House music para todos: montamos uma timeline recheada com alguns acontecimentos chave pra entender o gênero mais sexy da dance music

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Eu estava na frente da cabine do DJ. Sábado à noite, no Back Room, buraquinho underground onde cabem na pista umas trinta pessoas, se muito. Mas ainda não havia ninguém. Na real, eu estava sozinho. Somente eu e o DJ tocando. A música que tocava era Bass Realizm, do DJ Romain. Eu dançava.

Eu dançava porque aquele groove me acompanha há tantos anos que não precisa passar pelo cérebro. Ao tilintar no tímpano, já escorrega direto para o coração por um tobogã interno chamado groovepath.

De olhos fechados, rebolava miudinho enquanto o som rolava. Me lembrei que precisava escrever este artigo sobre house music. O coração deu uma aceleradinha, vitaminado que estava, e umas lembranças começaram a cruzar na minha frente feito tiro de X Wing no meio de uma treta feia de Star Wars.

Os primeiros clubes de dance music underground da era disco e da house – ao juntar gays, negros, latinos, os amantes da jaca ou de uma putariazinha sensual – criaram sob as luzes do globo a utopia de um mundo perfeito. De união entre os povos, de solidariedade, de igualdade de gêneros e credos, de compreensão do real sentido da vida: ser feliz. Até a última música, o ideal de mundo. Uma visão do paraíso. Um paraíso numa garagem.

Foto icônica da festa Love Saves The Day, de David Mancuso, que virou capa de livro de Tim Lawrence

Lembrei de diversos momentos da minha vida. Dançando com mais um bando de gente na edição carioca da Body And Soul, durante o Tim Festival, no MAM do Rio, com Francois Kevorkian bicudo estragando o back2back dos parças. De como tudo era tranquilo, legal e feliz naquela noite, mesmo com o dilúvio que inundou o Rio na manhã seguinte.

Me lembrei da pista da Loca, mergulhada no set do inglês Mike Surreal Parsons, me esfregando em todo mundo coladinho na frente da cabine, rodeado de amigos. Mais do que me esfregando. Era como se a Loca fosse uma batedeira de bolo e as, sei lá, 300 pessoas que estivessem lá fossem uma massa uniforme, misturada numa coisa só, balançando pela pista. Não é que ninguém era de ninguém. Na verdade, ninguém era alguém. Todos eram ninguém. Compreende?

A fervida pista de dança entupida de gente na Loca

Me lembrei das Colors no Supperclub, quando a água acabava às 3h e tínhamos que sair correndo pra buscar dezenas de fardos de garrafas para evitar superaquecimento nos motores. Me lembro de como meu coração pulava pra fora da boca, ricocheteava pelas paredes e pelo teto do clube branco e voltava pra dentro do peito sem nem eu saber como. Tudo embalado pelo fantástico “groove gordo”. Do baixo que conversa com os beats, sempre obedecendo as leis do renomado físico James Brown. Dos elementos de funk e soul escondidos ali atrás, envolvidos por camadas e camadas de synths hipnóticos e outras pegadinhas-se-é-que-você-me-entende em sua construção.

Uma noite como outra qualquer numa Colors em meados dos anos 2000

Numa festa de house music não importa muito em quem você se esfrega. Desde que se esfregue. Nela, caminhar do bar, rebolando pelo meio da pista de dança até chegar no gargalo da cabine do DJ, onde estão seus amigos, é uma grande diversão. Estar lá já credencia qualquer um a ser recebido com a porta da mente destrancada. Foda-se se no dia seguinte, na segunda-feira, no trabalho, no trânsito, é diferente. Ali é assim e pronto. É um lance espiritual. Um lance de corpo. De alma.

O que você vai ler a seguir é um grande garimpo de fatos importantes na história da house music organizados em uma timeline. Não são todos os fatos, mas muitos! O universo é gigantesco, assim como a quantidade de desdobramentos e subgêneros. Todos os subgêneros? Nãaaao, faltou falar de ambient house, christian house, diva, dutch, dream, folk, nrg, moombahton… Divirta-se!

1970

David Mancuso (foto) começa a organizar sua festinha, Love Saves The Day, num clube chamado The Loft em Nova York. Frankie Knuckles, que lá na frente faria história, maripousa por ali. Na festa, só entrava quem estivesse na guest list.

1976

DJs começam a prestar atenção no que o colega Walter Gibbons (no meio na foto) fazia durante suas mixagens de disco music. O cara “desrespeitava” a ordem natural das coisas adicionando, tirando, esticando e encolhendo partes que curtia nas músicas. Ele era residente do clube Galaxy 21, em Chicago.

