Festa no cerrado – A história da música eletrônica em Brasília

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Testemunha ocular e auricular da história da música eletrônica em Brasilia graças à sua carreira como DJ e produtor de festas, Guilherme Mendes, o DJ Oblongui, escreveu sobre sua trajetória, a de importantes personagens deste movimento e os principais clubs e festas que movimentaram a capital federal.

 

A História da Música Eletrônica em Brasília – de 1988 a 1997

 

First things first

Nesse primeiro texto sobre a chegada da música eletrônica no Brasil quero deixar algumas coisas claras. Entendo e conheço a história do DJ no país, e esse não é o aspecto que quero levantar aqui, mas sim a chegada dos estilos de Detroit e Chicago no Brasil, e em Brasília. Sei que no Rio de Janeiro, em São Paulo e mesmo em Brasília existiram casas noturnas e Djs que fizeram toda a trajetória musical do período da Disco, no final dos anos 70 até o início dos 80, mas aqui focarei no legado da música eletrônica em Brasília.

São Paulo sempre foi uma cidade muito antenada com a música vinda de outros lugares do mundo e sempre teve uma vida noturna vibrante, aspectos fundamentais para a consolidação da cena eletrônica. São Paulo também viveu a transição musical da Disco para o New Wave, para o EBM, Pós Punk, etc. Seus DJs tocavam muitas coisas que eram tocadas nas pistas do mundo todo. No ano de 1983 aparece o primeiro DJ drasileiro que virou referência para toda uma geração, seu nome é Marquinhos MS. MS, eram as iniciais de Madame Satã, casa noturna de São Paulo onde ele foi residente, junto com o Magal, e formou além de público, inúmeros DJs.

Os DJs Mau Mau, Renato Lopes, Marcos Morcef, Oscar Bueno e tantos outros foram frequentadores do Madame Satã.

Em 1988, enquanto acontecia o verão do amor na Europa, em SP, o Club Nation, que ficava em uma galeria da Rua Augusta, abre suas portas. No som Renato Lopes, que havia iniciado sua vida como DJ há 2 anos, é um dos residentes, o outro era Mauro Borges (falecido em 2018). Mauro, trabalhava na Bossa Nova, que era a loja de discos mais importante de SP, e na época, o melhor lugar para encontrar som underground na capital paulista.

Essa, sem dúvida, foi a primeira expressão clubber de SP. Ali nasceu o movimento clubber brasileiro. Os DJs Mauro Borges e Renato Lopes fizeram a história dessa música ter seu início oficial no Nation, considerado mais tarde como o primeiro templo da dance music do Brasil. O Club foi um divisor de águas de um som dark, sombrio e industrial, que predominava no Madame Satã, para um som efervescente tocado nas pistas do mundo, o ritmo do verão do amor, a Acid House. Diferente da cultura tradicional das boates dessa época, no Nation as pessoas se produziam muito e assumiam sua sexualidade. Tudo era permitido. Era tempo de festa.

 

Os pioneiros da capital

Como as conexões, já vimos, sempre fizeram a diferença, chega a hora de introduzir Brasília nessa história. Algumas pessoas da cidade frequentaram o Nation, principalmente Pedro Tapajós e André Costa. Pedro, era conhecido como Pedrinho, e seus outros dois nomes artísticos eram: Sunrise 1 e The Six. Junto com André Costa, também conhecido pelos nomes de Cnun e Isn’t, são sem dúvida, pessoas fundamentais para o início da cena eletrônica em Brasília. Eles influenciaram toda a formação cultural da cidade, seja na utilização dos espaços físicos, seja na concepção artística de cenário ou nos flyers. Eles sempre foram muito inovadores nas formas de divulgação.

Nessa história, outras pessoas precisam ser mencionadas, pois foram fundamentais para a divulgação da música eletrônica na cidade. Uma delas, por ser um dos pioneiros na discotecagem de ritmos eletrônicos em Brasília, é o DJ Elyvio Blower. Ele tocava em rádio e também na boate Scherazade, no Torre Palace Hotel, em 1982. De lá, foi para a Zoom e depois para a Opus 4 em Taguatinga. Ele é, sem dúvida, um dos DJs pioneiros no Brasil a tocar música eletrônica. Ele continua na ativa, trabalhando em rádio, tocando em festas, boates e bares da cidade, em um deles tenho o prazer de dividir a cabine – no Dudu Bar.

DJ Elyvio Blower

DJ Elyvio Blower

Outra pessoa importante que influenciou Brasília na música eletrônica, e que talvez pouca gente conheça e tenha a dimensão da sua importância, é Daniel Cioffi, também conhecido como Danny. Ele era um americano que passou a juventude em Nova York e pôde vivenciar o despertar de um novo movimento. Era um “Party Monster”. Conheceu e frequentou todos os lugares importantes em NY onde sua base cultural foi construída. Ele também era amigo do pessoal do Deee-lite.

Danny era festeiro e um profundo conhecedor de música. Veio para capital do Brasil pois era de uma família que trabalhava para a Embaixada dos Estados Unidos. Aqui estudou na Escola Americana onde conheceu Pedro Tapajós, encontro este que deu novos ares para a capital do rock. O registro como aluno ainda está disponível no site da escola, na turma de 1988, que como já vimos, não é um ano qualquer, é o ano do Verão do Amor na Europa. Danny trouxe uma caixa de discos e tocou o terror por Brasília.

1988 foi um ano marcante. Novos conceitos surgiram em torno da música, e isso influenciou o mundo todo, e claro que também chegou na capital do país, com a vinda de Danny. Já em São Paulo, onde a noite era consolidada, a reverberação do Verão do Amor chegou com os DJs que eram antenados com essa nova cultura Club em explosão no mundo e foi com esse espírito transformador que o Nation abriu.

Foi Danny quem trouxe e apresentou os discos mais importantes da época para Pedro e André, e principalmente, foi ele quem mostrou LFO para os dois. Frequencies, do LFO, foi certamente um álbum que mudou a história da cidade. Na faixa de abertura, chamada “Intro”, o grupo que lançava pela gravadora Warp, apresenta suas influências. A música diz assim:

“House
What is house?
Technotronic, KLF, or something you just live in?
To me, house is Phuture, Pierre, Fingers, Adonis, et cetera
The pioneers of the hypnotic groove
Brian Eno, Tangerine Dream, Kraftwerk, Depeche Mode, and the Yellow Magic Orchestra
This album is dedicated to you
House

In the future
We hope our music will bring everyone a little closer together
Gay, straight, black or white
One nation under a groove”

 

O cerrado durante o Verão do Amor

De 1988 até 1990 Brasília tinha pouco espaço para festas eletrônicas. Das boates que existiam na época, algumas abriram as portas para os DJs e os novos ritmos. Zoom, Something, Entrecôte nas quintas feiras e principalmente, a Scaramouche no Gilberto Salomão e a New Aquarius no Conic foram boates onde Danny Cioffy se apresentou como DJ e foi, com suas músicas, o catalizador do momento. Nesses lugares a cidade teve suas primeiras experiências com esse novo ritmo em ascensão, vindo dos Estados Unidos e da Europa. E Danny, como era alguém que tinha uma ligação forte com a cena de NY, acabou trazendo toda uma cultura pulsante, e, claro, muitos discos. Para André Costa, Danny foi o nosso pioneiro absoluto.

