Festival multicultural Cardapio Underground chega à sua décima-nona edição, agora com residência Fixa, o núcleo Edith Cultura. Ava Rocha e Mercenárias mandaram no domingo. Veja fotos
Em um mundo perfeito, cada cidade do interior do país teria seu núcleo de cultura, legalizado, viável economicamente e aberto a espetáculos. Então, artistas que estão na pilha de promover seu trabalho, montariam suas estratégias de circulação, levando em conta a proximidade entre cada cidade e os baixos custos logísticos, e cairiam na estrada. De van, de ônibus, de carro ou (sonhando mais alto), de trem.
Duas situações, porém, mantém esta possibilidade no reino onírico. O tamanho continental do Brasil e, principalmente, a falta de espaços para se fazer um show (ou uma peça teatral, ou sessão de cinema) fora das capitais.
Felizmente, tem gente fora do eixo das grandes metrópoles que seguem perseverantes na missão de fomentar a produção cultural em seus municípios e envolvê-las em um circuito integrado. Trabalhando para que, no futuro, haja um sistema de veias que efetivamente permita correr o sangue da arte.
Este é o caso do festival Cardápio Underground, encabeçado pela agitadora Daniela Verde e por Quique Brown, músico da seminal banda punk Leptospirose e, hoje, vereador em Bragança Paulista, distante, cerca de 80 quilômetros, da capital São Paulo.
Tomada por simpáticas (e pequenas) construções antigas, organizadas entre ladeiras de botar medo em quem não é adepto do atletismo, chegamos à Bragança um pouco antes do início dos shows no domingo, dia de encerramento do 19o. Cardápio Underground. Uma tarde em que as cores no céu, nas paredes e na pele das pessoas pareciam mais vivas do que de costume. De fato, estavam.
O espaço que abrigou a edição deste ano chama-se Edith Cultura, um sobrado antigo, pequeno e convidativo formado por uma garagem transformada em espaço para shows e um piso superior, onde rolam oficinas, workshops e demais atividades. O hub é mais uma iniciativa da dupla dinâmica Daniela e Quique, com quem conversei no camarim em meio ao burburinho do vai e vem dos artistas, alimentado pela adocicada cachaça da região, Busca Vida (que mantém um galpão para eventos em meio a seus alambiques e apoiou, tanto o evento quanto a alegria jornalística deste editor).
“O Edith Cultura começou em 2004, com o Cardápio Underground. Três anos depois formalizamos como uma OCIP e desde então nunca mais parou” – nos conta Daniela Verde – “O espaço é a sede do coletivo. Estamos com ele desde 2017 (primeiro ocupando somente a garagem) e depois, graças a um prêmio do Proac, conseguimos assumir a casa toda”.
O objetivo do coletivo, além de incluir Bragança Paulista em um circuito cultural, é também de formar profissionais na cadeia da música. Quique e Daniela promoveram, por exemplo, o “encontro de backstages”, dedicado à galera da técnica, responsável por um trabalho importante na montagem do circo, pesadíssimo e muitas vezes submetido a condições nem um pouco respeitosas pela produtoras. “Nosso evento teve nutricionistas explicando sobre a alimentação correta durante o trabalho, professores de educação física para falar da postura ao se carregar peso, e até palestras sobre o sono” – conta, empolgado, Quique Brown.
Com a nova sede da Edith Cultura, o festival pode voltar a seu formato original: ter toda a programação concentrada em um local só, coisa até então impossível nas últimas edições, quando se espalharam pela cidade. Na edição de 2022, o evento teve exposições, arte visual, e shows durante três dias com atrações que flutuavam do trapp ao rock.
Conforme o papo ia rolando, o sol baixando e a cachaça subindo, vimos os jovens da cidade chegando para pegar os shows do domingo, dedicados ao rock. Inês é Morta, Ava Rocha (que vez um show espetacular), Sofia Chablau e, encerrando, os ícones do punk e do girl power brasileiro, as Mercenárias. Ao nível de contextualização, o Cardápio já trouxe em edições passadas grupos como Varukers (Inglaterra) e Vanguart.
Quique Brown e Daniela Verde compreendem a importância do circuito fora dos grandes centros. “Para a circulação do artista, o interior é muito importante. Se um cara, por exemplo, quer ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, seria legal se ele pudesse parar em Taubaté, São José dos Campos, Resende, etc” – explica Quique. Bom para o artista, bom para o produtor local, bom para o público.
Heróis que são, a turma do Edith Cultura progride na inevitável jornada de Joseph Campbell. Vão abrindo caminha à machadada, driblando a resistência do poder público e botando a cara para uma surra de tapas, por amor à sua terra. Vão criando um trabalho que traz alívio imediato para o povo alternativo, mas efeitos duradouros, que atravessarão gerações, no núcleo artístico da cidade.
Fotos de Julia Magalhães