Na ilha espanhola de Ibiza, paraíso hippie, um novo clube abria as portas e entraria pra história: Amnesia.

1977

Orientado para a comunidade gay, que estava ficando meio de saco cheio da megassauna Continental Baths (que comportava mais de mil pessoas e tinha até sala de atendimento médico para doenças venéreas no seu interior), foi inaugurado o club Paradise Garage. O DJ Larry Levan (foto), que era residente de outro clube na mesma linha, o Gallery, foi alçado ao posto de comandante supremo da cabine e aceitou o convite para trocar de patrão. Levan também havia tocado no Continental Baths e já era conhecido na cidade por misturar rock progressivo com soul, funk, disco, Fela Kuti e o que mais lhe desse na telha de um jeito primoroso.

 

Em Chicago, o ano de 1977 marcou a inauguração do clube Warehouse. O DJ sondado para comandar a cabine foi o mesmo Larry Levan, que não quis se mudar de Nova York, ainda mais por conta de seu novo emprego. Seu parça de infância, Frankie Knuckles (foto), com quem Levan havia trabalhado no Continental Baths, e segunda opção dos contratantes, topou se mandar da Big Apple. Para alegria geral dos houseiros do mundo inteiro, né?

Caso não esteja bom pra você, informamos que o pessoal que curtia a noite nova-iorquina viu nascer mais um clube seminal neste mesmo ano. O Studio 54, responsável por ensinar a toda uma geração como se enfia pés em jacas. Suas ideias influenciaram o mundo e ricocheteiam até hoje. Todo mundo sonhava em atravessar aquela door policy fresca. A disco music que acompanhou a década, porém, começava a dar sinais de cansaço, pedindo em breve uma renovação.

1979

O radialista mala Steve Dahrl organiza, durante o intervalo de um jogo de baseball,  no dia 12 de julho, a Disco Demolition Night. Roqueiros chateados com o estrondoso sucesso da disco music, muitos vestidos com camisetas ou segurando faixas com a frase Disco Sucks, assistiram, inflamados, a uma destruição em massa de bolachas dançantes. Ai, que dor no coração!

Steve Dahrl rodeado por roqueiros, fãs de sua ideia de queimar vinis de disco music no meio de um estádio em Chicago

Foi a vingança caipira contra um movimento que nasceu no underground junto às comunidades gay, negra e latina e que encantava a molecada em geral. Porém, já se buscava um lance novo. Uma nova onda, diretamente ligada à disco music, estava incubada em Chicago: a house music.

1980

A Roland lança no mercado a drum machine TR (Transistor Rhythm) 808, originalmente desenhada para ajudar músicos a gravar demos em estúdios. Programando uma TR, você economizava nos custos de gravação de uma bateria acústica. Por tabela, um groove eletrônico doidão futurista caía no seu colo. Coisa séria.

1982

A Roland agora lança a TB (Transistor Bass) 303, mais uma ferramenta fundamental na sonoridade dos discos que seriam lançados. Frankie Knuckles precisava de uma TB. Comprou do colega Derrick May a maquininha abençoada. EPs de disco music são lançados em versões extended, já voltados para facilitar as mixagens na pista de dança, esticando os momentos rítmicos, com batidas e percussões, tornando-os mais longos e hipnóticos.
Dois exemplos, ambos lançados em 82:

Thanks To You – Sinnamon

Peech Boys – Don´t Make Me Wait

Em Chicago, o club Warehouse, de onde o nome do gênero, house music deriva, perde Frankie Knuckles, puto da vida com a manobra gananciosa dos donos, que dobraram o valor da entrada devido ao sucesso do lugar. Knuckles abre seu próprio clube, Powerhouse, e leva a clientela. No local onde o Warehouse funcionava, abre o Music Box, com onde mais tarde residiria o DJ Ron Hardy.

Em Manchester, o Haçienda abre suas portas. Apesar de dar prejú atrás de prejú, o clube da turma do New Order e de Tony Wilson, dono do selo Factory, sobreviveu até 1997 e entrou para a história da dance music mundial como um dos clubes mais famosos de todos os tempos, especialmente por ter sido o ponto de encontro entre as culturas acid house e rave e berço da Madchester.

O clube Fac 51 The Haçienda, ou só Haçienda para os milhares de íntimos que o frequentaram até seu fechamento em 97

Em Ibiza o DJ argentino Alfredo se torna residente do Amnesia. Cinco anos depois ele seria o responsável pelo big bang chamado Verão do Amor.

Alfredo nem sabia que iria criar o que ficou conhecido como Verão do Amor

1983

O New Order faz sua primeira apresentação no Haçienda. O chamado europop de Depeche Mode e Human League, entre outros, vira a cabeça dos DJs de Chicago, ajudando a moldar o som da tal “pós-disco”.