1991/1992 foram os anos que a cidade começou a experimentar novos espaços para as festas, saindo um pouco das tradicionais boates. O início da década de 90 trouxe duas festas marcantes em dois espaços diferentes. A primeira foi a We are Backque aconteceu na Oficina Perdiz (talvez a minha primeira festa eletrônica na cidade como frequentador) e a segunda festa foi a Mentok 1, no hangar de Ultraleves, ao lado do autódromo, ponto central da cidade. Ambas produzidas por Marcelo Galo (El Galo) e André Costa. We are Back e Mentok 1 eram nomes de faixas do primeiro disco do LFO, já mencionado antes, o Frequencies.

Todos pensam que primeira rave do Brasil foi realizada em São Paulo, a L&M Music com a presença de Moby e Altern 8 em maio de 1993.

Em Brasília, vivenciamos meses antes dessa rave em São Paulo, a Mentok 1, ao final 1992, essa festa foi realizada no hangar de ultra leve por Pedro e André. A festa foi uma das mais importantes na formação cultural da música eletrônica da cidade. Muitas pessoas foram fisgadas pelo ritmo depois dessa festa.

Em 1992 um novo espaço alternativo abriu em Brasília. Era originalmente um bar, mas tinha uma pista de dança pequena, mas bem animada. Era o Bizarre, na 402 sul, de propriedade de outro DJ da cidade, o JVC, João Vicente Costa. Nesse espaço muitas festas aconteceram, e a música, a cada dia, ganhava mais adeptos.

Em destaque nessa foto está o cara que em 1991 me apresentou a música eletrônica, o Marconi. Morávamos na mesma quadra e ele se destacava pelo estilo de dançar. Foi ele quem me apresentou o André e o Pedro. Marconi é um dos irmãos mais velhos da Marlize, que anos depois foi hostess do Wlöd. O Wlöd Club será tema mais para frente, onde o meu encontro com André e Pedro ganha outros patamares.

 

Conheci o Marconi quando eu tinha 8 ou 9 anos. Ele era muito amigo dos meus irmãos e sempre foi uma pessoa magnética, carismática, daquelas que todos gostam de ter por perto. Os momentos mais marcantes eram quando ele chegava nas nossas festinhas, que fazíamos no salão de festas do bloco, e mudava o astral da festa colocando umas músicas esquisitas e fazendo umas danças malucas. Só ele dançava e isso quase acabava com as nossas festas. Ele chegava com umas fitas k7, provavelmente gravadas pelo Danny, colocava no aparelho de som e começava a dançar, e ele dançava muito. Em 1988 eu tinha 14 anos e achava muito estranha aquela música, mas o Marconi, eu achava o máximo. Outra coisa que ele gostava de fazer era colocar o som bem alto na varanda de sua casa e ficar dançando, animando, fazendo uma baita festa.

Em 1991 algo estava mudando em mim, a música que eu escutava já não me tocava mais, e eu estava em busca de algo novo. Foi um ano que fiz novas amizades e estava fazendo novas descobertas musicais. Antes de me apresentar no alistamento militar, cortei o cabelo e naquele momento senti que rompi com o rock. Um dia eu fiquei olhando detalhadamente meus discos e percebi que alguma coisa estava errada, pois todas as músicas que eu escutava eram antigas, não tinha nenhuma recente, a maioria eram músicas da década de 70/80. Eu na adolescência escutei muito rock, acabei construindo uma bagagem no estilo. Fui aos shows das bandas de Brasília, frequentava as festas e bares da cidade e fui ao Rock in Rio 1, em 1985 e ao Rock in Rio 2, em 1990. Acho que a última banda de Rock que eu gostei e fui ao show foi a Banda Oz, de Brasília, que era a banda da juventude de Marcelo Martins, o Nego Moçambique. Alguns anos depois tivemos um reencontro e nossas aspirações musicais agora são a música eletrônica.

Em um verão com minha família, tivemos a sorte de ter o Marconi como nosso convidado. Ali nos aproximamos mais e comecei a me interessar por aquelas músicas estranhas que ele escutava. Um dia ele me emprestou uma Fita k-7 para eu fazer uma cópia em casa. Lembro bem do momento que ele ia me entregar a fita, que ele quebra o lacre para ela não ser mais gravada em cima. Todos que escutam um set mixado sabem a desgraça que é ter um “furo” desse na gravação, principalmente na música eletrônica, onde essas falhas no som cortam a vibe. Essa fita tinha um set mixado que foi gravado pelo Danny. Nesse set várias músicas me conquistaram. Eu finalmente escutava uma música que refletia exatamente a realidade que eu imaginava pra mim, uma música da minha época. A primeira sequência de músicas começava com Cubic 22Night in Motion.

Outra música incrível desse set foi do projeto Altern 8, que contei a história de quando eles vieram ao Brasil, em 1993. Nessa fita k7 ainda tinha o clássico do T -99, e uma música do The Prodigy. Foram essas as primeiras músicas que mudaram minha cabeça.

And they are back

Nessa época que comecei a escutar as fitas k7 emprestadas, eu só escutava música no fone de ouvido, não tinha tido a experiência de ouvi-la em uma pista de dança. Escutar música eletrônica no fone de ouvido é importante para se prestar atenção nos mínimos detalhes, ainda mais para quem não podia escutá-la em um som alto e potente, como em uma pista. A primeira festa eletrônica que fui, foi a We are Back na Oficina Perdiz, espaço onde além de funcionar uma oficina mecânica, tinha apresentações teatrais e também foi palco de muitas festas.

Por conta da minha amizade com o Marconi acabei conhecendo o André, e logo depois, o Pedro. Lembro que na festa We are Back conversei um tempo com o Pedro e com Gualberto, que era um amigo e frequentador assíduo das festas, e que as vezes, fazia a função de LJ (Light Jockey) em eventos de música eletrônica. Foi a primeira vez que eu ouvi algumas das músicas que eu escutava no meu Walkman, em uma pista.

As festas eram bem esporádicas, e quase sempre com a mesma galera participando, muitos eram capturados na noite mesmo, em lugares como a 109 sul, principalmente no Bar Beirute, e outros tantos eram amigos do Pedro e do André. O investimento na produção ainda era pequeno, estavam no início da construção de uma cena e como eles trabalhavam e estudavam muito não conseguiam organizar as festas frequentemente. A segunda festa que participei, a Mentok 1, foi bem diferente. Com mais pessoas ajudando na produção, o investimento foi maior, e aqui aparece uma pessoa importante que tempos depois também vai virar DJ e fazer sua história na capital, Marcelo Galo. Logo na entrada da festa percebi que o público tinha aumentado muito em relação a festa anterior, e a estrutura também: mais som, luzes, máquina de fumaça, estroboscópio, decoração, tudo estava maior. A festa, que foi dentro de um Hangar de Ultra-Leve, com toda essa estrutura montada, tocando uma música inovadora para a maioria das pessoas, dava a real impressão de ser uma grande rave. Para mim esse foi o primeiro sinal de que novos tempos se aproximavam, que a cidade poderia aceitar bem essa música. Eu, e quase todo o público presente na festa, ficamos muito entusiasmados com essa nova atmosfera que estávamos vivendo. Nós, sem nos darmos conta, participamos de uma novidade mundial que estava nascendo. O que mais me encantou foi observar a troca de energia entre DJ com a música e o público, uma coisa fantástica. Lembro que foi a primeira festa que me empolguei e gritei na pista! Foi minha virada de chave.

