Laurent Garnier, a lenda, volta ao Brasil em janeiro; pelotão de elite clubber revira as melhores memórias sobre suas passagens pelo Brasil
O que vem a ser uma lenda? Vemos muito essa palavra ser usada e abusada, colocada como epíteto e epígrafe, metáfora e metonímia, adjetivo e substantivo, mas qual seria sua aplicação mais adequada num âmbito tão relativamente jovem da história musical que é o da música eletrônica, mesmo se formos buscar seus rudimentos mais antigos? Qualquer que seja nossa resposta ou utilização específica, não há como escapar do fato de que essa palavra se refere a feitos e conquistas de indivíduos extraordinários, ou melhor, méritos tão raros e dignos de nota que servem não somente como exemplo aos demais aspirantes como nós, mas como algo que transcende nossa própria experiência e se projeta atemporalmente, definindo novos horizontes até mesmo para nossos sonhos.
Mas, quando nos deparamos com alguém como Laurent Garnier, cujo itinerário já demarcou todas essas rubricas, vemos que essa grandiosidade se esconde nos mais simples atos e nas mais singelas atitudes. Pessoalmente, ele é afável e cativante, jamais deixando de transparecer um sincero entusiasmo quando o assunto a ser conversado é a música, sua paixão e ofício já por três décadas, além de uma empolgação genuína quando encontra qualquer um que compartilhe de seus interesses. Mas é na cabine que o vemos se comunicar mais abertamente, pautado por uma liberdade e ousadia tamanhas que, em qualquer lugar em que se apresente, parece estar tocando para a mesma pista que comandava desde os tempos do clube parisiense Rex, onde ganhou sua primeira residência no início dos anos 90.
Ouça set de Derrick May e Laurent Garnier gravado no Rex em 1994
É esta confiança extrema que sustenta a familiaridade com a qual sempre parece lidar com seus públicos, por mais diversos ou exigentes que se demonstrem, e estabelece os laços com os quais ele se relaciona com seus pares e deixa sua marca, usualmente profunda, como um selecteur bon vivant que inspira e eleva, independentemente de gêneros, estilos, vertentes, rusgas, panelas ou o que seja que inventemos para nos segregar.
OUÇA O PROGRAMA IT IS WHAT IT IS DE LAURENT GARNIER GRAVADO EM 2017
Laurent, afinal, é um diplomata e muitos que conhecem seu trabalho e sua pessoa ousam dizer que é o melhor embaixador que a música eletrônica poderia ter, uma missão que ele encarna com desenvoltura e orgulho, seja escrevendo uma biografia pioneira na narrativa da vie du DJ como fez com Electroshock, inaugurando uma noite seminal de techno na capital francesa com a Wake Up!; provendo o primeiro abrigo a talentos como Saint Germain, Aqua Bassino, Scan X, Llorca e tantos outros com sua F Communications; ou mesmo sendo um dos primeiros birutas a virem para o Brasil conhecer nossa cena e, previsivelmente, se apaixonar por ela.
Esta breve história oral (e aural) que mostramos aqui de suas então frequentes vindas a Pindorama serve para ilustrar essa figura – agora sim, lendária – que sempre acabou se mostrando bastante humana, real e tangível. Ademais, por isso mesmo, mais autêntica que qualquer outro DJ ou produtor que esteja há tanto tempo jogando esse, às vezes, tão cansativo jogo com tanto êxito. Aqui colhemos alguns depoimentos, anedotas e testemunhos de gente que conheceu ou ouviu o Lolo em alguma das suas jornadas brasileiras, além de uma gravação do programa da Sound Factory, então um dos principais clubes do underground paulistano, que de fato é o primeiríssimo set dele em nossas terras.
Ele retorna, após 10 longos anos sumido, em janeiro para tocar em São Paulo na jovem festa Tantsa (dia 24/1), além de ter seu début no suntuoso clube catarinense Warung (dia 27) e na fervida festa carioca RARA (26).
PROGRAMA DA SOUND FACTORY COM LAURENT GARNIER (1994)
RENATO COHEN
Ver o Laurent no Hell’s em 95 foi muito marcante para mim e acho que para todo mundo que estava lá. Numa época em que não existia internet, aquela noite foi um turbilhão de informações e emoções. Foi uma mistura de tudo: techno, jungle, house, chicago… Lá eu ouvi I Want To Leave My Body pela primeira vez (ele tinha o promo). Ele fazia tudo isso de uma forma parecida com quem era nossa maior referência na época, o Mau Mau. Foi emocionante. Um detalhe; essa era a época do Dove e eu tinha dois no bolso.
I WANT TO LEAVE MY BODY – GREEN VELVET
CLAUDIA ASSEF
Uma das noites mais divertidas da minha vida foi uma festa em que o Laurent tocou no Lov.e em plena segunda-feira (não era feriado no dia seguinte, detalhe) e todo mundo ficou na pista até as seis da manhã! Foi mágico! ele tocou de drum’n’bass a Roberto Carlos, e a cada mixagem era uma nova surpresa. Foi indescritível o que ele fez com a gente! Uma surra de bom gosto e conhecimento musical, sempre com uma pegada dançante e solar. Foi inesquecível! Sei que este set existe por aí, se alguém encontrar avisa pra gente!
ELI IWASA
“Conheci o Laurent em sua gig no B.A.S.E., acho que em 1999, e vi mais de uma dezena de DJ sets e também seu live desde então, no Brasil e mundo afora. Suas duas apresentações no Technova, minha noite no Lov.e Club, foram inesquecíveis para quem estava presente – especialmente as 8 horas em plena segunda-feira, que forçou muita gente a pedir atestado e não aparecer no trabalho no dia seguinte. Garnier sempre foi mestre em transitar por diversos estilos: house, techno, drum’n’bass, electro clássico – em sua vinda em 2006, ele me perguntou sobre o funk carioca. Pedi um CD para o Dudu Marote, que me mandou várias tracks da Deize Tigrona.