O New Order bem diboua na formação original com Peter Hook

1984

Walter Gibbons, que estava meio sumidinho, retorna à cena pagando do bolso a prensagem do 12 polegadas Set It Off, que vira hit do Paradise Garage, de Larry Levan. Tente tocar esta música hoje em qualquer música pra ver o que acontece.

Strafe – Set It Off

1985

DJs começam a prensar em vinil o som que Frankie Knuckles “criava” durante seus sets no clube Warehouse. Frankie misturava breaks e batidas da disco music, sempre buscando uma pegada mais uptempo (que era o que a garotada de Chicago queria, segundo ele mesmo), com synthpop vindo de Depeche Mode, com disco à la Giorgio Moroder, mais eletrônico e temperado com discursos gospel.

O som “precisou” ser criado, segundo os DJs de Chicago da época, porque os lançamentos que vinham de Nova York não tinham a “energia necessária” para as club nights da cidade.

Chip E, autor de um dos prováveis primeiros hits de house

Os sets de Frankie formaram uma idéia, uma cara, um som. Produtores como Larry Heard e Chip E sintetizaram a idéia e colocaram em vinil. O lançamento do disco do Chip E, Like This, marcava o início do selo DJ International. Esse vinil (e principalmente seus compositores) disputa o título de house music original com outra bolacha fundamental, Love Can’t Turn Around, de Farley Jackmaster Funk e Jesse Saunders.

O novo som ganhou o nome de house music. Para alguns a abreviação de Warehouse Music ou “a música que toca lá na Warehouse”. Para outros, house porque eram compostos por estúdios caseiros. E tem quem sustente que era “house” porque nessa época DJs começaram a levar suas coleções de música de “casa” para tocar nos clubes, em vez de usar o repertório da boate. A primeira explicação foi a que pareceu fazer mais sentido, virando consenso.

Ron Hardy começava sua residência no The Music Box. A crew de DJs Hot Mix 5 começava um programa na rádio WBMX só com a tal da house music.

Ron Hardy, um dos grandes de Chicago, em sua residência na Music Box – a lá atrás, capas bem familiares, né?

Ainda em 1985, Frankie Knuckles produz o EP de Jamie Principle, Wait On Your Angel, com fortíssimas, mas fortíssimas mesmo, influências de synthpop. O som britânico encantava o pessoal de Chicago, por quebrar barreiras de gênero e raça.

Jamie Principle (foto) fez com Frankie Knuckles uma das tracks mais sexy da house, Your Love

Antes dos lançamentos em vinil, porém, essas faixas já frequentavam os sets dos DJS de Chicago em tape.
Nova York responde à nova onda de Chicago. Discos saem do forno de produtores como Colonel Abrams, Paul Scott e Serious Intention, com uma cara própria, criando as bases para o som deep e soulful que futuramente seria chamado de garage. Os discos giravam nas mãos de DJs locais, como Larry Levan, Tony Humphries, Timmy Regisford e Boyd Jarvis.

1986

Ron Hardy, residente do The Music Box, se torna a última bolacha do pacote, quando o assunto é o som de Chicago, mostrando uma pegada mais rítmica, mais crua e menos disco do que o som que Frankie Knuckles tocava na extinta Warehouse. DJs levavam suas produções até ele em tape. Se rolasse bem com a galera, ia para a prensagem.

Marshall Jefferson – Move Your Body

Marshall Jeferson lança Move Your Body, considerado o disco de house do ano em Chicago e até hoje um dos maiores clássicos do gênero. Move Your Body também foi considerada a música que abriu caminho para a house na Inglaterra. Foi tocada primeiro pelas rádios piratas e então teve apoio de molequinhos antenados como os DJs Eddie Richards e Colin Faver, entre outros. O Delirium, em Londres, é o primeiro clube inglês a apostar na house, pelas mãos dos DJs Noel e Maurice Watson.

Galerinha no clube Delirium, em Londres, em 1987, antenados na house que vinha dos EUA

Pegando o bonde, discos de house chegam pela primeira vez às paradas britânicas, tocadas pelos DJS e até então ignoradas pela mídia. Love Can’t Turn Around, de Farley Jackmaster Funk, Jack the Groove, do Raze e Jack Your Body, de Steve Silk Hurley são os responsáveis pelo descabaço.

Terry Farley lança seu fanzine, Boy’s Own, para falar sobre a cultura dance underground inglesa. Os nomes das faixas apresentam ao mundo o termo “jacking”, usado em Chicago como forma de descrever o movimento dos dançarinos de house nas pistas do Warehouse.