Toda essa experiência nova que eu estava vivendo mexeu comigo, e comecei a sentir a energia de algo novo, diferente, e aquilo ficou na minha cabeça. Enquanto isso, em agosto de 1992, abre em São Paulo um dos lugares mais emblemáticos da cultura Club do Brasil, o local que veio a “substituir” o Nation (fechado em 1991) o Sra. Krawitz, onde os DJs Renato Lopes e Maurício (que depois viraria MauMau) tocavam como residentes.

 

Laboratório no Sra Krawitz

No fim de 1992 eu faço uma viagem com Pedro, André e Marconi para ir, finalmente, ao Sra. Krawitz, o primeiro templo da música eletrônica underground de SP, já que no Nation e no Massivo, casas que o DJ Mauro Borges tocou, a música Pop ainda tinha vez. O Krawitz já estava com fama nacional de ser a casa mais legal do momento, onde as coisas mais absurdas aconteciam. Logo na noite de abertura, programada para uma sexta feira, a casa não ficou pronta e não pode abrir. Abriu no sábado, em cima da hora, com muita festa e tinta fresca na roupa de todo mundo. Não é qualquer casa noturna que no fim de semana de inauguração não consegue abrir na data programada, e no dia seguinte, quando finalmente abre, solta tinta nas roupas das pessoas, e mesmo assim, é sucesso. Eu estava louco para conhecer esse lugar, de tantas histórias que eu já tinha ouvido, cada uma mais absurda que a outra, como a noite em que um porco ficou rondando dentro da festa por um bom tempo. Nós tínhamos marcado de nos encontrar na casa de um primo do Pedro, o Marcelo Gomes, e de lá, a gente ia pro Krawtiz. A casa dele era relativamente perto do Club, fomos a pé e chegamos em uns 20 min andando. A rua Fortunato, onde ficava a casa noturna, no Bairro de Santa Cecília, era bem pequena. Era uma rua de pequenos sobrados e algumas casas baixas na região central de São Paulo. A primeira impressão que tive, e que estranhei, era a quantidade de carros que estavam na porta, muito poucos. Pensei que devia estar cedo ainda e talvez vazio, mas ja tinha uma pequena fila para entrar. Depois de enfrentar essa pequena fila entramos onde duas pessoas de hostess, que eram ícones da noite de SP, Jonny Luxo e Kátia Miranda, recebiam as pessoas. A noite já estava lotada e quando entro já sinto algo diferente. O Krawitz funcionava dentro de um sobrado de 2 andares, onde para entrar tinha que subir uma escada que dava para um mezanino onde você já podia ver a pista abaixo e a cabine de DJ ao lado. Para chegar na pista de dança era necessário descer uma outra escada que dava acesso novamente ao térreo, e de lá, se virasse para direita você acessava o bar e o banheiro, e se virasse para esquerda você acessava a pista. Quando cheguei na pista a alegria foi imensa, foi, sem dúvida, uma paixão imediata.

Fomos na sexta e no sábado, Renato Lopes sempre abria de 23:00 até as 3:30 e o Mau Mau entrava as 3:30 e ia até umas 07:00. Era uma combinação perfeita. E ver um DJ experiente por 3 horas, podendo construir de verdade um set, pois tinha tempo pra isso, quando tem consistência, variedade e bagagem musical, fica perfeito. Eu comecei a perceber a condução dos DJs, como eles criavam climas e momentos únicos com as músicas mixadas. Chegamos cedo e só fomos embora de manhã, quando a última música foi tocada. Voltamos pra casa novamente a pé e na cabeça ficaram as musicas que eu tinha escutado a noite toda.

 

Minha vida tinha dado uma balançada com essa ida para o Krawitz e eu, na volta para Brasília, já ficava pensando se seria possível eu ir morar em São Paulo. Eu tinha sido definitivamente fisgado pela música, pela cultura Club e tudo isso graças aos DJs que eu acabei encontrando nesse meu início. Pedro e André, em Brasília, abriram minha cabeça para os novos sons e Renato Lopes e Mau Mau mostraram como conduzir uma pista perfeitamente.

Menos de 6 meses depois dessa ida a São Paulo eu estava indo definitivamente, ou pelo menos eu achava isso. Indo sozinho, sem o suporte dos amigos que me mostraram a cena paulista na primeira vez, não seria fácil, mas, graças as conexões, dei sorte. Meus 3 amigos, Pedro, André e Marconi eram muito bem vistos em São Paulo. Eles já conheciam desde a época do Nation principalmente duas pessoas chave, a Gláucia ++, na época barwoman do Krawitz e Renato Lopes, um dos DJs.

Glaucia ++

Com as portas abertas pela Gláucia eu logo fico amigo de todo staff da casa. E ali vivi todas as sextas e sábados em diante, até o fechamento do Krawitz. Eu pude ver como espectador inúmeras loucuras que aconteceram lá. Para citar as mais famosas, a Pool Party que eles promoveram enchendo a pista de água ate a cintura das pessoas, que foram de trajes de banho. Ficou tão surreal que pra completar a experiência você tinha que ter cuidado pra não tomar choque no corrimão da escada. Ou a noite em que eles colocaram um monte de galinhas coloridas em um galinheiro na porta. Como esquecer da noite que o Club todo estava com saquinhos de pé de galinha cheios de água grudados na parede e que no fim da noite uma guerra com esses sacos aconteceu para desespero dos seguranças. Uma outra história, em uma viagem de um pessoal de Brasília para SP, marcamos de nos encontrar no Krawitz, e no final da noite a gente procura uma das meninas que foi com o grupo, e somente quando acabou tudo e as luzes foram acessas que a encontramos dormindo no palco com os seguranças perguntando se ela estava bem. Ela tinha perdido a saia.

Em pouco tempo eu, que sempre fui muito ligado à música, sempre comprei meus discos de vinil, queria assumir aquela posição de DJ também. Logo fui atrás de um curso, e fiz o meu na escola Fieldzz, do DJ Iraí Campos, dono da DJ Shopping, loja muito importante na época. Meu instrutor foi o fantástico DJ Akeen, famoso por suas incríveis performances e por ser fã do Michael Jackson. Saí de lá sabendo como deveria fazer uma mixagem da forma correta mas ainda sem o mais importante, que só vem com o tempo, que é a experiência e a bagagem.

Meu primeiro disco de vinil de música eletrônica comprado foi inesquecível. Comprei nas lojas que existiam nas galerias do centro de SP. O disco além de ser fenomenal tocava ao contrário. Eu tinha que colocar a agulha no final e o disco voltava para o início. Somente anos depois, eu vim a descobrir como o disco era historicamente importante. Quando comprei não fazia nem idéia de quem era o artista, pois não tinha nenhum nome escrito e nenhuma informação clara. Hoje graças a internet eu sei que era do selo Hard Wax do Robert Hood, outro pioneiro de Detroit, no segundo lançamento do label, com H-Bomb (Jeff Mills) – Radar .

 

A minha primeira leva de discos comprados tinham, por razões óbvias, muitas músicas que tocavam no Sra. Krawitz. Foi a época que conheci as lojas de disco do centro da cidade mais a fundo. Estava fazendo o meu curso de DJ e todo dinheiro que aparecia era pra comprar disco. Nas lojas do centro da cidade trabalhavam DJs que pouco tempo depois explodiram em São Paulo, como DJ Marky, GKD e DJ Julião, que na época tocavam na Sound Factory, na zona leste de SP.

