Campanha de Redução de Danos MNS: Ketamina pode até parecer inofensiva mas traz uma série de riscos. Saiba mais e seja consciente
Com essa matéria sobre Ketamina, damos início a uma série de textos sobre redução de danos aqui no Music Non Stop, que visam a levar informação direta e reta sobre o uso de drogas. A ideia é debater sobre o consumo, em vez de colocá-lo sob o tapete e fingir que ele não existe, especialmente na noite. A falta de diálogo, que não é exclusividade da cena brasileira, não ajuda em nada. Aliás, tem feito com que mais e mais gente acabe tendo experiências péssimas – quando não fatais – com o consumo de drogas.
Sob a lente da verdade, temos a Ketamina, um anestésico sintético que passou a ser usado com fins recreativos nos anos 70 e que, nos últimos 10 anos, se tornou uma substância tão banalizada que já ganhou o apelido de “K” (quei, que é como se lê a letra K em inglês) e sua “onda”, “K hole”, já que descreve a sensação de cair num buraco.
Para entender melhor do que se trata e o que a droga pode causar, conversamos com usuários e especialistas, como o Psicólogo Gabriel Pedroza, do Projeto de Redução de Danos ResPire e o coordenador geral do PROAD (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), da Unifesp, o professor Dartiu Xavier da Silveira.
Mais uma vez, o intuito não é dar lição de moral, mas sim trazer informação para você saber direitinho em que bonde está entrando.
AFINAL, O QUE É KETAMINA?
Um pouco de aula de história. A Ketamina surgiu em 1962, quando foi sintetizada pela primeira vez. No início chamada de CI-581, e foi desenvolvida como uma derivativo do PCP, uma outra droga anestésica. O uso do PCP como anestésico passou a ser substituído pela Ketamina, pois o PCP deixava os pacientes sob efeitos alucinógenos por maior duração, o que por sua vez dificultava na recuperação da consciência. O PCP chegou a causar sintomas de psicose nas pessoas que foram submetidas ao seu uso.
O uso da Ketamina só passou a ser aprovado em humanos em 1965, quando a substância passou a ser utilizada como anestésico em procedimentos cirúrgicos de menor escala. A droga foi categorizada como um anestésico dissociativo, ou seja, além de ter a função anestésica, o paciente poderia experimentar possíveis delírios, ter a percepção da visão e dos sons comprometidos e também a sensação de destacamento do corpo ou até mesmo da realidade.
Foi na década de 1970 que a Ketamina começou a ser usada com fins recreativos. Na Argentina, chegou a ser usada como método de indução às terapias de regressão, e em outros lugares foi associada a experiências de espiritualismo New Age. Mas a virada da chave para o consumo recreativo aconteceu mesmo quando dois livros sobre o consumo foram publicados, o Journeys into the Bright World, escrito por Marcia Moore (que por sua vez era astróloga, professora de yoga e herdeira da rede de hotéis Sheraton) e Howard Alltounian; e The Scientist, de John Lily.
Do final dos anos 1970 para os anos 1980, a droga passou a ser vendida ilegalmente em diversas formas: capsulas, pó, tabletes, cristais, líquido e também em soluções injetáveis. No meio dos anos 80, a droga já era velha conhecida da noite. A partir daí, a Ketamina passou a ser misturada com outras substâncias, como o MDMA, e muitas vezes comercializada em comprimidos, vendida como se fosse ecstasy. No final dos anos 1990, o consumo recreativo já tinha virado comum na cena clubber.
Atualmente, a Ketamina tem sido usada em pequenas doses como uma alternativa no tratamento de depressão e tem sido eficaz para suicidas que não obtêm resultados com tratamentos convencionais. Só que, ao contrário do uso recreativo, a aplicação da Ketamina para o tratamento da depressão é lenta, uma infusão venosa que demora de 30 a 40 minutos. Quem já experimentou o tratamento afirma que não teve viagem nenhuma, mas que recobrou a vontade de viver depois de uma ou duas aplicações.
USO RECREATIVO
No Brasil, a droga se tornou popular durante o boom da cena clubber nos anos 90 e seguiu sendo utilizada nos anos 2000. De acordo com Gabriel Pedroza, do projeto de redução de danos ResPire, a Ketamina dá as caras em diversos tipos de festas. Os relatos de quem já usou Ketamina variam de sensações de leveza e contato com experiências transcendentais até bad trips das brabas – e é aí que mora o problema. Há uma série de cuidados a serem tomados para não cair nesse estado, bem como dicas do que fazer para sair dele com segurança.
Quando a pessoa tem uma bad trip usando Ketamina ela entra num K-Hole, um estado de desrealização, dissociativo, de desfragmentação do eu e da realidade. Ou seja, a pessoa deixa de conseguir compreender onde ela está, por que está, por quanto tempo está e até mesmo o que ela e tudo ao seu redor são. Entre os relatos que ouvimos de pessoas que entraram nesse estado, o mais comum foi o fato de elas terem ficado incapazes de dizer ao certo quanto tempo o K-Hole durou, já que “parecia uma eternidade” para muitos. Elas deixaram de se entender como “pessoas”. Uma delas contou que ao olhar para o namorado não conseguia entender que ele era um ser humano.