Capa do zine Boy’s Own, sobre cultura dance underground, que circulava em Londres nos anos 80

Tyree Cooper, adolescente que anos atrás havia impressionado Frankie Knuckles ao mixar em festas no sul de Chicago discos de discurso de Martin Luther King e sermões de um reverendo local chamado T.L. Barrett Jr., lança I Fear the Night, pelo pioneiro selo local DJ International, com participação da cantora Chic, selo este que nesse mesmo ano roubava a cena de uma feira de música em Nova York, apresentando um novo som de Chicago às gravadoras concorrentes, incluindo várias majors.

Tyree Cooper (feat. Chic) – I Fear The Night

A essa altura, Chicago já contava com uma turma de produtores e DJs espetaculares como Farley Jackmaster Funk, Marshall Jefferson, Raze e Steve Silk Hurley, Chip E

Marshall Jefferson, autor do hit Move Your Body, sabia bem aonde queria chegar: em todas as pistas do planeta

Dimitri From Paris (que na verdade nasceu em Istambul) arruma emprego na maior rede de rádio da Europa, a NRJ, e ajuda a introduzir a house music na França pelas ondas do veículo de maior penetração no país.

1987 

Paul Oakenfold aluga uma mansão em Ibiza e chama uns amigos DJs (Danny Rampling, Nick Holloway e Johnnie Walker) para celebrar seu aniversário. Os quatro enchem a lata de ecstasy e entram no Amnesia para cair de quatro com um novo som vindo das caixas, apresentado pelo residente da casa, DJ Alfredo.

Paul já conhecia o som. Havia visitado a ilha e ouvido Alfredo anteriormente. Voltou para casa, abriu e faliu rapidamente um clube em Londres chamado The Funhouse, dedicado somente ao “som de Ibiza”. Mas o cara não desistiu.

Alfredo Fiorito, nascido na Argentina, misturava indie rock hipnótico de bandas como Waterboys e The Woodentops com synthpop, Peter Gabriel com a house de Chicago e mais o que lhe apetecesse para criar um clima derretido e praieiro em suas discotecagens, som que foi rotulado posteriormente como Balearic Beat (ou Balearic House).

Garota curtindo uma viagem de… house music no clube Shoom em Londres

O que era pra ser uma bela duma blue monday virou um Summer Of Love. Os quatro DJs ingleses voltaram metendo os pés na porta da noite londrina. Danny abriu o clube Shoom, nome que, reza a lenda, é o som que se ouvia quando o ecstasy batia na cachola (deles, claro).

Frankie Knuckles, Marshall Jefferson, Adonis e Larry Heard excursionam pela Inglaterra, numa turnê do selo DJ International, pela primeira vez. Enquanto isso, M/A/R/R/S atinge o número 1 das paradas britânicas com Pump Up The Volume. No mesmo top 10 estava House Nation, do Housemaster Boyz, de Chicago. Só se falava nisso.

O M/A/R/R/S fez um saladão de samples no som que pirou protoclubbers em 1987, Pump Up The Volume

Nos estados unidos, o selo Phuture lança o EP Acid Tracks, produzido por Marshall Jefferson e inaugurando uma espécie de “segunda geração” de lançamentos de house. A house music começa a se espalhar pelo mundo. Novos elementos e influências começam a ser incorporados. O LSD e o ecstasy entram de vez na cena, influenciando o som.

Ouça o EP Acid Tracks

Ainda em 87, o termo deep house começou a ser usado para tracks mais sofisticadas e viajantes. Faixas mais rápidas, com camadas de sintetizadores, começam a ser chamadas por DJs britânicos de trance dance.

DJ Pierre lança Fantasy Girl (DJ Pierre’s Phantasy Club), esmerilhando uma TB 303 e escancarando de vez as portas para o som do verão do amor, que chegaria no ano seguinte. Nos Estados Unidos, Nova York dá o troco com a cacetada Do It Properly, do 2 Puerto Ricans, A Black Man and A Dominican. Grandes hits de garage house são lançados, ironicamente no ano em que o Paradise Garage, de Larry Levan, fecha as portas.

Do It Properly – 2 Puerto Ricans, A Black Man and A Dominican

Todd Terry começa a lançar faixas usando o nome Masters At Work, pelo selo Fourth Floor. Três anos mais tarde, Todd “daria” o nome aos amigos Little Louie Vega e Kenny Dope Gonzales usarem em seus lançamentos.

1988

O selo Transmat, de Detroit, lança o projeto Rhythim is Rhythim. A house music há tempos já atravessara as fronteiras da cidade de Chicago e selos independentes pipocavaram, primeiro em Nova York e depois pelo resto do país. Detroit, porém, se entrega à sua tradição mecânica e carimba seu som com o rótulo de techno.