Esse período foi a complementação da minha formação como DJ, se no início eu tinha como exemplo Pedro e André pela criatividade, pelo conhecimento musical e pelo entusiasmo, agora me aproximava de um circuito mais profissional, com uma geração de DJs que são parte da história da música eletrônica brasileira, os já citados Renato Lopes e MauMau. Em São Paulo me aproximei também de outro talento que era residente do Columbia, uma outra casa noturna e histórica de SP, o DJ Gil Bárbara.

Iniciei meu curso de DJ no fim de 1993, e logo no início de 1994 eu tenho a minha primeira chance de tocar. O Sra. Krawitz, no carnaval, resolve fazer uma noite de domingo especial e convoca alguns DJs, e eu sou um deles. Recuperei esse flyer com outro DJ muito importante da história de SP, o Eduardo Corelli.

musica eletronica brasilia

Claro que eu orgulhosamente abri a festa. Pela hora tinham poucas pessoas na pista, mas a sensação de estar tocando na cabine que eu me inspirei a virar de DJ, foi indescritível. E graças a imensa generosidade do DJ Renato Lopes que, no auge da festa, com a pista lotada, me pergunta se eu queria virar uma música naquela hora, ou seja mixar uma música com a casa lotada. Nem acreditei que aquilo estava acontecendo e na minha cabeça eu não podia errar. Para garantir a pista toquei um clássico do Kraftwerk, Numbers

O Sra. Krawitz durou ate junho de 1994, e após sua abertura a cidade de São Paulo viu o surgimento de 14 clubs voltados a música eletrônica sendo abertos nos anos seguintes, mostrando o poder de influência que a casa teve na cidade e no Brasil. No Club o DJ tinha tempo para desenvolver um set, ele precisava ter muitos discos, e nessa época os estilos de música ainda não estavam muito segmentados, o DJ tocava vários estilos na mesma noite. Eles tocavam no Krawitz as musicas de, 4 HeroMr. Kirk’s nightmare, DsrBabaloo, Massive AttackUnfinished Sympathy, Rum DMCOoh whatcha gonna do, e Mau Mau certamente foi o primeiro cara a tocar JamiroquaiWhen You Gonna Learn no Brasil.

 

O DJ que tocava nessa época precisava ter muita variedade e isso ajudava a construir a bagagem musical. Após o fechamento do Krawitz, muitos Clubbers ficaram sem uma casa noturna de referência, até que meses depois o Columbia abre seu porão para uma festa diferente. Era uma festa que começaria as 4 da manhã, seria o primeiro After Hours do Brasil e tinha o nome de Velvet Underground, durou 2 finais de semana, quando um novo promoter assumiu, o Pil Marques. Pil era um antigo frequentador do Krawitz, e levou o DJ Mau Mau para ser o residente, e mudou o nome da noite para Hell’s Club. Nasce o primeiro Club dedicado ao Techno no Brasil.

Com tudo fervilhando, e eu querendo efetivamente tocar, decido voltar para Brasília. São Paulo, mesmo com esse início promissor não seria fácil pra mim. Eu tinha o desejo de criar um movimento parecido com esse que vivi em SP na minha cidade, Brasília. Mesmo cheio de dúvidas de como seria esse retorno, decidi voltar.

Volto para uma cidade que ainda lutava muito para sustentar uma noite eletrônica, mas ela já tava mudada, já tinha mais Djs atuantes, mais espaços, e mais público. O destaque para essa época vai principalmente para o DJ Marcelo Galo e o DJ Fran que começaram a fazer varias festas formando outros núcleos de adeptos. Tivemos o Bizarre, o Dreams, a Nova Lapa e o Star Night como os principais lugares de festa na cidade.

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Festa God Loves Technology

Em 1995 eu estava decidido a entrar de vez no circuito da noite de Brasília, achava que poderia ajudar tendo a experiência que eu tinha vivido. Pedro e André sempre foram minha conexão musical e inspiração na cidade, eles fizeram coisas incríveis em uma cidade distante de tanta informação, em época sem acesso a internet, sem equipamentos profissionais, mas com uma coisa muito importante, a criatividade. Nós continuamos mantendo uma relação muito boa mesmo enquanto eu estive em SP. Gastei fortunas em interurbanos colocando musica para o André ouvir pelo telefone. Eu tinha conquistado o respeito deles e tínhamos muita afinidade musical. 

Minhas primeiras tocadas em Brasília, na minha volta de São Paulo aconteceram no subsolo do Atlas da 314 norte. Esse lugar nos finais de semana começava a juntar mais adeptos e pessoas que estavam decidindo ir mais a fundo na música eletrônica.

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Club Atlas, na 314

No início de 1995 eu ia me mudar da quadra que eu tinha crescido e feito minhas amizades mais importantes, e muitos deles consegui trazer para a música eletrônica. Nessa quadra tinha o Marconi, o Léo Cinelli e seus irmãos, Fabrício e Bição, Ernani que uma época tocou como DJ Vortex e produziu a festa Temprano, Marlize que foi hostess do Wlöd, e até o DJ Drezin, da festa Mistura Fina, morávamos todos na mesma quadra. São meus amigos desde meus 7 anos de idade. Tinha chegado a hora de eu sair dessa quadra, a hora de ir para a Asa Norte. Só que para minha despedida programei uma baita festa no apartamento que já estava todo vazio. Foi loucura total com a polícia chegando na madrugada tentando acabar com aquilo. Outro fruto gerado nessa quadra, que talvez para o azar, ou sorte dela, morava embaixo de mim, e que certamente teve sua infância marcada pela música que escutava vindo de cima, foi a Camila Mota, que é esposa do Juarez Petrillo, o DJ Swarup (pais do superstar brasileiro Alok).

No dia 4 de novembro de 1995 foi a primeira vez que eu participei, junto de Pedro e André, em uma produção de festa. Foi a primeira vez que eu ia produzir um evento com eles. Era minha chance. Eles tinham deixado de ser Pedro e André e viraram Cnun (André) e Sunrise 1 (Pedro) e eu precisava deixar de ser o Gui. Era uma época que não fazia o menor sentido ter um nome comum. Estávamos trazendo um contexto novo, uma música nova, e como ninguém pensava em nada sério profissionalmente o nome poderia ser inventado, estranho, mutante, qualquer coisa. Nessa época era mais fácil tomarmos latadas de cerveja na cara por tocar essa música, do que pensar em ganhar dinheiro. E numa conversa com o André sobre minha nova identidade, ele comentou que meu som tinha muitos elementos de Clonks que era o nome de uma música do Sweet Exorcist da época do que chamávamos de Baby Warp. Da mistura de Clonk com Gui, meu apelido, nasce Oblongui.

Participei de toda a concepção da festa, aprendendo como se montava um conceito, uma proposta visual, alguma performance, aluguel de som, escolha de músicas, tudo o que uma festa precisa. A festa foi tão incrível, com muitos acontecimentos preparados, e outros completamente aleatórios, que nos trouxeram uma mescla de sentimentos. A primeira coisa que vale ser comentada é que a casa onde realizamos a festa, era bem no início do lago norte, toda de vidro, com piso de madeira, e ainda tinha um mezanino, onde colocamos a cabine. Do lado de fora montamos um bar ao lado da piscina.

Contratamos um performer para fazer uma aparição surpresa na festa, seu nome era Paulucci. Ele fez algumas apresentações com fogo na piscina e, em determinado momento, ele entra na pista de dança com um fígado de boi enrolado no corpo e causa uma histeria coletiva. Essa festa foi muito marcante pra cidade e tem uma música que ficou na minha memória de quando eu toquei e todo mundo foi a loucura.

