Banda icônica do rock alternativo manteve o seu descompromisso com o hype e tocou o terror na Barra Funda, em São Paulo
A barra-funda, em São Paulo, ainda é um local em que as senhorinhas colocam as cadeiras na calçada para papear e as crianças jogam bola na rua. Isso ao lado de botecos lotados, com pessoas animadamente curtindo um som, basicamente ativistas e modernetes em busca de brasilidades e do novamente bombado pagode anos noventa. Tem também churrasquinho com forró para o povão e funk e trap para a molecada. A quinta-feira costuma ser bem agitada por lá. Mas hoje estamos fora desse espectro, então fomos conferir um rolê especialmente empolgante para os milhares de fãs: o show do Jane’s Addiction na Áudio. Somando-se à temperatura que fazia na cidade, o vapor que sobrava no interior do clube prenunciava uma noitada fervida e ruidosa, do jeito que a gente gosta.
A banda é um dos principais nomes do chamado rock alternativo, termo vago e genérico para um monte de grupos que ajudaram o gênero voltar a se impor e conquistar uma nova geração de adolescentes nos anos noventa. Foi formada em meados dos oitenta em Los Angeles, na Califórnia, pelo vocalista Perry Farrell, o baixista Eric Avery, o baterista Stephen Perkins e o guitarrista David Navarro. Como toda banda de rock que se preze, teve tretas e fraturas por causa de dinheiro, bebedeira, drogas e mulheres, o que levou a diversas mudanças na formação, que chegou a contar com Flea (Red Hot Chilli Peppers), Duff McKagan (Guns ‘n Roses) e Chris Chaney (Alanis Morissette).
Em uma carreira de quase quarenta anos, lançou apenas quatro discos de estúdio. Essa pequena quantidade de álbuns e as interrupções de estrada acabaram favorecendo para evitar o desgaste e a superexposição. Conduzida quase com mão de ferro por Farrell que, inclusive, entrou na justiça contra os companheiros e ganhou o direito de receber maior porcentagem sobre os royalties das canções. Claro que o fato gerou grande mal-estar e foi uma das causas de rupturas no grupo. Não obstante, os integrantes parecem se dar relativamente bem, com idas e vindas e participações em projetos e bandas uns dos outros, como o Porno For Pyros, e com idas e em bandas como o RHCP, com quem mantêm uma relação quase promíscua.
O show faz parte de uma nova turnê mundial e foi uma prévia para a apresentação que fizeram no Lollapalooza no sábado, 25. O evento foi criado pelo próprio Farrell em 1991, e aclamado como um dos festivais mais legais do mundo à época. Após altos e baixos, a marca foi vendida para grandes corporações do entretenimento, que o tornaram gigantesco, mas com características bem diferentes do original. Basta ver a escalação do primeiro Lolla, que ocorreu em formato de turnê, para perceber o quanto a música pop mudou desde então: Siouxsie and the Banshees, Nine Inch Nails, Butthole Surfers, Living Colour, Ice-T, Rollins Band e Violent Femmes.
Nessa noite, todos os ingredientes que se espera do grupo estavam presentes; pitadas de folk psicodélico, hard rock, glam e metal, tocado com a energia do punk, acrescido de doses de sexo, decadência e desilusão, fazendo do show uma saborosa experiência. O Jane‘s Addiction foi uma ótima novidade quando surgiu jogando lama no lamê do hair metal farofa que imperava à época. É um som mais sujo, com influência do hardcore, mas também tem em muitos momentos uma pegada funk e até mesmo um pouco de goth rock. Essa turnê deveria contar com a formação original da banda, porém, Navarro ainda se recupera das sequelas de uma COVID longa. Para seu lugar foi convocado Josh Klinghoffer (RHCP).
Abrem com Up The Bitch e Trip Away, elevando ainda mais a temperatura do local, quando Farrell diz que todos têm que ficar bem naquela noite, que mesmo quem estivesse sozinho iria se dar bem, porque “Nós trouxemos algumas putas!”. Então, ao som de Whores, entram dançarinas em trajes sumários que passam a se exibir em estruturas laterais e atrás da bateria. Já faz parte da mística do grupo e de Farrell uma postura hedonista, com festas regadas a muitas substâncias. Ele inclusive alimentou uma história de ter sido cafetão em algum momento da vida. De certa forma, é um alívio assistir a um show sem mensagens moralistas ou lacradoras.
Em dado momento, Farrell, com uma garrafa de vinho, propõe um brinde a todos os entes queridos que cada um ali já perdeu e que ele espera que estejam no paraíso. Então bebe no gargalo e assim o faz durante toda a noite. O intrigante foi que, logo após dar essa talagada, ele pega uma caneca com algo que se parece chá e manda outro gole para, em seguida, de um copo menor, virar um terceiro líquido. Sigo refletindo aqui. Lá pela metade, é hora da já tradicional batucada dos adictos. Comandados por Perkins, os outros instrumentistas se postam à frente do palco e, cada qual com um tambor, performam uma intensa pancadaria tribal, enquanto Farrell canta Chip Away, em algo que alguém poderia dizer ser praticamente uma apropriação cultural de dança da chuva. Mas até que é legalzinho se você nunca viu um percursionista baiano em ação.
Como era previsto, tocaram um repertório calcado nos dois primeiros álbuns e repleto de hits, como a já citada Up The Beach, mais Mountain Song e Ted Just Admit It…, do álbum de estreia, Nothing Shocking ou No One Is Leaving e Then She Did… e Obvious, do ótimo Ritual De Lo Habitual. Fecham o set com uma ótima performance de Stop!, voltam para o bis com o mega sucesso Jane Says, levando a platéia ao êxtase, e terminam definitivamente soltando os cachorros em Been Caught Steeling, fazendo pular os velhinhos presentes. Como muitas vezes já dito, não há nada chocante ou novo, contudo ainda funciona bem demais.
Klinghoffer é um guitarrista versátil e que faz bom uso dos pedais de efeito, criando climas que flertam com o space rock, ora solando em improvisações sobre temas que beiram o jazz, ora vigoroso e barulhento como um metaleiro. A cozinha segura com folga seus arroubos com Avery em boa forma, mantendo o baixo reto e competente, e Perkins suportando bem mais de hora e meia de show com sua excelente técnica percussiva. Farrell é o líder natural, e conduz o espetáculo com carisma e uma energia um tanto quanto sinistra. Algo nele remete a um daqueles vampiros de um bom filme B, entoando suavemente suas falas como se escondesse algo sob os dizeres. Os vocais turbinados de eco e reverb que pilota em sua caixa de efeitos completam a equação.
O público é de meia idade, mas há vestígios de sensualidade, caras, bocas, make, brilho, calça justa, meia arrastão, cabelos armados ou a falta deles, em muitos casos; bandanas na cabeça vêm em auxilio nessa hora. O clima era de camaradagem e celebração, com velhos amigos se reencontrando ou pais trazendo os filhos para curtir junto. Já se foi o tempo de gente em overdose pelos buracos que a banda tocava, mas ainda encontramos mulheres deslumbrantes em figurinos sensuais perdendo a linha de tanta bebida e porcarina. Mas a gente encarou bem o desafio e no final, já no after, ela estava dançando tão bem como as meninas do palco.