Na Inglaterra, EPs dos estreantes Bomb The Bass e S’Express levam o som de Chicago a níveis de sucesso (e apelo) comerciais nunca vistos. Alem do Shoom, Londres assiste ao nascimento do Spectrum e a mudança de nome do clube Delirium para Heaven. Com uma penca de hits com o som “acid” vindo de Chicago, os ingleses testemunham a maior onda jovem desde o punk rock. Estava instaurada a segunda versão do Summer of Love, uma reedição do verão do amor bem menos hippie do que o original americano de 1967, mas não menos amoroso.

O S’Express elevou os mandamentos da house a um nível pop estratosférico, sem tirar os pés do underground

A produção independente acessível, com equipamentos relativamente baratos e larga utilização de samples, contribui com o surgimento de centenas de selos independentes, vários deles fazendo sucesso entre os DJs e entrando em charts pop britânicos.

Músicas com frases como We Call It Acieeed chegavam ao topo das paradas de sucesso enquanto tablóides classificavam a nova onda como um antro de uso de drogas sintéticas ilegais. Nos Estados Unidos, a house permanecia underground. Algum sucesso pop veio nos cruzamentos com o rap. Nesse ano, o Jungle Brothers lançava I’ll House You, produzido por Todd Terry, que já havia feito experiências anteriores com o chapado Hip House. Enquanto isso em Chicago, Johnny Fiasco e o amigo Mark Farina começam uma residência no Smart Bar.

Jungle Brothers – I’ll House You

1989

As raves ilegais explodem de vez na Inglaterra, país que havia abraçado a house music e o ecstasy há pouco. Fórmula perfeita para arrastar toda uma geração de jovens para os arredores das cidades inglesas. Era a “acid house scene” com seu smile onipresente!

The Beloved lança o hit The Sun Is Rising, criptografando a essência da deep house, pra dançar de olhinhos fechados. Enquanto o deep inglês seguia o caminho balearic de ver o som nascer chapado na praia, o americano seguia firme na estética de influencias jazzísticas e cool.

The Beloved – The Sun Is Rising

Sai o EP Moods, do trio Symbols & Instruments, formado pelos amigos Derrick Carter, Mark Farina e Chris Nazuka. Sonoridade altamente funky, influenciada pelo techno inglês. Estava plantada a sementinha…

1990

A Kiss FM inglesa, até então uma rápio pirata, ganha licença para funcionar oficialmente. Porém, o movimento das piratas inglesas continuava denso, apesar das altas multas para quem fosse pego. Elas eram responsáveis por despejar música nova nos ávidos ouvidos britânicos.

Primeiro estúdio da Kiss FM, rádio pirata inglesa que ajudou a disseminar a house music underground

A febre da house tomava conta de mais e mais lugares. Prova disso foi a chegada às paradas britânicas de discos vindos de outros lugares, que não EUA e Reino Unido. Helyom Halib, do projeto italiano Cappella, e Let It Loose, de Amy Jackson (Canadá) estouraram neste ano.

Lil Louis – French Kiss

Enquanto isso, Lil Louis lança French Kiss, hit eterno da dance putaria. Em Soweto, na euforia da liberação de Mandela, surge o Kwaito, uma reinvenção da house music com BPM mai baixo, samples e vocais africanos e o groove indefectível da rapaziada de lá. O som tomaria Joanesburgo e o resto do país ao longo da década (e ainda cresceria horrores nos anos 00)

1993

Jiten Acharya e Paul Stubbs montam a loja de discos Swag em Surrey, município ao sul de Londres, que se transformaria no centro da cena tech-house britânica. A loja empregaria futuros mestres do gênero, como Terry Francis e Nathan Coles, se desdobraria em subselos, como os 4 Real, Funknose e Surreal, além de virar ponto de encontro da rapaziada que reinava na cocada preta.

Swag, a loja que se tornou a meca da tech-house

A dupla alemã Basic Channel lança Cyrus e mostra ao mundo a influência da cultura minimalista aplicada ao techno de Detroit. Na mesma onda, Richie Hawtin, Wolfgang Voigt, Surgeon e Steve Reich lançam discos que ajudam a moldar futuramente o minimal techno, também classificado como minimal house por muitos e, principalmente, adotado por vários DJs em festas de house music no começo da década seguinte.

1994

O selo Grass Green lança o disco que é considerado por muitos o “fundador” da tech-house, Housey Doings, assinado pelo aka Brothers (na verdade, Dave Coker, Justin Bailey, Laurant Webb, Nathan Coles e Terry Francis). House mais rápida, mais aproximada do techno de Detroit, porém mantendo a atmosfera deep.