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Uma festa tão perfeita só poderia terminar com um final apoteótico. Não sabemos exatamente o que aconteceu, mas às 5 horas da manhã toda a luz do lago norte acaba, é um choque de início, mas como a festa já tinha sido incrível e as pessoas estavam tão felizes que foram embora tranquilamente. Nunca saberemos se alguém ficou revoltado com a festa e fez algo para derrubar a luz, e se fez, apagou todo lago norte, ou se foi apenas coincidência. No dia seguinte a moça que foi contratada para arrumar a casa me liga, após ter terminado o serviço e me fala que arrumou tudo na casa. O único comentário que ela fez foi que estranhou que achou no banheiro um pedaço de fígado de boi no lugar do papel higiênico.

No começo do ano de 1996, recebo uma proposta de um cara que tinha um pouco de dinheiro e queria investir em um casa noturna, e ele era tio da minha namorada na época. Suas filhas e sobrinhas iam nas nossas festas, e ele achou que seria um bom negócio abrir uma casa noturna, e perguntou se eu topava tocar essa idéia. Eu sem pensar direito disse que sim, que topava. Começaria ali a história do primeiro espaço dedicado exclusivamente a música eletrônica de Brasília, o Wlöd Club.

 

Wlöd Club

A história que vou contar agora começa com uma festa deste ano que me serviu de inspiração para o que eu faria no ano seguinte, com a criação do Wlöd. A festa Great Space Here foi a primeira festa realizada no subsolo do Teatro Dulcina. O Goethe, que é um instituto que difunde a língua e a cultura alemã, criou o projeto Techno Samba, destinado a promover o intercâmbio entre profissionais de clubs noturnos e produtores de dance music da Alemanha e do Brasil.

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O coordenador do projeto foi Konrad Mathieu que junto com o DJ Hans Nieswandt fazem parte da Whirlpool Productions, selo alemão especializado em House Music Experimental. O staff do projeto visitou clubs e encontrou músicos e produtores em várias cidades do Brasil, incluindo Brasília. Foi a primeira vez que uma instituição internacional participava de uma festa de música eletrônica na cidade, promovendo uma ação bastante inovadora para a época, afinal, um intercâmbio como esse, era muito valioso em tempos pré internet. A festa foi incrível, lotada, pessoas interessantes e que pareciam identificar-se com a música e o espaço. Para mim, ficou claro naquela noite, que o Conic poderia ser um dos grandes locais de eventos de música eletrônica de Brasília. É um espaço no centro da cidade, diverso, e com o espírito verdadeiramente underground. A festa teve como atração os DJs alemães Hans Nieswandt e Justus Köhncke e os brasilienses Cnun e Sunrise 1. O clima estava diferente, um ar de novidade pairava no local, pois era a primeira vez que uma dupla de Djs internacionais se apresentava na cidade. O panfleto trazia na arte a foto da entrada de um local que parecia ser um armazém, de algum centro urbano, todo pixado, parecia um lugar ideal para uma rave. O subsolo do Conic era um pouco diferente do que é hoje e já começava abrigando uma grande festa.

O ano de 1996 começa muito louco e já dava indícios desde o início que seria um ano agitado. Logo em janeiro duas meninas em uma cidade em Minas Gerais, alegam terem vistos seres alienígenas e o caso ganharia o mundo, com o nome “O ET de Varginha”.

Novos Espaços

Em Brasília novos espaços são desbravados para festas eletrônicas. O conceito de ocupação dos espaços da cidade ganha importância na cabeça de quem produz eventos. Nesse época as festas tradicionalmente aconteciam em espaços nas comerciais do plano piloto ou em boates no lago sul, pois eram mais fáceis para gerenciar todo o processo de produção de eventos. Estamos falando de um tempo onde qualquer festa fora desses ambientes legalizados corriam o risco de serem fechadas, pois eram todas ilegais. As festas não tinham alvará, não tinham qualquer suporte da administração pública e eram feitas na raça correndo um grande risco de prejuízo.

Outro espaço importante para lembrar é o da Universidade de Brasília. A UnB sempre foi palco de manifestações políticas e culturais. Desde o fim da ditadura militar, em 1985, muitas festas aconteceram lá. Aqui vou me concentrar nas que aconteciam nas dependências do curso de Arquitetura. Essas merecem destaque e fazem parte da nossa história. Muitos alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo na UnB eram DJs e constantemente escalados para tocar na festa. Passaram pelo curso pessoas como: João Vicente Costa, o JVC, André Costa, o Cnun, o Marcelo Galo, o El Galo, o Márcio DJ Mak, o Cristiano DJ Quizzik, o Marcello Carvalho DJ Cello, o Mariano Garcia DJ Aeon, todos foram alunos do curso na universidade, e muitos foram frequentadores do Wlöd.

Pra mim é interessante imaginar se existe alguma conexão da arquitetura moderna da cidade com a aceitação da música eletrônica por seus moradores. Sempre me questionei como as pessoas de uma cidade sem histórico de clubs conseguiram ter uma ligação forte com a música feita para as pistas de dança? Confesso que era muito louco falar de Dance Music em uma cidade onde a experiência de dançar em clubs não era muito frequente. Mesmo sem estrutura e sem apoio formamos uma cultura em torno da música eletrônica, e devemos isso aos inúmeros DJs talentosos que surgiram por aqui e que foram movidos por essa paixão.

As primeiras festas que a música eletrônica teve espaço dentro da universidade foram nos anos de 1988 ou 1989. Essas primeiras iniciativas foram feitas por Pedro Tapajós que era o responsável por vários agitos na época. Com certeza ele foi um dos introduziu a semente da música eletrônica dentro da festa da Arquitetura. Essas festas cresceram muito e multiplicaram o número de frequentadores nos anos seguintes. No ano de 1996 foi realizada a Stuplash, festa que contava com a participação de vários DJs da cidade. Tradicionalmente a festa da Arquitetura trazia uma forte ambientação temática, era bem planejada e muito bem executada artisticamente. As festas sempre foram muito cheias, lotadas mesmo, era um ambiente muito democrático e diverso onde nos permitiam usar o espaço público de forma plena.

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Peça da decoração da festa Stuplash – de 1996

Os espaços privados das comercias eram as alternativas mais viáveis no começo da década de 90. Arrumar espaços desse tipo, como o Hangar de Ultra Leves onde foi a Mentok 1 de 1992, não era fácil. Em contrapartida era uma época em que a cidade era mais tolerante com as manifestações culturais e artísticas. Ainda não tinham tantas reclamações e perseguições contra os bares e as casas noturnas nas comerciais das quadras.

Desde o fim da ditadura militar a cidade fervilhava culturalmente. Da década de 80 até os anos 90 as manifestações culturais se multiplicaram na cidade. Nessa época existiam muitas festas nos fins de semana (de todos estilos e tamanhos), tinham mais shows de bandas locais, e principalmente, muito mais música ao vivo nos bares. Hoje à noite a impressão que tenho é que vivemos praticamente em uma cidade deserta. Se você passar a uma hora da manhã em qualquer lugar das regiões administrativas ou mesmo nas comerciais do plano piloto, está quase tudo fechado, um silêncio total. A cidade de hoje é bem diferente nesse aspecto, e de alguma forma para quem não conhece a fundo, pode parecer que toda a fervura cultural foi dissipada. Hoje apenas núcleos engajados e profissionais oferecem alternativas de diversão noturna. Se por um lado no passado tínhamos menos público e menos acesso aos discos e músicas, tínhamos uma cidade mais tolerante às manifestações artísticas em geral. Hoje, em contra partida, temos um público maior, mais acesso às músicas e até conseguimos passar pelas burocracias de produção de festas, mas temos uma cidade muito menos tolerante à expressão musical. Esse é um dos motivos que acredito que o centro da cidade, onde se localiza o Conic, precisa ser o nosso símbolo de resistência. Não podemos perder o centro da cidade. Lutemos por ele.