CERVEJA BATIZADA = ADEUS, CONSCIÊNCIA
Outro efeito colateral que pode acontecer é a amnésia e, justamente por isso, a Ketamina tem sido associada à Droga do Estupro ou Boa Noite Cinderela. Quando usada com esse propósito, a dose de Ketamina é muito alta, o que faz com que a pessoa tenha um branco de um período de tempo e só recobre a consciência, muitas vezes, no dia seguinte.
Uma das vítimas desse uso com quem conversamos contou que conheceu uma pessoa na saída de uma festa em São Paulo e aceitou dela um gole de cerveja. Apagou ali mesmo e só recobrou a consciência no dia seguinte, ao acordar num ponto de ônibus, sujo com o próprio vômito e fezes e sem saber quem era. Por quase uma hora não conseguia falar ou andar. Para chegar até sua casa, trajeto que demoraria 20 minutos, levou duas horas. Depois de fazer exame de sangue no IML, foram apontados dois tipos de Ketamina, e a médica que o atendeu pontuou que a dose aplicada foi alta, já que, mesmo 24 horas depois do ocorrido, ainda havia traços da droga no sangue – normalmente a Ketamina desaparece do sistema sanguíneo depois de algumas horas. Além do trauma psicológico, a vítima ainda foi roubada, teve todos os limites dos cartões estourados e até senhas das redes sociais alteradas.
Apesar dos momentos de terror que a Ketamina pode causar, o professor Dartiu Xavier, do PROAD, afirma que a droga relativamente segura. O problema reside na alta dosagem e também no uso constante, que pode causar dependência (apesar de ser um fato raro). Quando o usuário exagera na quantidade, existe um risco sério de falência respiratória, que é justamente a causa mais comum de morte por Ketamina. Outras complicações que podem acontecer são a dificuldade de respiração, além da possibilidade de um coma. No caso de uma overdose, não dá pra perder tempo: tem que chamar a ambulância e correr pro hospital.
São muitas as dúvidas a respeito dos efeitos dessa droga, que vem sendo usada muitas vezes sem o menor conhecimento a seu respeito. Leia na entrevista com o professor Dartiu Xavier e com o psicólogo Gabriel Pedroza do ResPire respostas bem diretas para dúvidas muito comuns acerca do uso de Ketamina.
MNS – Como a Ketamina age no cérebro e quais seus efeitos a curto e longo prazo?
Dartiu Xavier – A Ketamina é um anestésico utilizado de forma recreacional para se obter estados alterados de consciência. Embora seja uma droga relativamente segura, se for usada em doses altas ela pode induzir a experiências desagradáveis (sensações de quase-morte ou buraco negro). Se o uso for constante e frequente, pode haver dependência, mas isto é extremamente raro de acontecer.
MNS – Os efeitos colaterais da Ketamina diferem do homem para a mulher?
Dartiu Xavier – Aparentemente não há diferença nos efeitos entre homens e mulheres, apenas há uma questão que vale um alerta especial às mulheres: por terem, em geral, um peso menor, deveriam também utilizar doses menores.
MNS – Qual é o efeito imediato da Ketamina?
Dartiu Xavier – Sob o efeito da droga, as pessoas podem ter sintomas de desrealização, ou seja, perdem a noção da realidade, do que se passa ao redor. Para alguns, essa sensação é desejada, para outros ela acaba sendo incômoda.
Gabriel Pedroza – Os efeitos dependem da dose. Em doses baixas, é comum experienciar uma distorção das percepções sensoriais, analgesia, pensamento desorganizado e visão desfocada. Já em doses médias e altas, a pessoa tem mais chances de sofrer de enjôos (especialmente se estiver de barriga muito cheia), ter experiências de alucinações, derrealização e experiências fora do corpo, o que já seria considerado um “K-Hole”.
MNS – A longo prazo, quais os efeitos do uso da Ketamina, ainda que “recreacional”, digamos, uma vez ou duas por semana?
Dartiu Xavier – O único problema psiquiátrico a longo prazo seriam eventuais crises de pânico. A Ketamina recentemente tem sido utilizada na psiquiatria por seus efeitos antidepressivos.
Gabriel Pedroza – O uso recreativo de Ketamina tem crescido ao longo dos anos, mas é relativamente novo quando comparado a outras SPAs (substâncias psicoativas). Há relatos e estudos sendo feitos sobre os possíveis danos no sistema urinário por conta de um uso abusivo da Ketamina; há casos na Europa, onde o uso é mais antigo e frequente que no Brasil, de pessoas que tiveram inflamações severas na bexiga por conta de um uso extremamente abusivo e frequente.
MNS – O que fazer no caso de uma overdose, há algum procedimento que possa ser conduzido por pessoas leigas antes da chegada do SAMU?
