Portishead Foto: Reprodução

Há 30 anos, Portishead ganhava o mundo com ‘Dummy’, sua versão negativada do hip-hop

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Dummy chegou às lojas no dia 22 de agosto de um ano em que tudo de bom estava acontecendo com a música eletrônica. E ainda assim, deixou todo mundo de queixo caído

Como seria o hip-hop se tivesse sido inventado em outro lugar? Em uma terra de brancos, onde não existem as quebradas periféricas, a desigualdade social extrema, e onde as maiores dores da juventude são a melancolia de uma terra sem esperança? Onde a neblina cobre as ruas e calçadas, tingindo de cinza boa parte do que se vê, onde as janelas ficam meses sem serem abertas para a entrada do sol e cujas estações do ano são tão opressoras que determinam até mesmo a música que se ouve (e que os artistas devem produzir e lançar)?

Há exatos 30 anos, o trio inglês Portishead nos dava esta resposta ao lançar Dummy, seu aclamado álbum de estreia. Criados em Bristol, no sudoeste da Inglaterra, Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley apresentaram ao mundo um negativo do hip-hop, roubando suas técnicas de produção e ritmos, e eliminando as rimas para, em seu lugar, posicionar a voz fantasmagórica de Gibbons, criando uma espécie de “soul de morto”, apoiado pela dor das milhares de almas ancestrais que ocuparam as margens do Rio Avon em seu derradeiro encontro com o mar Celta.

Embora o Portishead tenha adotado, desde o início, certo desdém à imprensa musical da época, foi ela quem os recebeu de braços abertos e queixo caído, tanto na Europa quanto na Inglaterra. Havia algo único e novo em Dummy, construído sobre a já histórica cara de pau dos ingleses em se apropriar da música americana e transformá-la em algo absolutamente identitário, local, autêntico.

Em 11 faixas absolutamente conectadas, parelhas em qualidade e criatividade, o Portishead foi certeiro. Não gosto muito do termo “na hora certa e no lugar certo”, pois transmite uma ideia de pura sorte. Desconsidera a realidade: a sublime sensibilidade que um artista tem em captar, no vento, aquilo que o mundo precisa ouvir e onde a música precisa ser transformada. Assim foi Dummy.

Lançado pela gravadora Go! Beat Records dia 22 de agosto de 1994, Dummy chegou às lojas trazendo um frescor ao estourado mundo da música eletrônica, dividido entre a febre dançante e hedonista da house music e do techno e o que, na época, começava a ser chamado de trip-hop, cujas raízes estão na mesma Bristol do Portishead. Justamente pela conterraneidade com o gênero aliado a uma certa marra (mais hip-hop?), Gibbons, Barrow e Utley jamais aceitaram ser incluídos neste movimento.

E se considerarmos, ainda, o ambiente em que a música dita eletrônica vivia em 1994, o álbum de estreia ganha ainda mais valor. Uma época em que artistas como Underworld, Orbital, Aphex Twin, The Future Sound Of London e The Prodigy estavam no auge de suas carreiras. Chamar a atenção para a melancólica vinda em uma cidade portuária inglesa, com sua recriação cinemática e fluída das batidas urbanas, só seria possível por um disco perfeito.

Como de fato é Dummy, do Portishead.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.