Com certeza a influência política foi um fator decisivo para a ampliação da lei do silêncio e a intolerância em relação à música em Brasília. Saímos da realidade de uma cidade que era animada e muito caracterizada pelas festas, e suas diversas manifestações artísticas, para uma cidade quase deserta, aparentemente morta. Com as dificuldades da lei do silêncio, tivemos de nos deslocar para o centro, e agora cabe a nós continuarmos lutando pela utilização do local, que foi tão esquecido pelo poder público, e é adorado pela comunidade artística da cidade. No centro temos mais liberdade e ficamos em um ponto de fácil acesso ao transporte público, e principalmente, não tem gente morando por perto.

Nesse ano de 96 um novo espaço para usarmos em nossas festas abriu, dando uma nova dinâmica para o início do ano. Era mais uma casa em que dias de semana funcionava como bar para encontro de pessoas buscando acompanhantes. Essas casas que tinham esse perfil ficavam totalmente ociosas nos finais de semana e a gente conseguia boas negociações para realizarmos as festas. A casa mais nova do ramo era chamada Fifty Five, e ficava na 402 sul, na mesma rua do Gate’s e do Dream’s. Essa foi uma rua muito movimentada na época, hoje ainda resiste, mas sem a relevância que já teve na década de 90. Essa rua também foi afetada pela lei do silêncio que vigora na cidade, que acarreta a cada dia enormes prejuízos à cena cultural de Brasília.

As festas no Fifty Five eram normalmente para umas 200 pessoas e sempre iam os mais entusiastas da cena. Já eram as primeiras festas que traziam uma nova geração de Djs, que foram diretamente influenciados por Pedro e André. Todos dessas gerações iniciais tiveram a dupla como referência, e por sorte, nós todos éramos muito amigos. Nessa festa mais uma pessoa despertou para a música, e hoje é um dos grandes produtores de Techno da cidade, Maroan Kalout, DJ Maze One. Maze tem o projeto Hybrdz junto com Sérgio Collares e ferve até hoje nossas pistas. Falarei mais de Maroan e de Sergio Collares nos próximos anos dessa história.

Eu finalmente começava a entrar no circuito dos DJs da cidade tocando ao lado de todos atuantes na época, e nessa festa do Fifity Five toquei com El Galo (Marcelo Galo) e Fran (Fran Pinilla), que eram os destaques da geração posterior ao início de Pedro e André.

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O ano de 96 começou com muitas festas e logo em abril mais um evento importante teve destaque na cidade e marcou esse início de temporada. Seria uma trilogia que começou com Podiceps Cristatus

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Na segunda festa, no mês seguinte eu me apresentei com os dois. Foi a segunda vez que toquei com a dupla Cnun (André Costa) e Sunrise 1 (Pedro Tapajós). A primeira tinha sido a comentada Existan cel, no fim de 1995. A festa tinha o nome de Upupa Epops e foi um evento que aconteceu um mês antes da abertura oficial do Wlöd. O nome da festa saiu de uma espécie de pássaro da Eurásia que tem uma vasta e característica crista alaranjada. Era o segundo episódio do que acabou virando uma trilogia, onde a primeira festa tinha sido a Podiceps Cristatus, a segunda parte seria a Upupa Epops, e a terceira parte aconteceria só em 1997 com a Crex Crex Crub. Para a festa contrataram novamente o Paulucci para fazer uma aparição meteórica como na festa passada, e claro, foi mais um sucesso.

Eis que chegamos no mês de maio e no dia 11 é a abertura da primeira casa noturna dedicada a música eletrônica na cidade, uma aventura épica de construção de um club. O Wlöd.

Quando recebi a proposta de montar o club não tive dúvidas que eu precisava montar uma equipe. Não dava para eu tocar tudo isso sozinho. Eu já sabia, por exemplo, que precisava ter o Cnun e Sunrise 1 como DJs. Vários eram os motivos, por serem os grandes nomes locais da época e por serem meus maiores influenciadores musicais. Quando comecei a planejar a abertura, em fevereiro de 96, pensei no perfil das pessoas que eu deveria juntar. Os Djs eu já sabia, agora eu precisava dos outros parceiros.

Desde que voltei para Brasília em 94 tentava insistentemente converter mais pessoas para a música eletrônica. Na quadra onde morei eu ficava andando com meu walkman para cima e para baixo ouvindo as fitas K7 que eu recebia do MauMau na época do Hell’s. Eu tinha o hábito de ficar animadamente mostrando trechos das músicas aos meus amigos. Consegui converter vários para a música eletrônica, e um deles, foi o Leo Cinelli.

Em julho de 1995 o Leo vai para NY passar um período estudando e vai morar justamente com o Marconi, que tinha saído de Brasília para morar nos Estados Unidos, em 1994. Lá ele se aprofundou na cultura clubber da cidade. Marconi tinha deixado o Brasil por achar que esse estilo de vida demoraria muito para virar realidade por aqui. Infelizmente muitas pessoas talentosas deixaram essa cidade por não aguentarem as dificuldades da falta de lugar pra dançar constantemente, no nosso início, pois ainda tínhamos poucas festas eletrônicas na cidade.

As coisas começam a se encaixar quando o Leo retorna de NY, em fevereiro de 96, poucos dias antes de eu ter recebido a proposta de abrir o club. Eu pensei nele pra equipe pois já tínhamos afinidade desde os tempos de infância que passamos juntos na época do breakdance. Fora isso, depois de adultos, fomos juntos ao Sra. Krawitz e ele tinha acabado de voltar com a experiência clubber em Nova York, e certamente contribuiria muito para a formação do nosso grupo. Outra vantagem era que o Leo desenhava muito bem e poderia ajudar muito com o projeto. Essa vivência contribuiu para que ele virasse realmente um produtor de eventos e assim acabou seguindo com a profissão, com várias festas realizadas, como Grande Tenda, FUSE, Lata Digital, Makossa entre outras.

A primeira missão estava realizada, formar a equipe inicial. Eu já tinha os DJs, seriam Cnun and Sunrise 1 + Oblongui, e agora tínhamos o promoter. Para sua adequação ao time de nomes meio estranhos, Leo funda a Couhutec, sua primeira versão de produtor de eventos. Esse nome foi dado por ser o de um cometa que passou no dia de seu nascimento. A segunda missão agora seria achar o espaço do club, e assim, dei início oficialmente a esse processo, sem saber bem onde começar a procurar.

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Leo Cinelli

Fico uma semana olhando no jornal os anúncios de aluguel em busca de algum lugar que pudesse abrigar um club de música eletrônica. Era uma época que ainda não precisávamos de alvará para festas pequenas, mas para um club eu precisava me estruturar melhor. Depois das primeiras raves da cidade meu sonho era um galpão abandonado, ou algo semelhante, isso martelava minha cabeça. Eu imaginava que se a cidade tivesse uma experiência em um local desse tipo, tudo poderia ser diferente no futuro, a aceitação da música eletrônica poderia aumentar, pois quem já experimentou uma pista grande, em um galpão caracterizado, sabe o poder e a vibe que a festa ganha.