O termo que era até então uma descrição (e não um gênero), ganharia a atenção de Eddie Richards, Terry Francis, Nathan Coles e Mr. C nas festas que faziam na Inglaterra. Na Escócia, os DJs Sasha e John Digweed se unem para lançar o CD mixado Northern Exposure, oficializando a progressive house. BPMs mais baixos, menos “raveiros”, com elementos e viagens trazidas do balearic e do trance, atendendo aos apelos de uma rapaziada que estava a fim de dançar um som mais viajante. O CD continha faixas do The Future Sound Of London, Scott Hardkiss e Rabbit In The Moon, entre outros.

1995

Ludovic Navarre, assinando com St. Germain, lança o álbum Boulevard, que vende 350 mil cópias no mundo inteiro. As raves inglesas atravessaram o Canal da Mancha poucos anos antes fugindo do chicote de Margaret Thatcher e despertaram o interesse da molecada francesa para o novo som. Na turma de encantados, estavam Laurent Garnier, Philippe Zdar (da dupla Cassius) e Thomas Bangalter (Daft Punk). Logo, essa a turma meteria seus dedos na house e criaria a French Touch.

Ouça Boulevard, do St. Germain

Scottie B lança em 95 o single Doo-It, misturando hip hop com house acelerado e se torna um dos pioneiros do subgênero Baltimore Club. O estilo ainda engoliria no futuro doses de Miami Bass, seria revisitado por Diplo e M.I.A. até servir de ingrediente para o trap.

Chris Smith funda a Om Records, em São Francisco. A cidade, experimentada em birutagem desde os tempos do escritor Ken Kesey, teve seu primeiro clube dedicado à house fundado em 1985 (o DV8) e sempre uniu a música a um jeito hippie praieiro-porém-elegante de festar.

1996

Desde 1994, DJs de todo o mundo incluíam em seus sets faixas do chamado UK garage, fortemente influenciado pelo gênero progenitor americano, porém um pouco mais rápido e encacetado, obedecendo ao humor das pistas britânicas. O superhit Sugar is Sweeter, de CJ Bolland, foi lançado neste ano.

Sugar Is Sweeter – CJ Bolland

Um dos fatores que puxaram o lançamento das produções de house britânicas foi o salgado preço dos discos importados vindo dos Estados Unidos. No ano seguinte, o termo Speed Garage, para versões mais paulada do Garage americano, seria usado para diversos lançamentos britânicos.

Outro marco do ano foi que DJ Sneak lançou seu primeiro álbum, Blue Funk Files. O homem seria um dos papas, junto com Derrick Carter e Mark Farina, da funky house, ou UK funk (ou ainda jackin’ house, club house, dependendo da loja onde você comprava). Dimitri From Paris lança o aclamado álbum Sacrebleu. O disco junta easy listening, samba, jazz… e house.

1997

Talvez um dos fatos mais importantes de 1997 como um todo, não apenas na timeline da house music: o duo Daft Punk lança seu álbum fundamental, Homework. Pare tudo e reveja o clipe de Around The World, que tem primorosa direção do cineasta francês Michel Gondry.

Around The World – Daft Punk

1998

Se você não entendeu ainda o que é o French House ou Filtered House vai ficar fácil agora. Sai outro superhit, Music Sounds Better With You, do Stardust, pelo selo Roulé Music. Miguel Migs, rei da deep house em São Francisco, lança seu primeiro EP, chamado The Mercure Lounge.

Miguel Migs, um dos embaixadores da house festiva nascida e criada em São Francisco

O DJ Chris The French Kiss muda seu nome para Bob Sinclar (tirado do filme Le Magnifique) e lança o álbum Paradise. Antes de se tornar uma mega-estrela mundial com remixes de gosto tão duvidoso quanto seu bronzeado cor de laranja, Bob produziu faixas que são o fino da disco house, como esta aqui, lançada em 2000.

I Feel For You – Bob Sinclair

1999

Isolée, aka do alemão Rajko Müller, lança Beau Mot Plage, ajudando a popularizar a minimalização da música entre os produtores que queriam inovar. Este foi um disco essencial para a virada da década.

Isolée – Beau Mot Plage

2000

A faixa Atmospheric Beats, de Kerri Chandler, ajuda a segmentar de vez a cara da deep house, classificação que já vinha sendo usado para nomear discos mais classudos, com influências jazzísticas, riffs de órgãos estilosos como o Fender Rhodes, por exemplo. Esta seria a década da deep house, com selos, produtores, e DJs com carreiras totalmente dedicadas ao estilo.

