Texto e fotos Gabriel Cevallos, de Norberg
É provável que você nunca tenha ouvido falar do Festival de Norberg, e que poucos brasileiros tenham passado por lá ao longo de seus 17 anos de história. Eu mesmo só descobri o festival este ano, depois de uma pesquisa profunda sobre a cena eletrônica sueca. A Suécia como destino não foi por acaso. Em 2015, o Festival Kino Beat, do qual sou o organizador, estabeleceu uma parceria com a Embaixada da Suécia no Brasil, com a intenção de trazer ao país artistas suecos. Então, além de curtição, a visita teve razões estratégicas. Aproveito para agradecer à Embaixada que me proporcionou esse intercâmbio.
O pequeno vilarejo de Norberg fica a 2h30 de Estocolmo. Com aproximadamente 5.000 habitantes, é uma versão sueca de Twin Peaks, pequena, cercada por bosques e lagos, e sem muita ação durante o ano. Esse cenário se transformou entre os dias 28 e 31 de julho, quando cerca de mil pessoas, na sua grande maioria suecos e escandinavos, ocuparam o espaço que foi o motor do desenvolvimento da região, a antiga mineradora Mimerlaven.
O Noberg Festival é o mais antigo festival do gênero na Suécia e, possivelmente, o menor, por opção própria. A ideia é se manter pequeno e sem compromisso com marcas e patrocinadores fora do contexto. Distante da farra de marcas e logos, Norberg fica livre para oferecer uma programação extremamente avançada de música experimental, contemporânea, dance, e de outros desdobramentos artísticos como poucos festivais no mundo podem oferecer. Você sabe que está vivendo um sonho coletivo quando tem a informação de que, entre as mil pessoas presentes no festival, 300 são voluntárias, do pessoal do bar aos curadores, tudo é no amor.
EXPERIÊNCIAS SENSORIAIS NA ANTIGA MINA
A grande joia do festival certamente é o prédio da antiga mina, tanto pela sua arquitetura sólida e imponente, mas principalmente pelo seu interior. O lugar ainda se mantém basicamente o mesmo de quando estava em funcionamento, cheio de galerias, escadas, caldeiras, canos, concreto, ferro e toda sorte de material elétrico desativado. Esse cenário pós-industrial decadente, sonho de todo promotor de festas, é subvertido e transformado em um palco de música experimental, shows de música electroacústica, ambient, drone e audiovisuais. Blocos densos e hipnóticos de frequências, fumaça e luz criaram na antiga fábrica uma atmosfera que nunca tinha vivido, parecia uma das sessões de sonho coletivo dos surrealistas, galera com seus sacos de dormir e travesseiros deitados de olhos fechados, brisa total.
Yair Elazar Glotman é um músico e sound artist baseado em Berlim. No interior da mina, explorou com seu contrabaixo acústisco e tape loops a acústica do prédio de forma sublime, trilha sonora do sexo dos anjos.
A chinesa Pam Daijing é uma força da natureza. Atuando com performance e música, a apresentação dela foi cheia de ruídos, tensão e atmosferas cinemáticas. Persona non grata em seu país, foi considerada subversiva e pornográfica pelo regime político.
CLIMA COMUNITÁRIO E SUSSA
Se você busca um festival badalado com meninas de flores na cabeça, garotos sem camisa e muita loucuragem, não venha para Norberg. A experiência aqui é totalmente voltada para parte artística, não tem concessões, mas você vai se divertir mesmo assim. Os escandinavos parecem reservados e discretos, mas se entregam pra música e dançam bastante. A correria por aditivos fica em segundo plano, o que pra uns pode parecer chato, pra outros deixa o clima mais leve. Um indicativo de que Norberg é um festival peculiar são os banheiros: durante os três dias estavam sempre limpos e em condições de uso, algo impensável em outros lugares.
O público na sua maioria é composto por jovens que acampam na área reservada. Claro que tem zoeria, ninguém é de ferro. Uma boa porcentagem do público é de gente entre 40 e 60 anos, grupos de ravers veteranos que não deixam a chama apagar, mas que preferem o conforto das pensões e pequenos hotéis no centrinho, que fica a apenas 10 minutos a pé do festival.
A FORÇA DE NORBERG VEM DAS MULHERES
A Suécia é famosa por ser um país liberal e prafrentex, e isso é visível na programação do festival, com mais mulheres do que homens no line-up, algo muito raro e nada forçado. A presença feminina entre os voluntários também é maior, as tarefas são alternadas entre todos os postos; quem um dia ficou no bar, outro dia limpa o banheiro, e no outro carrega peso. Aqui não tem sexo frágil.
Não por coincidência, foram de mulheres as apresentações mais marcantes, o ethos de igualdade de gênero do festival talvez tenha me conduzido a olhar dessa forma as apresentações, mas o magnetismo das performances femininas foi algo comentando pelos corredores.
PALCO 303
Nem só de experimentalismo vive Norberg. A tenda 303 foi a mais festeira, mas claro que sem obviedades, até a jogação aqui é avançada. Novas propostas de dance music era o que se dançava na tenda.
