
Há 50 anos, Bob Marley fazia história em Londres
Bob Marley & The Wailers apresentaram seu primeiro grande show em Londres em 17 de julho de 1975
É dia 17 de julho de 1975. A noite está quente e seca. E você? Você está meio puto, ao descer no começo da noite na estação de Covent Garden, na zona oeste de Londres. Tudo anda meio errado no país em que você vive. A inflação bate recordes históricos, greves sindicais por todo lado, por causa de uma tal crise do petróleo que acontece longe da sua casa, mas afeta a vida, e principalmente o humor de todos. Sua geração anda meio sem esperança e algo está no ar. Algo novo, para renovar o rock’n’roll hippie cansado que entrou na década de 70 numa ressaca dos infernos. Mas você não quer pensar nisso. É uma quinta-feira e a semana já está grande demais. É preciso música.

Você deixa o metrô e encontra seus amigos na porta da estação. Ufa. Sorrisos, cigarros e excitantes comentários tomam conta da roda de amigos sobre o show de um jamaicano que já era lenda em seu país, mas ainda “alternativo” na Inglaterra. Um tal de Bob Marley, com seu grupo The Wailers. O cara faria dois shows na cidade. Hoje, você e sua turma vão assistir ao primeiro deles.
Cara, Covent Garden é demais! Quanta gente, quanta música! Vocês descem a James Street, interrompida por um antigo mercado municipal. Durante o dia, frutas e verduras são vendidas pelas ruas. À noite, a área é tomada por rolês. Pubs, underground clubs, gente tocando nas ruas. Mas hoje não. Hoje é dia de colar no portentoso Lyceum Theatre, a duas quadras dali. Sua turma vira à esquerda, depois à direita, depois à esquerda novamente, em ruas pequenas e cheias, tão londrinas, até dar de frente à imensa entrada do Liceu, antigão e bonito. A porta do teatro esta empinholada de gente bacana. Muitos fãs de música que estavam afim de ver de perto quem era aquele cara que estava levando o reggae para fora da Jamaica. Bastante gente da colônia jamaicana também esperava para entrar, além de vários músicos e críticos de revistas de música. Coisa linda de se ver. Você já percebe que está participando de um momento histórico e sente arrepios ao pensar nisso.
Hora de entrar. Teatro lotado e expectativa a mil. Não era a primeira tour do cara na Inglaterra, mas era diferente. Ele veio, agora, para apresentar sua realeza. Duas noites esgotadas em um teatrão de bacanas lotado pela malucada de toda a Londres. O público estava a seus pés. A abertura foi explosiva com a canção que, você saberia mais tarde, era Trenchtown Rock.
“This, I wanna tell you, is the Trenchtown experience
All the way from Trenchtown, Jamaica Bob Marley and the Wailers, come on!”Meu Deus, o que era aquilo? Músicas falando sobre revolução, sobre ser um rebelde e, ainda assim, sobre paz e união. Quem estava ali, um discípulo de Mahatma Ghandi em versão Rastafari? Bob Marley é exatamente o que estamos precisando em um país, você pensa, quando se lembra que a lista dez álbuns mais vendidos no mês anterior tinha nomes como 10cc, Bad Company, James Ian e Pink Floyd. Ok, são legais, mas cara… tá tudo branco demais. Precisamos de uma revolução.
Suas divagações são interrompidas quando o cara começa lá do palco a introduz um reggae lento, e uma voz de arrepiar qualquer um. O que é isso?

Imagem: Reprodução
“Said, said, said I remember when we used to sit
In the government yard in Trenchtown
Oba-observing the hypocrites
As they mingle with the good people we meet”
Seus conterrâneos ouviam pela primeira vez uma versão ao vivo daquele hino recém-lançado no álbum Natty Dread, No Woman, No Cry, menos de um ano antes. Mas aquela versão ao vivo, cara, era infinitamente melhor (e maior) do que a original. Um libelo escrito em um momento em que se tenta encontrar a esperança no fundo de um imenso lago de cansaço, de esgotamento. Espantosamente linda, e você percebe que não é o único que está sentido isso. A plateia está arrepiada, como você. A luz azul sobre o rosto preto, a introdução com o velho som do teclado Hammond e a interpretação emotiva, de olhos fechados servindo de baliza para os dreads esvoaçantes. Mano do céu!
“Vou voltar amanhã para o segundo show”, você pensa. Mas se lembra que está tudo esgotado. Todos querem ver Bob Marley. Imagina se você soubesse que aquilo era o embrião das letras das bandas punk que tomariam conta da Inglaterra um ano depois? Daria ainda mais valor, como se fosse possível, a essa noite histórica. A vida de ninguém após aquele show seria a mesma. Nem sua forma de ver o mundo.
Mas uma coisa você já sabe, e é o assunto com seus amigos na porta do teatro, após o final do show, em busca do último trem. Aquela versão de No Woman, No Cry é a que ficaria para a história.