Quando ele entrou nas horas finais de seu set no Lov.e em 2006, me mostrou as tracks que ele iria tocar: “elas combinam, não?”, mixando Deize Tigrona com Headhunter do Front 242. Nem preciso falar que a pista foi abaixo. Tem muitas viradas que ficaram marcadas na memória – quando ele tocou Quetzal dos Los Hermanos, e vi amigos chorando na pista; quando ele tocou Dangerous Drive meses antes de seu lançamento, momentos separados por meses, anos de diferença, mas com uma coisa em comum: sua capacidade de emocionar uma pista. Sempre que penso nos DJs que mais me inspiraram, duas pessoas vem à minha mente instantaneamente – DJ Mau Mau e o Laurent. As mixagens longas, a coerência, sua coragem de arriscar, sua integridade, as diferentes atmosferas que consegue criar ao longo de muitas horas de set e, especialmente, seu amor à música e à arte de discotecar, fizeram dele um artista único e merecedor de todo o reconhecimento que ele tem. Ele não é chamado de “maestro” à toa, e que sorte a nossa em ter o privilégio de viver a experiência que é ouvir e dançar ao som de Garnier ao vivo.
DJ MARKY
Cara, eu conheci o Laurent quando ele veio para cá pela primeira vez, quando ele veio tocar na Sound Factory, o clube no qual havia sido residente até o ano anterior. Eu sempre admirei ele como artista, tocava algumas de sus faixas, mas só fui conhecê-lo como DJ alguns anos depois quando ele retornou e o encontrei em alguns festivais na Europa. Ele tem uma musicalidade incrível, realmente invejável, a música está sempre em primeiro lugar. Tudo que importa para ele é mostrar música boa para o público, independente do tipo. E acabei tocando com ele em três ocasiões nas quais dividimos os decks e em três locais distintos do mundo: uma no Japão, uma no Skol Beats em São Paulo e outra no The End em Londres, que foi a primeira e fruto da ideia do Mr C. Nem preciso dizer que sempre foi um prazer fazer isso, ele sempre nos leva numa jornada musical fantástica e é fascinado pelo que faz. Lembro até que toquei um dubplate 10 polegadas de uma faixa do Calibre pela qual ele se apaixonou. Como não havia sido lançada ainda, o Laurent pediu na hora o contato do artista para pedir que enviasse para ele poder tocar. O Calibre me falou que ele entrou em contato logo na sequência.
MAU MAU
Em meados dos anos 90, quando fui residente do Hell’s Club, organizei com alguns amigos a primeira visita do Laurent no Brasil. Guilherme Menegon fez o contato e explicou sobre a cena underground que rolava por aqui. Para nossa surpresa, ele aceitou o convite de cara, cobrando um cachê simbólico para facilitar nosso sonho. Porém, um mês antes da data acertada e já com contrato assinado, o Clube Columbia, responsável pela contratação, cancelou o acordo, alegando que seria muito arriscado trazer um DJ pouco conhecido no Brasil. Ficamos desesperados e muito tristes, mas buscamos outras alternativas. Conseguimos ajuda de muitos amigos, alguns ofereceram permutas em restaurantes para bancar a alimentação, outros ficaram responsáveis pelo transporte, negociamos com o Club Latino e Sound Factory outras duas apresentações para cobrir os gastos e eu acabei pagando as passagens aéreas. Felizmente deu tudo certo e as apresentações foram um sucesso. Aqui no Brasil contamos o ocorrido, o quanto foi difícil cumprirmos com o acordo e ele gentilmente me convidou para participar do festival Trans Musicales, na cidade de Rennes, França, como forma de retribuir nosso esforço. Além do ser humano fantástico o que mais posso dizer desse superstar? O que todos já sabem: Profissional exemplar com técnica impecável de mixagem e repertório que transita por vários estilos musicais, conduzindo o público a uma viagem épica inesquecível.
CHICO CORNEJO
Eu era um jovem mancebo que ajudava o Marky a apresentar seu programa Phuture Trax na Metro FM do Armando Martins e que era o programa que rolava logo antes do da Sound Factory na programação. Saí do cursinho e fui para a rádio, como sempre fazia aos sábados, encontrar meu melhor amigo e fiel escudeiro de clubbing. Assim que cheguei, ele falou: “Cara, você não vai acreditar! Tem um gringo aqui e ele é muito gente boa!”. Eu fui me apresentar e tentei ser educado com meu limitado inglês à época e ele parecia que conhecia todo mundo há 10 anos, supercaloroso e amigável, realmente fiquei embasbacado e meio starstruck, já que gostava de inúmeras faixas dele e era o primeiro artista internacional que eu conhecia de fato. Foi logo ali que aprendi que uma estrela, no nosso mundo, nos aquece pela proximidade e intensidade. Daí em diante procurei ir a todas as vezes em que ele se apresentou aqui e cada uma foi um lembrete do que faz um DJ e por que eles são meus ícones artísticos favoritos.
OSWALDO MR GROOVE
Cara eu me lembro que na época o Mau Mau foi quem o trouxe para tocar num evento do Angelo Leuzzi e na última hora não me lembro agora o porquê essa festa furou. Estava tudo pronto para o Laurent tocar, foi quando Mau Mau me procurou para ele tocar na Sound… Pow na hora fechei com ele! Na pista foi um absurdo, o cara deu uma aula fora o grande número de hits que lançou por aqui. Foi marcante, uma noite antológica
JULIÃO
Um dos maiores prazeres da minha vida como DJ foi ter a honra de poder ter dividido cabine com um artista que para mim define perfeição!