John Lennon John Lennon. Foto: Reprodução

Como foi a última entrevista de John Lennon

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Há 45 anos, ex-Beatle recebia jornalistas da rádio RKO em sua casa; horas depois, seria assassinado por Mark David Chapman

“Bem, como é para vocês um dia comum?”, pergunta Dave Sholin, radialista da RKO, para John Lennon, na tarde de 08 de dezembro de 1980, há 45 anos. Sem saber, o astro estaria descrevendo o último dia de sua vida. Às 17h, o repórter, acompanhado dos colegas Laurie Kaye, Ron Hummel, Bert Keane e o fotógrafo Paul Goresh, despediram-se do ex-Beatle e deixaram o edifício Dakota, onde ele e Yoko Ono viviam com o filho Sean. Lennon os acompanhou até a calçada, quando um desconhecido pediu um autógrafo na capa de uma cópia do álbum Double Fantasy. Goresh aproveitou para sacar a câmera e fotografar o momento. Ele estava registrando o assassino de John Lennon, que voltaria quatro horas mais tarde à porta do prédio, armado.

John Lennon

John Lennon assinando autógrafo para Mark David Chapman. Foto: Paul Goresh/Reprodução

“Bem, é meio básico. Se não estamos gravando um disco, eu acordo por volta das 06h da manhã. Vou à cozinha, faço café, tusso um pouco, acendo um cigarro. Os jornais são entrgues às 07h. Sean acorda umas 07h20. Eu checo seu café da manhã, como um pouco com ele. Não cozinho mais, mas fico atento ao que ele está comendo. Nos dias em que Yoko está muito ocupada, a encontro já no escritório quando acordo, e levo um expresso para ela. Fico de bobeira pela casa até umas 09h, quando Helen, a babá de Sean, e eu decidimos o que eles farão durante o dia. Então desço até o escritório para espiar o que Yoko está fazendo.”

Aquele não era um dia “básico”. Lennon, Yoko e banda haviam lançado Double Fantasy há duas semanas, e ambos estavam tratando da promoção do disco, com compromissos de divulgação na imprensa. Três dias antes, havia dado uma entrevista de nove horas para a Rolling Stone. Quando o pessoal da rádio RKO chegou ao Dakota, encontraram o casal posando para uma sessão de fotos com Annie Leibovitz, para a capa da revista que traria a longa entrevista. Mal terminaram as fotos e se sentaram na sala com os repórteres, por volta das 14h. A conversa segue sobre rotina, a vida em família e a vida ao lado do filhinho.

“Eu não sei se é por que ele nasceu no mesmo dia que eu (09 de outubro), o que é engraçado, pois nos torna quase gêmeos. Quando ele não me vê por alguns dias, porque estou muito ocupado ou deprimido, ele começa a se impor na minha rotina, querendo atenção. Sinto como se não tivesse o direito de ter mais essas ‘depressões artísticas’, com vontade de fazer músicas tristes e miseráveis. Então, começo a desdenhar da depressão. Eu lembro que preciso estar bem se ele pegar uma gripe ou prender o dedinho na porta. Aí, tudo passa.”

Loucos por teorias conspiratórias dizem que a pessoa, no dia de sua morte, se sente diferente. Esta entrevista  desmente a ideia. O papo com os entrevistadores rola leve, e mostram um músico tentando conciliar as preocupações com o mundo, a política e a guerra com as pequenas atitudes dentro de casa, como evitar que Sean assista a comerciais de televisão. “São requisições constantes pelo consumo de lixo, sabe?”

Ao contrário de muitos rockstars de sua geração, Lennon e McCartney tomaram o caminho oposto da ausência em seus segundos casamentos. Se juntaram com companheiras artistas e trouxeram o ambiente criativo para dentro de casa, onde podiam conviver com os filhos o tempo todo. “Me sinto um privilegiado, mas não julgo outros pais. Às vezes, é melhor passar uma hora por semana curtindo intensamente a ser um babaca com o filho todos os dias.”

Em 1980, John Lennon era o sonho de entrevista de qualquer repórter. Havia sido da maior banda de rock do planeta, era um ativista político ferrenho sem medo de emitir suas opiniões, discorria sobre sua vida pessoal (estava finalmente feliz com um relacionamento e aparentemente resolvido com a paternidade) e falava pelos cotovelos, presentando a imprensa com frases de efeito como “eu já desisti de ser um popstar”. Por isso, apesar de o motivo da entrevista ser o novo álbum, todos ficavam à vontade para perguntar ao cara sobre sua intimidade.

Quase metade do tempo da entrevista é gasto com o papo sobre os filhos. Yoko finalmente entra na conversa, que se torna quase uma sessão de terapia. Ambos concordam e discordam sobre assuntos triviais no dia a dia de Sean e, ao final das respostas, concluem que não há como saber exatamente o que é certo na criação de um filho. Fazem o melhor que podem. Não são capazes de dar nenhum conselho a quem ouviria aquela entrevista mais tarde.

Apesar de “se sentir culpado” por estar fazendo um novo disco e deixando de dar atenção ao filho pequeno, Double Fantasy finalmente foi lançado, marcando um retorno de John aos estúdios, cinco anos após ter lançado Rock’n’Roll. Os repórteres perguntam de onde veio essa vontade de voltar a fazer música. “Veio de repente. Acho que fui possuído pelo demônio do rock’n’roll. Do nada, tive uma diarreia de criatividade.” Um exemplo das tais frases de efeito que todo entrevistador espera ouvir.

Durante o tal espasmo criativo, Lennon quis contar para o mundo o que estava fazendo, como havia amadurecendo e estava feliz. Mark David Chapman, o lunático que atirou no artista, tirou-lhe o que seria sua melhor fase, quando finalmente fazia as pazes com o mundo. Largado pelo pai e pela mãe, o ex-Beatle viveu como um garoto mimado, tanto na vida artística quanto nos relacionamentos pessoais, até que amadureceu tardiamente.

Double Fantasy era completo de confissões. Em Woman, canta que Ono foi a mulher que finalmente lhe mostrou “o verdadeiro significado do sucesso”. Em Beaultiful Boy, feito para o filho Sean (e por tabela, para o anterior, Julian), diz que “a vida é o que acontece com a gente enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”. O mais trágico momento do álbum é quando canta, na mesma canção, “mal posso esperar para te ver envelhecer. Mas acho que nós dois teremos de ser pacientes”. Triste demais.

No momento em que concediam aquela entrevista, John e Yoko já estavam juntos “há mais tempo do que os Beatles”. Claro que, em determinado momento, a ex-banda, e principalmente os motivos de seu final, vieram à tona. Apesar de não negar fogo, evitou repetir o que tanto já havia dito. Concentrou-se em sua parceria com a esposa e o quanto ela era importante: “O sentimento de quando a encontrei foi quase o mesmo de quando conheci Paul. De uma parceria de vida”.

E quando o assunto finalmente volta a ter tons mais sofisticados, como o poder da arte em tempos tão loucos, ele volta a ser o gênio de sempre. Ao ser perguntado se a música serve para educar ou entreter as pessoas, responde de bate pronto: “serve para se comunicar…”.

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E para se eternizar também. John Lennon se comunica com seu público até hoje, 45 anos após ser retirado à força do Planeta Terra.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.