Festival Soma acende discussão sobre uso do espaço público no Centro de São Paulo

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Pouco mais de três meses depois do estrondoso sucesso do SP Na Rua 2016 e em meio a comentários da nova gestão de eliminar “aglomerações no Centro”, eis que surge um evento reunindo coletivos de festas, com patrocínio de uma marca de bebidas, pra animar o domingo (18) de quem ainda tinha energia para ferver.

O festival Soma ocupou duas das áreas que também serviram de palco para o SP Na Rua, além da Virada Cultural, a Praça do Patriarca e a Praça do Ouvidor Pacheco e Silva. Para rechear os dois palcos foram convidados os coletivos Dubversão, Metanol e CIO (Patriarca) e Vampire Haus, Dûsk e Free Beats (Ouvidor).

A festa começou às 16h debaixo de chuva e com poucos gatos pingados se aventurando a ouvir o dub e reggae do DJ Yellow P no Patriarca e o techno vampiresco do Casal Belalugosi no Ouvidor. Por volta das 18h, porém, a chuva deu lugar a um céu aberto e até o sol deu o ar da graça.

Mais e mais gente foi chegando às duas praças, que tinham nos palcos gente que realmente vive a cena de festas de rua de São Paulo. Estava lá, por exemplo, a performer Euvira Euvira, umas figuras que mais representam a nova cena noturna de São Paulo, conhecida por seu show de dança e montação em festas como ODD, Mamba Negra e Capslock. Ela proporcionou um dos pontos altos do domingo, com apresentações durante os ótimos sets de Caio Baronti e Amanda Mussi, da Dûsk, e depois, em cima do praticável da festa CIO, acompanhando a dupla Glaucia ++ e Hero Zero.

Pista Ouvidor com festa Düsk

Alguns posts nas redes sociais, porém, questionavam o fato de o Centro ter sido “fechado” com gradis para impedir a entrada de ambulantes no perímetro do evento. O jornalista Ivi Brasil publicou:

Na página do evento também houve comentários sobre a uma suposta “privatização” das festas de rua. É um ponto a se pensar. Porém, se uma empresa consegue de alguma forma viabilizar um evento gratuito, na rua, isso não seria algo bom pra cidade?

“Patrocinador só pode agregar, né”, disse a maquiadora Ronalda Bi, fiel frequentadora da noite de São Paulo. “Adoro domingo de festa pelo Centro. Me diverti muito e ainda fui pra Loca depois”, conta.

Fomos ouvir de um dos núcleos, o Vampire Haus, como enxergam a entrada de marcas no rolê das festas de rua. Com a palavra, o Casal Belalugosi, a dupla de DJs formada por Suzana Haddad e Anderson Loki.

“O fato é: nas festas originais de rua, estamos cada vez mais insustentáveis. Enfrentamos guerras de todos os lados, desde conseguir o direito à ocupação e resolver a questão de segurança em um Centro cada vez mais caótico, até arcar com custos enormes de estrutura que uma festa open air de graça exige, sendo que a única fonte seria o bar, que está comprometido pela presença de ambulantes”, dizem os dois DJs.

Eles continuam: “Não vemos problema em marcas apoiarem, mas só vale se a ação for pertinente e colaborativa com o movimento dos artistas independentes envolvidos. As marcas podem fazer suas próprias festas de rua e nos convidarem pra tocar, desde que façam do jeito dela, sem ser predatória e sem tentar ser a gente. Topamos participar do festival em parceria com a Smirnoff porque a marca é uma bebida consumida no nosso bar, independente do apoio ou não. Eles nos fornecem bebida 100% bonificada, além de caixas térmicas, mesas e copos”, eles listam.

Alexandre Loki e Suzana Haddad aka Casal Belalugosi: “a coisa é mais complicada do que parece”

Eles ainda citam como vantagens do apoio o fato de a marca ter ajuda a amplificar o nome do coletivo, criando um vídeo promocional e aumentando o alcance da festa, normalmente restrito a um nicho, para um público maior.

“A festa se assumiu como um evento da marca, sem precisar fingir que era a gente, mas ao mesmo tempo deu espaço para nossos nomes aparecerem. Queremos divulgar nosso trabalho e essas marcas podem nos ajudar a atingir muito mais gente. O poder de alcance delas é muito maior que o nosso, e isso pode ajudar a transgredir mais pessoas”, dizem os DJs.

Outro ponto positivo citado por eles foi o fato de toda a renda levantada com a venda de bebidas nos bares da festa ser dividida entre os coletivos participantes. “Eles cercaram parte do espaço com grades pra deixar de fora os ambulantes. Óbvio que isso beneficia o consumo no bar da festa, cujo lucro será dividido entre os coletivos, e também ajuda a ter um controle de policiamento e segurança na área. Vi muitas pessoas reclamarem. Essa é uma questão bem polêmica, nem eu mesma sei dizer se concordo ou não. Mas as pessoas reclamam de tudo. Na última Vampire que fizemos, as pessoas reclamaram de falta de segurança. Se você cerca, você está privatizando o espaço público, mas, se não põe segurança, é acusado de por vidas em risco. Sem as grades uma festa dessas é invadida pelos vendedores ambulantes. Sim, eles são da rua, nós que invadimos o espaço deles. Mas se as pessoas compram deles e não do bar da festa, secam a única fonte de renda das festas de rua. A situação é bem mais problemática do que parece”, pondera.

“É importante ressaltar que esse depoimento não tem NADA a ver com privatizar o espaço publico, ou a favor da dominação de nossa originalidade por grandes marcas. Tem sim a ver com saber usar a nosso favor apoios que vão aparecendo, desde que eles sejam pertinentes e nos beneficiem a continuar fazendo as nossas edições INDEPENDENTES”, finalizam os criadores da Vampire Haus.

Hero Zero e Glaucia ++, da festa CIO, encerraram o palco Patriarca felizões da vida

Falamos também com a produtora que criou o evento para a marca, a Agência Nossa. “Qualquer evento com alvará no Centro pode retirar ambulantes. A intenção sempre foi fomentar/ajudar os coletivos que penam pra fazer festas sem grana. Usamos o dinheiro da Smirnoff para montar o evento, e toda a renda com a venda de bebidas será revertida para os coletivos”, diz Amauri Fantato, na Nossa. “A gente distribuiu kit lanche pros moradores de rua e limpamos o lugar onde eles dormem, que estava um lixo mesmo antes do evento começar”, disse.

Segundo uma estimativa de um dos produtores do evento, o Soma atraiu cerca de 2.000 pessoas, ainda que sob adversidades como a chuva e alagamentos em alguns bairros da cidade. Se esta for uma iniciativa verdadeira e que tenha vindo pra ficar, se a marca viabilizar que núcleos de festa e criatividade consigam ir além de simplesmente subsistir, então que venham outros festivais assim.

 

 

Claudia Assef

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Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

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