Festival Híbrido Foto: Lana Pinho/Divulgação

Festival Híbrido: a reinvenção da cultura canábica no Brasil

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Criador de um dos eventos mais icônicos dos anos 90, Beto Lago agora aposta em maconha medicinal, economia verde e saberes indígenas

Quando o Mercado Mundo Mix surgiu, em 1994, reunia expositores vindos das comunidades LGBT+, da cultura drag queen e da nascente cultura underground eletrônica que chegava a São Paulo. Lá, se compravam roupas para ir ao Hell’s e às raves, discos, CDs e acessórios, ao som do DJ Will Robson. Ver um loja vendendo acessórios para “maconheiros” no meio do rolê, como bongs e seda, dava um ar transgressor, moderno e cool.

Hoje, vemos tabacarias e head shops em qualquer cidade brasileira. Na época, era uma afronta à caretice dentro do MMM. O evento começou pequeno, cresceu vertiginosamente, ocupou outras cidades e até mesmo países. Mais que isso, extrapolou a comunidade, então chamada de “GLS” (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), virando rolê turístico em São Paulo. Todo mundo queria comprar o que se vendia no Mundo Mix. E se comportar como um simpatizante era essencial.

A mais nova empreitada de Beto Lago, criador do Mercado Mundo Mix, da Parada da Paz e tantos outros projetos voltados à moda e à cultura eletrônica, é o Festival Híbrido, em sua terceira edição, dedicado à cultura canábica e psicodélica, com foco em produções orgânicas e a chamada “economia verde”.

Numa conversa divertida, Lago e eu lembramos da lojinha de produtos para consumo canábico dentro do Mundo Mix. Em 30 anos, muita coisa mudou, mas ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à compreensão da cultura canábica e suas diversas ramificações pela população brasileira. Se repetir o que foi feito com o Mercado, é muito provável que consiga grandes feitos no tema.

A terceira edição do Festival Híbrido rola nos dia 11 e 12 de outubro, no Komplexo Tempo, bairro da Mooca, em São Paulo. Na conversa, Beto entrega outra novidade em caráter exclusivo. O doumentário Fervo 90 – A Década Mix falará sobre o início do movimento de economia criativa no Brasil, justamente através de algumas iniciativas do empreendedor. Aproveitando mais de 200 horas de acervo do próprio Beto Lago e sua equipe, a obra se juntará a outras que documentam a fervida época paulistana — os livros Bate-Estaca, de Camilo Rocha, e Babado Forte, de Erika Palomino.

Jota Wagner: De onde veio a ideia do Festival Híbrido?

Beto Lago: Foi uma coisa de pandemia. Eu estava trabalhando com o Mercado Mundo Mix nas áreas de moda e economia criativa, já tinha toda essa trajetória. A pandemia foi um momento muito difícil. Comecei a pensar no que fazer. Estava muito mal, né? Afinal, eu trabalhava com eventos. Sempre fumei maconha, mas nunca tinha experimentado o CBD. Na época não tinha no Brasil, era tudo muito caro. Uma amiga fabricava o óleo e me deu. Fiz um tratamento de alguns meses e aquilo me segurou em tudo. Eu não queria beber, nem tomar remédios, e me sentia muito triste.

Foi quando pensei sobre isso. No Brasil não havia essa discussão sobre o CBD no SUS, a cannabis medicinal, poucas pessoas falavam disso. Era algo só acessado pela elite, ou para quem morava fora do Brasil. Então pensei, “vou empreender nisso”. Uma coisa que acredito, que me ajudou e tem a ver com a minha trajetória. Quero organizar esse setor. Então começamos a bolar o primeiro Festival Híbrido, em 2022. Meu trabalho é estudar as tendências de futuro e comportamento. Lá fora, a coisa já passou para um estágio de industrialização da cannabis medicinal, uma espécie de gourmetização. Pensei: “no Brasil, com toda a nossa economia verde, a gente tem de fazer diferente”.

Festival Híbrido

Foto: Lana Pinho/Divulgação

Então eu criei o festival não para ser somente das head shops, mas com outros negócios, outras plataformas, como resgatar a cannabis como um mercado da economia verde, do cânhamo, a sustentabilidade, o lado medicinal, associações… Todo o lado bonito da planta. Foi uma coisa muito pessoal, como foi o Mercado Mundo Mix. Aconteceu uma sincronia de pautas.

A programação tem bastante coisa relacionada à sustentabilidade, cultura indígena… A cannabis já está sendo cooptada pela indústria farmacêutica?