Dartiu Xavier – No caso de usar uma quantidade maior da droga, embora possa haver uma experiência de quase-morte, recomenda-se que o usuário fique deitado de lado, na presença de alguém conhecido que o tranquilize até passar o efeito. Riscos de overdose estão relacionados ao consumo de Ketamina associado ao álcool ou outras drogas.
REDUZINDO DANOS
Não vamos ser hipócritas aqui, as pessoas tomam coisas. Então, se for pra tomar, siga um protocolo para evitar ao máximo problemas maiores. Se estiver em grupo, é importante que pelo menos uma pessoa fique sóbria. Se todo mundo estiver muito doido, não vai dar certo se alguém passar muito mal e precisar de ajuda – isso é básico.
Não misture Ketamina com outras substâncias, como por exemplo, o álcool. Por serem duas drogas depressoras do sistema nervoso central, elas podem potencializar efeitos comuns entre ambas, como a diminuição na respiração e na coordenação motora, causar náuseas e vômitos, levar a um coma e até à morte em doses muito elevadas. E o álcool é justamente a droga que as pessoas mais usam em conjunto com qualquer outra coisa.
Outro fator importante é sempre estar bem alimentado e hidratado antes de consumir qualquer coisa. Se for cheirar, não compartilhe o canudo, pois existe o risco de transmissão de hepatite. Também não cheire sobre superfícies sujas – alô, banheiro sujo da boate! – e, pelo amor de Deus, nem pense em compartilhar seringas! Outra coisa que vale a pena ficar esperto é com o funcionamento saudável do trato urinário, o uso abusivo de Ketamina pode causar problemas sérios no sistema urinário e renal, como aconteceu com este usuário na Inglaterra.
Agora se você é produtor de festa e busca levar um apoio para reduzir danos no seu evento, você pode entrar em contato com o pessoal do ResPire, que eles montam um posto na sua festa e dão todo o suporte.
Confira abaixo nosso papo sobre redução de danos com o Gabriel Pedroza.
MNS – Conte um pouco sobre a atuação do ResPire.
Gabriel Pedroza – O projeto busca estimular a reflexão, o auto-cuidado e o conhecimento sobre o uso de drogas em contextos de festas. Visamos a promoção da saúde e bem-estar e um uso mais seguro de substância psicoativas.
MNS – Vocês já atenderam pessoas sob o uso de Ketamina em algum dos mutirões que vocês fazem? Como foi?
Gabriel – Já fizemos alguns atendimentos. Fizemos um atendimento a um rapaz que usou uma dose muito alta de Ketamina e foi trazido pelos amigos até o nosso estande. Ele tava muito branco, pálido, caído, praticamente desmaiado. Estava no que é chamado de K-Hole. Ele ficou de 20 a 30 minutos deitado, com os amigos perto esperando passar o efeito. O K-Hole é um estado dissociativo, onde a pessoa não consegue entender muito bem onde ela está, ou quem ela é ou às vezes até o que ela é. Acontece uma desfragmentação. Aos poucos ela vai voltando, e o que fazemos é fornecer um espaço seguro para que aquele usuário consiga elaborar o estado de consciência ou se não for algo elaborável, para que ele possa ir voltando em um local seguro. Então deitamos ele, ficamos observando para ver se ele vomitava, pra ele não engasgar no próprio vômito, e também observamos a temperatura dele. Conforme ele foi voltando, fomos dando água, fomos conversando com ele, para ver se ele estava consciente de onde estava, das coisas que estavam acontecendo ao redor dele. Depois de algum tempo ele ficou bem e voltou pra festa. Depois disso não houve nenhuma complicação.
MNS – Quais as maiores medidas a serem tomadas para redução de danos quando utilizar a droga?
Gabriel – Não compartilhar canudos, pois é aí que a pessoa pode transmitir ou contrair hepatite. Não utilizar superfícies sujas, sempre usar uma superfície limpa para evitar que o usuário cheire bactérias, sujeiras que podem fazer mal para o pulmão, para a saúde dele. Saber o que está tomando é uma coisa que vale pra todas as drogas. Não é por que alguém diz que está com uma Ketamina pura que isso é verdade. E muitas vezes nem se trata de má fé
MNS – Se alguém tiver uma overdose, o que deve ser feito?
Gabriel – O ideal é procurar um hospital imediatamente. Se a pessoa estiver numa festa, ela pode procurar a equipe médica – todo evento acima de 500 pessoas é obrigado por lei a ter uma equipe médica à disposição.
Como já disse o sábio DJ Seth Troxler: “eu acho que a Ketamina é a heroína da nossa época. Nossa, eu acho horrível”. Seth Troxler segue viajando pelo mundo mostrando que, apesar de curtir a vida adoidado, soube manter a cabeça no lugar. E você, que tal se acabar na noite sem deixar que ela acabe com você?
Saiba mais sobre Ketamina em:
Ketamine.com
ResPire Redução de Danos
PROAD
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