De início descartei as possibilidades de fazer nas comerciais do plano piloto por não termos capital para conseguir tocar esse projeto. Os alugueis seriam inviáveis, o espaço ideal certamente não caberia no nosso pequeno orçamento. Eu sonhava com algo impactante, e nas comerciais do plano piloto sem grana pra investir, ficava difícil. Logo volto minhas atenções para um lugar mais afastado da cidade, o setor de oficinas sul. Mais uns dias olhando o jornal eu acho um anúncio bem interessante e marco uma visita. Passo na casa do Leo Cinelli e nós dois vamos pela primeira vez no local que abrigaria a casa noturna. Quando chegamos nos demos conta que o espaço, mesmo sendo de um galpão, tinha toda a cara que já tinha sido uma oficina mecânica. No chão ainda tinham os espaços característicos para se fazer a troca de óleo de carro, com aqueles buracos. Não ia ser fácil fazer uma casa noturna ali sem muito dinheiro, mas no plano piloto um espaço desse tamanho seria impossível.

Uma coisa que não saia da minha cabeça era que quem conseguisse abrir a primeira casa noturna em Brasília dedicada à música eletrônica entraria para história, pois o momento pedia isso. Eu sentia que na cidade as festas já tinham crescido e todos estavam loucos por um club, e talvez, essa fosse a hora. Não dava para desistir, eu já tinha sonhado tanto com esse momento que na hora pensei: é aqui! Esse é o espaço que a gente precisa.

Alguns dias depois convoco os DJs Cnun e Sunrise 1 para conhecerem o espaço, e eles já incluem mais duas pessoas no grupo, Daniela Brilhante e Flávia Goldberg, alunas de Arquitetura da UnB. Elas eram frequentadoras das festas e foram chamadas para nos ajudar na concepção visual do club, e analisar o espaço que eu tinha achado. Elas foram pessoas muito importantes e criariam todo o conceito visual para a casa.

Quando todos chegaram foram logo querendo entrar, pois estavam muito curiosos. De cara tomaram um susto com o tamanho, acharam muito grande e ficaram bem preocupados no início. O espaço, para completar, estava com muito entulho, sujo e cheio de areia por todos os lados. Aparentemente seu último inquilino usou o espaço não como uma oficina, e sim como um depósito de artigos de festas. Dentro do local encontramos várias coisas características de decoração de eventos. O artigo mais curioso que achamos no galpão foi uma carruagem de princesa toda forrada, estilizada e de tamanho natural. Esse lugar, depois que a casa começou a funcionar, virou uma das coisas mais icônicas e comentadas da casa, já que usamos como uma grande atração da decoração do club e fez parte da mística que envolveu a casa noturna.

Passado o susto inicial de todo mundo com o tamanho do lugar, consigo convencer a galera a encarar o desafio, pois não tínhamos muito a perder. Nós, a princípio, íamos trabalhar na casa, não era para sermos sócios. Eles aceitaram a missão e ao final do dia todos saímos animados com a possibilidade cada vez mais real de termos um club eletrônico na cidade.

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A carruagem da Wlöd

Idealizávamos um local para dar espaço a toda diversidade de pessoas que frequentavam a noite, e teríamos a total liberdade, pois o dono, não interferiria na parte artística. Esse era o nosso acordo. Ele ficou desconfiado mas acreditou no potencial do grupo que formamos. A equipe contava com Djs, promoter e a equipe de decoração, faltava só mais uma pessoa para entrar nesse staff inicial, e eu escolhi a irmã mais nova do Marconi, a Marlize. Ela era mais uma pessoa que eu tinha capturado mostrando músicas pelo fone de ouvido. Marlize seria a histórica hostess da casa, que para compor a história do club, e de seus nomes diferentes, seria chamada de Fëminette.

A última coisa que faltava para completar esse processo inicial era saber se o espaço estaria adequado a finalidade legal de ser uma casa noturna. Essa informação era determinante para fecharmos o aluguel do espaço e abrir o club. Para tal, me dirijo a Administração do Guará para fazer uma consulta prévia, que é confirmar se o espaço está em conformidade com o uso planejado de atividades econômicas. No SOF (Setor de Oficinas) existiam alguns bares, o que já nos deixava com um fio de esperança. Chego na Administração e vou contando a história bem certinha e digo que quero montar uma boate no SOF SUL. A princípio o cara estranha muito o fato de eu querer montar uma boate no Setor de Oficinas e me alerta que é um lugar deserto que no máximo tem uns poucos quiosques a noite para vender pinga, que para boate não ia poder conceder o documento. De imediato indago se poderia, nesse caso, funcionar como um bar com som mecânico, e o servidor, sem pensar muito fala: – sim, bar com som mecânico pode. Pronto, estava resolvido nosso problema, para Administração o Wlöd seria um bar com som mecânico. Dessa forma conseguimos a aprovação da consulta prévia do espaço, documento que ajudaria a tirar o alvará autorizando o funcionamento.

Para iniciar a decoração e todo o planejamento da concepção artística da casa, a gente precisava escolher um nome. Todo o projeto da casa deveria estar ligado ao nome e a proposta que imaginávamos. Juntamos a equipe de criação no próprio espaço e ficamos muito tempo pensando em qual nome dar. Sabíamos de uma coisa, a palavra club deveria estar presente. O nome deveria ser alguma coisa club. Era muito importante e simbólico, nesse momento, termos um verdadeiro club de música eletrônica.

Na nossa cena tivemos um início muito difícil. Brasília era longe do eixo Rio-SP e não teve um início semelhante as outras cidades. Geralmente em lugares onde a noite já era forte e tradicional, os DJs fizeram a transição sonora desde a disco até chegar na House Music. Para termos acesso por aqui ao material importado era uma tarefa muito difícil, tudo para gente era caro e distante. Brasília conseguiu despertar para a música eletrônica graças ao encontro do Danny com o Pedro Tapajós. Hoje da para ter uma melhor compreensão do quanto esse encontro encurtou nosso processo de assimilação da música eletrônica. Danny veio com discos e bagagem da cena de NY, e se junta com Pedro abrindo todo nosso caminho.

Outro ponto que já coloquei: será que a arquitetura da cidade facilitou a compreensão da música mesmo sem pistas de dança? Talvez sim. Mas devemos sempre pesquisar a história e agradecer muito a chegada de pessoas que, antes de nós, desbravaram terrenos duros, e transformaram em terrenos férteis para música. Mas acreditem, não foi fácil, pois durante esse início tocar música eletrônica na capital do Rock era um grande desafio. O risco não era ficar famoso e ganhar grana, isso nem passava nas nossas cabeças, era na verdade estar preparado para hostilidades, como talvez tomar uma latada de algum covarde. O DJ que se aventurava nessa época precisava além de muitos discos saber produzir eventos e se defender de ataques intolerantes.

Nós sempre sonhamos com esse momento, com a possibilidade de ter um club, semanal, para fazermos nossas festas e consolidarmos a cultura que sempre acreditamos. A hora finalmente tinha chegado, íamos abrir um espaço que seria totalmente voltado a música eletrônica. Como o nome precisava combinar sonoramente com a palavra club, pensamos em um nome curto, que precisava combinar com o final desejado.