Mr C., um dos pioneiros da tech-house e também fã da nossa clássica camiseta verde-amarela

Um DJ mix de janeiro daquele ano, feito por Mr. C para o programa BBC Essential Mix apresenta um tal de tech-house, subgênero que mantém a atmosfera deep, mas a aproxima um pouco mais do techno. O som vinha sendo forjado desde o começo da década de noventa pelos DJs Nathan Coles, Terry Francis e Eddie Richards, além do próprio Mr C. A princípio, as festas dessa turma uniam detroit techno, house e breaks.

DJ Heather começou a brilhar em sua residência no Red Dog, em Chicago

Num campo amplamente dominado por homens, um nome feminino enfiava sua bandeira na colina houseira mais purista, a house de Chicago. Nascida em Nova York, a DJ Heather começa a escrever sua história como residente do Red Dog, em Chicago, impressionando heróis locais como Mark Farina e Derrick Carter.

No mesmo ano, outra DJ local, Colette, mostrou que mulher também tinha lugar na fila de hits houseiros feitos em Chicago com o hit If.

Colette – If

2001

O termo Micro House é usado pela primeira vez pelo jornalista Philip Sherburne para descrever o som que estava sendo lançado por selos como Kompakt, Fabric, Perlon, Spectral Sound e Force Inc. Um dos pontas de lança da house microscópica, construída a partir de microsamples e fragmentos, é o produtor canadense Akufen, além do finlandês Luomo.

Akufen – My Way

2002

Depois do hit Love Story a dupla Layo & Bushwacka virou habitué das cabines brasileiras

A dupla inglesa Layo & Bushwacka lança o super hit Love Story. Com o sample certeiríssimo retirado de Mongoloid, do Devo, além do vocal de Nina Simone em Rags and Old Iron, o disco passeou pelos cases de todo mundo. O nome da faixa, reza a lenda, é uma homenagem ao lendário afterhours paulistano. No mesmo ano, o duo X-Press 2 lança o megahit Lazy, com David Byrne, dos Talking Heads, nos vocais.

Love Story – Layo & Bushwacka

2004

Benny Benassi lança Satisfaction, megahit mundial que ganhou status de Macarena e apresentou para as massas uma mutação do som que vinha sendo feito desde o começo da década por produtores como Mylo, Miss Kittin e companhia: o electrohouse, uma versão 4×4 bastante influenciada pelo lado mais pop do French Touch misturada com o som que até então era chamado de electroclash. Satisfaction foi a sirene que nos avisou do Tsunami de discos que inundariam a dance music pelo mundo, utilizando-se da mesma fórmula e deixando os houseiros tradicionalistas de cabelo (os que ainda tinham, pelo menos) em pé.

Benny Benassi – Satisfaction

2005

Sai o EP Seasons, do selo Classic Music, de Derrick Carter e Luke Solomon. O label tinha uma contagem regressiva em seus lançamentos, chegando até o CMC 00 dez anos depois. Foi linha mestra para a funky house e lançou artistas como DJ Sneak, Rob Mello, Isolée, Tiefschwarz e Brett Johnson. Lançado no formato de EP duplo, Seasons tinha faixas de artistas como os sócios do selo, Mark Farina, Rob Mello, Ludovic Navarre (St. Germain) e Victor Simonelli.

Derrick Carter sempre procurando a próxima música que irá fazer todo mundo dançar

2006

O produtor Switch, pioneiro na produção de fidget house, encarta um mix no CD brinde da revista Mixmag. O Fidget, também chamado de jackin house em alguns lugares, é picotado, cheio de influências de hip hop, Chicago house, Baltmore, UK Garage, timbres de rave nos sintetizadores, linhas de baixo tortas e muita, muita influência nas técnicas de composição do big beat de Fatboy Slim.

O duo francês Justice chegou com uma pancada bem mais forte que seus conterrâneos da French Touch

O termo se funde, se confunde e se divide com o blog house, uma fusão de tudo isso aí em cima com o electroclash e a french touch, de produtores como Justice e 2 Many DJs. O estilo, também classificado como maximal, tomou conta de festas das principais capitais do mundo expandindo sua influência para a moda e o comportamento.

2007

Samin revoluciona o planeta com Heater, lançada pelo selo Get Physical. O “minimal da sanfoninha” virou hit no underground, virou hit nos festivais, virou hit nas festas bagaceiras e virou remix de axé.

Samin – Heater

2008

Em Estocolmo, três DJs se juntam pra dominar o mundo: Axwell, Steve Angello e Sebastian Ingrosso formam o Swedish House Mafia. Se tornam gigantes da música eletrônica, viram referência para toda uma nova forma de se fazer festivais com um som que mistura progressive house com elementos puxa-fila do hard trance para moldar o mingau que vai no balde rotulado hoje de EDM.