O coletivo e label Staycore (abaixo), baseado em Estocolmo, foi o momento hype do festival: cinco DJs tocando por sete horas, passeando com molejo por beats globais, da rasteirinha ao regatton, do kuduro ao shangaan electro, remixes de pop e farofas avant-gard.
O inglês de Manchester Gareth Clarke foi um 220v na veia. Pense em Aphex Twin, Venetian Snares e toda a escola inglesa de hardcore, jungle e drum’n’bass processados por uma força esquizofrênica.
A mexicana Demian Licht foi a única artista latino-americana a se apresentar no festival, estreando seu live audiovisual Female Criminals. Techno sujo, cru e energético, sem referências latinas e voltado para o som alemão. A garota surge como a principal referência feminina do techno no México, com posicionamento feminista, é uma produtora de mão cheia e professora de áudio, a única mulher latino-americana a ter o Ableton Live ertified Training.
PALCO KRAFTWERK
Na antiga estação elétrica da mineradora, performances audiovisuais, experimentalismo e dança se encontravam. Impressionante como antigas fábricas são o cenário perfeito para shows e festas, da acústica ao visual tudo batia em harmonia. Massagem de grave, drone, techno, sons do apocalipse, UK bass, tarraxinha e neo-mantras pela noite, e pela manhã/tarde exibição de filmes e alguns workshops também rolaram pelo palco.
Lenda de Detroit, o DJ Stingray mandou um set cabuloso de electro, techno e footwork: som de bateria 808 batendo forte no peito e pista pegando fogo. No meio de tantos lives, o bom e velho DJ mostra como um par de toca-discos tem poder.
A misteriosa sueca TMRW se apresentou de máscara dentro de um Volvo cheio de fumaça na pista – o carro não era apenas cenografia, o seu porta-malas funcionou como um estúdio de gravação das músicas tocadas ao vivo, usando drum machines baratas e um antigo sintetizador Polysix. A música era algo indefinido, melódico, dramático, foi chamado de trance desconstruído e David Lynch on acid.
O clima de mistério, temáticas relacionadas ao fim do mundo e distopias da pós-humanidade conectaram muitas apresentações e artistas em Norberg, uma estética que resulta em sons hypereais, desconstruídos e violentos, mas também com um certo humor. O ápice dessa manifestação foi o live da dupla Amnseia Scanner, encoberto com fumaça e luzes epiléticas. O que se ouviu foi a música de pista do futuro, a trilha sonora de uma festa em uma estação espacial em um futuro não muito distante, com direito a um chuva de CO2 no fim da apresentação.
SPA NATURAL NO LAGO NOREN
Reserve algumas horas para desbravar a região, caminhe pelo vilarejo, respire o ar puro e se permita ficar bucólico com o interior sueco. Mas principalmente não deixe de ir nadar no lago Noren. O verão sueco tem sido bem agradável e ensolarado, a água não é tão gelada e ajuda a curar a ressaca e relaxar os músculos depois de uma maratona de shows.
ATIVIDADES EXTRACURRICULARES
Extracurricular activities from Norbergfestival on Vimeo.
Além dos três palcos, a programação se estende para workshops de formação, painéis de discussão, techno yoga, concertos no pequeno parque da cidade e dentro do antigo vagão de trem. Vale a pena sair e dar um respiro por essas opções, além de alimentar o cérebro, dá pra descansar as pernas. Eu participei de um dos painéis falando sobre a cena de festivais e da música eletrônica em geral no Brasil, mostrando que não vivemos só de bananas e que o futuro pode ser promissor (o eterno país do futuro?). É igualmente grande e proporcional o interesse e desconhecimento dos gringos sobre o que acontece no Brasil, na mesa, além de mim, canadense, mexicana, chinesa e inglês, todos dividindo os mesmos sentimentos sobre a pátria amada.
EXPOSIÇÃO DE ARTE
Com o nome ANOTHER SPACE/ANOTHER PLACE a exposição com sete trabalhos espalhados pelo entorno do festival e dentro da mina discutia questões como lugar, identidade e visões de um possível futuro, pós-industrialismo e utopias. Questões bem pertinentes para uma região que ainda vive o fantasma do fechamento da mineradora nos anos 80.
REALLY OPEN STAGE
O nome do palco já diz tudo, é aberto mesmo! Traga os seus equipamentos ou use os instalados no palco, sessões livres e, durante boa parte do dia, plug and play. Quem nunca sonhou em tocar em um festival? Essa é a sua chance!
NA SUÉCIA E NO BRASIL, SÓ SE FALA EM AFTER PARTY
Na madrugada do dia 31, depois que os suecos do Mount Liberation Unlimited fecharam o festival na Tenda 303, com um live absurdo de electrofunk, o pessoal queria mais! Na área de camping foi improvisada uma mini-rave pra quem não quis se aventurar na verdadeira After Party do festival. Por cerca de 40 minutos caminhando mata a dentro, seguindo os trilhos do trem, como no filme Stand by Me (Conta Comigo), os aventureiros chegavam às ruínas de alguma indústria, e lá o bixo pegou! Techno por longas horas e aquele roteiro de sempre. Todo ano a festa acaba no mesmo local, podem vir em 2017.