Cena de A Tiger In Paradise José González Imagem: Divulgação

Há beleza, mesmo na paranoia: José González expõe sua saúde mental no belo doc “A Tiger In Paradise”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Retratando a luta da estrela do mundo indie folk, documentário já está disponível pela MUBI

O que é real? O que “realmente” existe?

A pergunta mais sacana de todos os tempos é tema de diversas teses filosóficas desde os princípios da humanidade, e vem ganhando, ao longo da era contemporânea, nuances espirituais e quânticas (realismo, empirismo, mecanicismo, e por aí vai), com a finalidade de gerar um consenso sobre como cada indivíduo percebe o mundo, as coisas, as pessoas e o sentimentos a partir da sua experiência.

Se cada um percebe de uma forma específica e própria, logo, nada é real?

Jose Gonzáles - A Tiger In Paradise

José González. Foto: Divulgação

O cantor sueco José Gonzalez convive com problemas psiquiátricos que, quando em crise, distorcem a estrutura de comparações e interpretações dos elementos de sua vida de uma forma que outras “realidades” invadem seu dia a dia, a ponto de perceber, como expõe no ótimo documentário A Tiger In Paradise, dirigido pelo amigo de longa data Mikel Cee Karlsson, o que não existe como real.

Os surtos geram visões claras, para Gonzalez, de situações inexistentes para outros. Podem ser de paisagens a situações, até divagações perceptivas. Um olhar da esposa transmite uma trama que ela estaria perpetrando contra ele. O voo de um pássaro em seu quintal, uma mensagem que o universo estaria lhe transmitindo, de que algo grave vai acontecer. Ou pior, aves robôs espiãs do governo.

O filme é gravado em um momento pós-paternidade do músico, o que o ajuda muito em suas definições do que é real, e da composição, gravação e lançamento de seu último álbum, Local Valley.

“Viver um momento de surto psicótico é entrar em uma ilusão pessoal, uma experimentação do mundo que é unicamente sua, e que ninguém mais compreende. Mas, quando você divide esta ilusão com um grande número de pessoas (através da música), ela não é mais chamada de psicose. Será chamada de convicção, fé ou crença” — descreve Gonzales, ao violão, em uma das cenas do documentário.

Dono de uma complexa coleção de doces hinos do indie folk, por onde o sueco de raízes argentinas vem compartilhando sua ilusão com um montão de fãs (esteve em São Paulo recentemente, para um show no Cine Joia), José vive em uma cabana em uma tranquila região rural da Suécia, onde vai destilando suas realidades em meio à rotina.

“Somos humanos procuradores de problemas”, ele me diz. Filosofa um pouco, também, sobre a religião, meio em que “90% das pessoas do mundo acreditam em alguma força sobrenatural” — uma das ilusões divididas entre um grande número de pessoas, como descreveu.

O cenário é comum em países onde a qualidade de vida abrange a imensa maioria da população. Sem uma conta bancária zerada e uma geladeira vazia, momento em que qualquer terceiro-mundista cairia de joelhos para rezar por um bico, um emprego fixo ou uma herança de um tio desconhecido, a própria necessidade da fé vai se tornando desnecessária. A falta de alguém para quem se possa transferir a responsabilidade sobre o desconhecido e o inesperado, traz ao ser humano o imenso peso (milhares de toneladas) da “realidade”, da qual não somos capazes de suportar.

“Apesar dos diferentes modos de vida ao redor do mundo, alguns sentimentos são comuns a todos, como se sentir sozinho no universo”, diz González, que conversa com o Music Non Stop ao lado do diretor do filme, Mikel Cee Karlsson. Na condição de um entrevistador falando do Brasil, fodido de grana e em meio aos corres do dia a dia, discordo silenciosamente por um problema, mas logo me dou conta de quão ridículo é meu pensamento.

José González

José González e Miker Cee Karlsson. Foto: Divulgação

O mundo vive uma pandemia de saúde mental, a ponto de os medicamentos psiquiátricos baterem recordes de vendas ano após ano, aliviando uma multidão que vive tendo de sustentar um sistema social e econômico rachado. Todos estamos apagando incêndios com conta-gotas.

Então, apesar de sua negativa, percebo que A Tiger In Paradise é, sim, um suporte generoso a quem compartilha de suas dores.

“O filme não é para ajudar as pessoas que sofrem com os mesmos problemas que eu”, diz, em tom mais modesto do que sincero. Sei não.

Recheado de cenas serenamente captadas do dia a dia de Gonzales, o doc é também um guia sobre como evitar crises mentais. Após o nascimento de sua filha, o artista determinou-se a não mais sofrer com a doença, dedicando-se metodicamente a cuidar da saúde com hábitos saudáveis, que incluem cuidados com a alimentação, exercícios, alongamentos, meditações e até o acompanhamento, através de um aplicativo, de atividades que oferecem mais ou menos risco de mortes acidentais.

Eu mesmo, que ainda não ando psicótico, resolvi cuidar da saúde (as famosas resoluções de ano novo), após assistir ao filme.

Falando da obra em si, o filme é editado primorosamente por Karlsson, com fotografia e sonorização belíssimas, com o propósito de incitar o expectador a compartilhar da serenidade da rotina pessoal de José González, ou sua realidade. Conceito difícil e enganoso, pergunto o que, para ele, é real, quando se dedicou a passar meses filmando o dia a dia de um amigo de longa a data.

“Eu procurei [durante as filmagens] detalhes específicos de seu dia a dia, mas isso depende muito do que você está tentando enquadrar. Mesmo os mais fugazes momentos do filme são baseados em ideias subliminares, como pássaros voando no céu, obviamente relacionados com os momentos de paranoia de José.”

Mikel cita o momento em que Gonzales descreveu uma de suas crises no documentário, em que ele chegava a pensar que as gaivotas que sobrevoavam sua casa, na verdade, eram robôs criados pelo governo para espionar sua vida. A naturalidade com que experiências como esse são captados no documentário são realmente instigantes.

Em dado momento, Gonzles está compondo uma das músicas de Local Valley, sentado no sofá da sala, com violão no colo, caneta e papel sobre a mesa de centro. Com a câmera posicionada do lado de fora, vemos, pelo reflexo de uma janela, uma gaivota voando, ouvimos o seu canto, e então o artista para de tocar e olha para ela por alguns momentos. Há beleza, mesmo na paranoia.

Eis o mote de A Tiger In Paradise. Um animal faminto, furioso, que bagunça uma vida simples e completa com sua irracionalidade. José Gonzalez vive bem, em um lar envolto pelo verde, lindos lagos. Sua obra é celebrada por fãs de todo o mundo. Ama sua mulher e filha, com quem convive em harmonia.

Mas um tigre sempre estará rondando sua casa.

A Tiger In Paradise pode ser assistido na plataforma de streaming MUBI, onde estreou na última sexta-feira (08).

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

× Curta Music Non Stop no Facebook