Eu tenho um manifesto, feito após uma observação de todas as feiras de fora do país. Esses modelos de grandes pavilhões trazem uma gourmetização. Desculpe, mas a cannabis é maconha! A diferença do Festival Híbrido é que usamos o termo maconha medicinal, em vez de cannabis medicinal. Nele, eu quero mostrar todo o lado que já existe, do cânhamo, do lifestyle…

E o lado medicinal é uma realidade, ela realmente transforma a vida de pessoas autistas, por exemplo. Para mim, foi um tiro no escuro em uma sociedade que não quer ver. Falamos de justiça social, economia verde e resgatamos tudo o que a maconha representava antes de ser proibida e demonizada pelos governos.

Festival Híbrido

Beto Lago. Foto: Reprodução

Esse mercado já existe no Brasil, ou ainda é uma aposta?

Já existe. Fizemos a primeira feira em 2022, e hoje já existem cinco outras diferentes, só em São Paulo. Só que elas tem esse formato mais industrial. Eu quero focar na coisa do lifestyle. No festival, só tem cannabis medicinal feita por associações. Eu proibi a entrada de farmacêuticas. Então focamos na coisa mais orgânica, da cannabis como transformação social e também mercadológica. No Híbrido, ela também trafega pela moda. Foi o primeiro festival a ter esse olhar.

E ele é híbrido mesmo. Na primeira, falamos só de cannabis. No segundo, entrou a economia verde. Agora, incluímos os psicodélicos da natureza, por isso temos convidados indígenas nessa edição tão especial. E nós não vamos falar do psicodélico americano, como o LSD. Isso é uma realidade deles. Na América Latina, temos os melhores remédios do mundo, que são os psicodélicos da natureza. Nosso recorte vai tratar da Amazônia Indígena, peruana, brasileira… O conteúdo das palestras é de alto nível, com grandes lideranças. Teremos uma mesa preparatória sobre ayahuasca que será apresentada na COP30, como uma grande potência do Brasil na medicina. A gente acredita muito no futuro do país através da economia verde.

Quando a gente começou, lá atrás, jamais imagináriamos uma feira falando de tudo isso…

Lá no Mundo Mix a gente tinha a Smoking, que vendia seda. Era uma atração da feira ter alguém vendendo aquilo. Não podia, né? Fico imaginando como é a recepção da prefeitura quando se chega com um projeto desses para pedir autorização…

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O que as pessoas não enxergavam, o Híbrido mostrou. Trabalhamos de forma 100% legal. Hoje, em qualquer banca de jornal, você tem o filtro, o papel, o tabaco (e nós temos uma área muito grande na feira, de tabaco artesanal). Temos muitas head shops que já existem, totalmente regularizadas, como também na área medicinal. O cânhamo chega aqui de forma importada, mas já existe. Quando cheguei na prefeitura e provei que tudo o que teria lá era legal, em um ambiente que envolve cultura, terapias e economia verde, não tinha como proibir.

Você tem a consciência que está emprestando sua imagem como avalizador dessa cultura?

Tenho. Eu nem sabia que era conhecido nessa área da cannabis, porque sempre fui do meio da moda. Sou low profile, como você sabe. Não sou um falso profeta que fica por aí falando. Mas eu queria um novo mercado. Então, quando cheguei, fui atrás de pessoas do setor para serem meus sócios. Mapeei tudo, incluí pessoas, fui atrás e montei tudo isso. Mas foi aquela coisa, “para fazer um evento desses em São Paulo, só mesmo o Beto Lago”. Por isso, as marcas acabaram entrando. E é legal ter formatado isso para os outros também. Foi muito legal poder saber que as pessoas me aceitam. O Híbrido vai ser o primeiro evento a falar de cannabis feito de acordo com o novo regulamento a ser aprovado no STF, em setembro.

E seguiremos falando da economia orgânica, familiar ou feitas por associações. Há uma invasão de grandes empresas americanas no setor. O Brasil tem essa característica, de ser mais orgânico.

Em que ponto da jornada estamos atualmente?

Zero. Se for comparar em uma escala de proporção de quem entendeu que a cannabis é medicinal no Brasil, diria que estamos entre 0,9% e 1% da população. O que existe é uma normalização da pauta canábica, que no Brasil ainda é usada politicamente. Mas, ao mesmo tempo que a cannabis é uma potência muito grande, hoje em dia existem mais forças do espectro de centro direita da agricultura a favor da regulamentação, porque é uma grande potência econômica mesmo. Então isso vem se misturando. O Híbrido é um festival em que a gente fura a bolha. Vão pessoas que nunca foram a um outro festival, porque não se identificam. Por isso se chama Híbrido.