O sofisticado som do Crazy P emergiu do (re)encontro entre a disco music e house; eles tocam em maio em SP

Enquanto isso, nos EUA, The Juan MacLean lança pela DFA o single Happy House, hit soberano da nu disco que mostra o tamanho da proximidade entre a disco e a house. O gênero, que revisita a disco music, foi a sensação da descolândia desde o começo da década. A nu disco se dividiu em subvertentes, que vão desde releituras mais clássicas da disco até faixas ultra-espacias, psicodélicas ou roqueiras. O ano viu nascer (ou renascer, pois muitos vieram da house) estrelas como Crazy P, Prins Thomas, Faze Action, Lindstrom, Dimitri from Paris

2009

Das dez faixas mais vendidas pelo site Beatport na categoria house music, a primeira é um remix de Thriller, do Michael Jackson, a terceira um remix de Funk Phenomena, do Armand Van Helden, de 1996, e a sétima, um remix de That’s The Way, do KC & The Sunshine Band. Um ano com os dois pés no retrô.

2010

Uma pinguela entre a EDM e a house é construída. Nela se equilibram uma estranha mutação do UK bass chamada future house. O nome surgiu com o uso de tags do Soundcloud.

Enquanto isso… A house music no Brasil

Como grandes amantes de um bom balanço que somos, é óbvio que o brasileiro também recebeu a house music às três da madrugada com um abraço e um “te considero como um irmão pra mim”.

Os clássicos americanos pingavam nos sets de praticamente todos os disc-jóqueis dos superclubes paulistanos como Overnight, Toco e Contramão, através de DJs (ou futuros DJs que frequentavam essas casas) como Ricardo Guedes, Anderson Soares, Marky, Iraí Campos e os cariocas Memê e Amândio, para citar alguns. Na década de 90, clubes gays em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte abraçaram o gênero, que virou prato principal da noite. Clubes como o Latino, Massivo, Nation e Sound Factory em Sampa, os clubes Dr. Smith e Kitschnet e a festa Val Demente (foto) no Rio, além dos clubes mineiros como o The Great Brazilian Disaster e Guilden dropavam groove na cabeça da galera pelas mãos de Mauro Borges, Felipe Venâncio, Gil Barbara, Luiz Pareto e Marcos Morcerf, Roger S, Eduardo Bonadio e DJ Robinho.

Veja trechos do programa Festa MTV em 1995 numa festa Val Demente

Do lendário Hell’s Club pra frente então, as subvertentes do gênero foram totalmente assimiladas pelo povo da noite, tomando conta de pelo menos semanalmente algum dos clubes mais importantes, gerando festas e DJs especialistas e colocando o Brasil num circuito que recebeu todos os grandes mestres internacionais do gênero, além de vários e supertalentosos gringos menos conhecidos.

Latino Club São Paulo mixed by Luiz Pareto & Renato Lopes 1996

Festas como a Jack, de Marcos Morcerf, a Rebolado, de Luiz Pareto, a Colors, deste que vos escreve ao lado de Captain Wander, e mais uma turma da pesada, que incluía Gil Barbara, Mimi, Mr Gil e Jac Junior, Ana Flávia, Victor A, Flavia Carrara, Gabo e Denise, Prztz (Dudu Marote)Filipe Forattini e Daniel D (de BH), Rafael RM2, Gustavo Tatá, Droors (RJ), Raul Aguilera (Curitiba), Andre X e Renato Ratier (Campo Grande)… Tanta gente ainda não citada e tanta história que logo logo a gente publica uma matéria só sobre a história da house no Brasil, que tal?

OUÇA O PLAYLIST 30 ANOS DE HOUSE MUSIC NO SPOTIFY

UPDATE IMPORTANTE!

Conforme explicamos no título e no texto, a idéia da timeline era garimpar fatos interessantes e pouco óbvios na história da house music. Para uma lista com todos os fatos importantes, o artigo certamente viraria um livro (e dos gordos).

Logo no primeiro dia de publicação diversos leitores sugeriram citações de artistas que amam, o que mostra o tamanho do “povo da house” no Brasil. Continuem mandando!! Quem sabe a gente não publica o parte 2?

Ah, e ouça nossa playlist. Lá tem clássicos importantíssimos, que não estão necessariamente no texto, sugeridos a pedido do MNS pelos DJs Jon Lemmon (Tango Recordings), Murray Richards (Rebel Waltz), Felipe Venancio, Anderson Soares e Sidney Gomes.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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