como vai estar, e nem mesmo se vai ter uma rede de apoio.
Como o Brasil está, comparado ao resto do mundo, nessa questão, levando em conta o desastre conservador recente?
Esse é um tema que, no Brasil, é muito pouco discutido. Basta olhar o Estatuto do Idoso, não tem recortes de interseccionalidade. É como se todo idoso fosse um só. Não tem questões raciais, de gênero e sexuais. Aqui, tudo é muito recente e ainda está se transformando em políticas públicas. Estou inclusive participando de um projeto que vai ser apresentado em Brasília, para começar a mudar essa realidade. Em alguns países, já existem leis mais específicas para a terceira idade LBGT, como casas de apoio, algo que no Brasil seria muito importante. Há depoimentos conhecidos de pessoas que viveram a vida toda como mulher e que não foram aceitas em asilos. Gente que foi obrigada a “se converter” para poder conseguir uma vaga.
Na Europa, temos esse tipo de casa, eles estão mais avançados. Nos EUA, tem uma ONG muito forte, chamada Sage, que trabalha com essa pauta.