O festival atrai gente que não é frequentador e nem usuário. É a mãe querendo saber como ter acesso a um tratamento caríssimo com CBD… Por isso é tão importante que ele chegue ao SUS. As pessoas carentes não têm acesso. O Híbrido atrai mães com crianças, professores, gente que não tem medo de ir. Por isso temos o trabalho de colocá-lo em um lugar onde rolam os principais shows de São Paulo, ao ar livre, um dos espaços mais legais da cidade. São essas questões que fazem a normalização. Mas ainda temos um grande caminho pela frente.

Festival Híbrido

Foto: Divulgação

Você trabalha com tendências desde os 90. Enxerga uma diferença de comportamento entre as gerações?

Eu tenho isso claramente na cabeça, o positivo e o negativo. Quando comecei, estávamos carpindo mato com enxada. Não tinha festivais grandes no Brasil. O Skol Beats, o primeiro [dedicado à música eletrônica], começou na Parada da Paz, que eu fazia. Então, eu já passei um pouco pelas questões de gentrificação e apropriação cultural de um movimento. Quando cheguei ao Híbrido, sabia que não tinha o perfil [de quem já estava no mercado], então tive de ir atrás das pessoas. Hoje, minha equipe tem gente que está no Rio Grando do Norte, outra na Paraíba, outro está em Ilhabela. Foi um trabalho muito mais no campo intelectual, antes de chegar no operacional. Antigamente era mais do tipo “vamos ter uma ideia, vem aqui, me ajuda”. Hoje eu tenho muito mais trabalho no convencimento da equipe, nos propósitos, do que antes.

Essa geração é muito intelectual, da construção do texto, da imagem, e eu acabo percebendo que tenho de voltar a editar, sabe? Para que o conceito não se perca na entrega. É muito intreressante e muito rico, mas eu perco mais tempo em orientar, delimitar aonde cada um pode ir. E é engraçado porque no Híbrido eu tenho uma parte da equipe abaixo de 30 e outro acima de 50. Recorro a amigos meus, mais experientes, para juntar os jovens.

O que te seduz em um novo projeto?

Eu penso sempre no que não existe. Inventar alguma ciosa. No caso do Híbrido, estou fazendo algo que já existe e é bem feito. Então penso em colocar algo novo, como comportamento, um pensamento novo ou uma forma de consumo. Foi assim com o movimento GLS, com o Baixo Augusta, o primeiro bar/balada naquela região, que era conhecida como “rua das putas”. As criações são tanto para ganhar dinheiro, como para desenvolver algo novo também.

Festival Híbrido

Foto: Lana Pinho/Divulgação

Uma característica forte de seus projetos é que eles furam as bolhas de público…

Com o Mercado Mundo Mix foi isso. A cultura Drag, por exemplo. Quando levei o Mundo Mix para Portugal, ninguém lá falava de empreendedorismo no meio. Não é que eu invento, Jota. Já está no imaginário popular, mas ninguém consegue puxar. Tenho essa visão de materializar, e quando isso acontece, muita gente se junta. Só hoje em dia em entendo direito o que representou o Mercado Mundo Mix. Naquela época, eu estava ganhando dinheiro, pagando minhas viagens, a faculdade das minhas sobrinhas… Hoje entendo um pouco mais o que foi aquilo. O Híbrido acontece em uma fase de mais maturidade. Eu foco naquilo que acredito e vou materializando.

Quais os objetivos do Híbrido em relação às mudanças na mentalidade social?

Para mim, já valeu a pena porque na primeira edição, formatou o setor. A gente já começa em um local de qualidade, falando de cannabis em veículos grandes. O festival, perante o setor, não é concorrente. Todos os outros festivais tem espaço dentro do Híbrido. Isso é muito legal. Tenho essa característica de juntar as pessoas. Não me considero um “player de negócios”, mas uma plataforma de negócios na área canábica. Já estou satisfeito com isso. E vamos colocar nele cantoras mulheres, rock, música clássica, música ambiente… As coisas vão penetrando e mudando o comportamento do setor.

E ajuda a tirar os estigmas, também…

Sim, tirar o estigma da instituição. Eu não me considero uma pessoa gentrificadora, de forma alguma. Mas eu consigo falar uma linguagem popular e fazer as pessoas entenderem coisas óbvias. Sinceramente, já estou muito realizado com o Híbrido. E olha que a gente só investiu, ele não me deu dinheiro. É muito louco. A gente continua fazendo porque acredita num projeto a longo prazo.

Eu já estou mais velho. Não vou mais inventar uma coisa a cada três anos. O Híbrido já é minha aposentadoria, um caminho para eu ir me retirando da cena.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.