Em mais uma obra da mente genial de Pedro Tapajós, ao fim do dia, quando nossas esperanças já estão acabando de poder achar um bom nome, ele pensa e solta um grito – Wlöd. Todos ficaram perplexos com o impacto do som que ele produziu, mas ficamos sem entender como seria a grafia, pois o som produzido pelo encontro das letras com o “o” em trema, dava aquele som entre o “o” e o “e” fechado. Quando Pedro mostra como seria escrito o impacto é enorme. Foi um nome tão bom que durante muito tempo as pessoas ficaram curiosas perguntando qual era a pronúncia correta e de como chegamos nesse nome. Muitos achavam que era o nome alemão de alguma coisa, mas o nome não queria dizer nada, não tinha um significado, só era sonoramente impactante falar Wlöd Club.

Para a decoração da casa a dupla Daniela Brilhante e Flávia Goldberg, diante das possibilidades, deram todo o norte artístico ao projeto. O tema escolhido foi uma mistura de insetos tecnológicos feito das sucatas e restos de peças de automóvel que conseguíamos na vizinhança. Por estarmos no Setor de Oficinas Sul a quantidade de restos de peças de carro era enorme e a variedade incrível.

Eram muitos restos de peças de carro e eles foram a primeira inspiração da casa, surgia aí a Bio-Blast Corporation , nome que usaríamos como parte da história da concepção imagética da casa. A ideia era encher o teto com esses insetos, pois no local escuro quando as luzes coloridas ou estroboscópicas piscassem, dariam efeitos muito interessantes nelas.

A festa de abertura dia 11 de maio de 1996 foi um sucesso, com um público presente de mais de 500 pessoas. Nessa noite, do início ao fim, as pessoas dançaram alegres e vibraram com a inauguração da casa noturna, afinal, era o que todos sonhávamos. A quantidade de gente estava boa, não estava vazio e não estava apertado, estava muito confortável, e como primeira impressão do público ficou a ideia que éramos completamente malucos de ter montado algo assim no setor de oficinas, ainda mais numa cidade sem tradição de clubs como Brasília. Saímos dessa inauguração com a sensação que tínhamos acertado no tema escolhido, nas luzes, no som, em tudo. Foi uma festa histórica que deixou claro que algo de diferente estava no início.

Mas nem tudo foi fácil nesse começo, pois a cidade, sem tradição de ter um club semanal, ia experimentar algo novo, algo nunca vivido. Como a proposta da casa era funcionar semanalmente aos sábados e nós estávamos fazendo algo que não existia aqui ainda, um club de música eletrônica, estávamos meio incertos de como seria a continuidade disso. Fomos com esperança que tudo ia ser maravilhoso para a segunda festa, mas, infelizmente, não veio o mesmo número de pessoas, e isso foi um impacto para nós. Para o público não teve tanta diferença, claro que tinha menos gente, mas quem estava ali eram os que mais desejavam aquilo, não iam desistir tão fácil. Só que o público caiu para a metade, com cerca de 250 pessoas. Preocupante.

Eram tempos sem internet e redes sociais e a divulgação era feita com a distribuição física dos flyers na rua, principalmente nos bares da cidade. Era curioso que quando alguém que não estava muito familiarizado com nossos nomes, nem com a temática da música eletrônica e acabava recebendo um flyer no bar, olhava para ele e não entendia literalmente nada. Em geral, nesse início de divulgação da casa, as pessoas mal compreendiam que era uma casa noturna e também não entendiam o endereço do lugar, que colocamos como SOF SUL 3 A 10. A ideia nunca foi facilitar muito as coisas, os nomes não eram fáceis e a música, principalmente, não era para qualquer um.

A cidade tinha, reconhecidamente, uma vocação para festas, e era pouco acostumada a programações semanais de clubs noturnos. Nós fomos muito preparados para a primeira festa, mas como seriam eventos semanais, precisávamos mudar a estratégia. Estamos falando do meio da década de 90, em uma época que Brasília novamente tinha ganhado atenção de fora por conta da música, e mais uma vez era com o Rock.

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A hostess Marlize (centro)

Não era fácil juntar muitos adeptos sempre, nós ainda precisávamos enraizar mais a música eletrônica na cidade. Agora estávamos com o negócio nas nossas mãos e não podíamos vacilar, precisávamos crescer mais, nos sustentar como empreendimento artístico. Por isso decidimos ampliar e mudar a estratégia de divulgação. A ideia inicial era produzir semanalmente as artes que seriam impressas no panfleto. E o melhor lugar para divulgarmos as próximas noites da casa era no próprio club. Então toda sexta feira a gente pegava na gráfica os panfletos da semana seguinte, para serem entregues a quem ia no sábado. A ideia era perfeita, todos que entrassem na casa receberiam o flyer da próxima noite. Somada a essa estratégia, decidimos criar um outro panfleto sem data escrita, feito em grande quantidade, falando apenas que a casa funcionava todo o sábado. Fizemos isso para diminuir o custo e aumentar a quantidade de panfletos que íamos sair pela cidade divulgando.

Começamos com uma tiragem de 10 mil panfletos, sendo 5 mil de um modelo, e 5 mil de outro. Essa forma foi escolhida para fazermos um revezamento dos flyers distribuídos. Em uma semana usávamos um modelo e na outra semana, o outro. O panfleto tinha menos informações ainda que os outros, mas nesse pelo menos resolvemos facilitar um pouco e deixamos o endereço escrito Setor de Oficinas Sul. O dono da casa que estava sempre muito preocupado achava que as artes eram pouco informativas e muito assustadoras e que talvez não fossem tão eficientes assim. Conseguimos convencê-lo que era uma baita estratégia.

Com a ampliação da divulgação a casa volta logo ao patamar de 500 pessoas por sábado e começa a consolidar sua noite na cidade. Com toda a ambientação feita com sucatas de restos de oficinas mecânicas o Wlöd criou uma atmosfera única. Várias coisas malucas foram feitas lá dentro, como colocar a carcaça de um fusca pendurada no teto, dando a impressão que estava caindo. Outras coisas simples e interessantes foram construídas, como vários canos de PVC com luzes coloridas dentro e pintados de prateado que direcionavam a pouca iluminação pela casa.

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Cnun (Andre Costa) na Wlöd

O Wlöd a cada fim de semana aumentava sua fama de ser o lugar mais alternativo e underground da cidade. Com toda a certeza era o lugar onde se escutava a música mais louca e onde tudo era permitido. Muitas novas sensações foram experimentadas ali. Era um lugar plural, livre e muito aberto as manifestações espontâneas.

Em junho de 96, um mês depois da casa ter aberto, a primeira matéria em uma revista de grande circulação nacional já fala da existência da casa. A matéria foi na revista Isto É que saiu dia 27 de junho com o título de Tribos Federais. Já seria um feito incrível uma casa com um mês de existência conseguir um espaço destacado em uma revista de abrangência nacional, mas um fato curioso ainda contribuiu muito para potencializar a matéria, pois foi a edição completa sobre a morte de PC Farias, tesoureiro do Ex-Presidente do Brasil, Fernando Collor de Melo. Esse fato ampliou muito a venda da revista e ela teve sua tiragem esgotada em poucos dias. Para a divulgação do club foi perfeito. No mês de junho o público da casa começa a aumentar para algo em torno de 700 pessoas por sábado.

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Live P.A. de Paulo Beto, em 1996

O mês de julho seria o mês que a casa definitivamente conquistaria seu espaço na cidade, e com o aumento do movimento, começa a abrir eventualmente nas sextas feiras. Foram dois meses muito intensos de festas e as pessoas começaram a interagir mais com o espaço. Na pista tinham vários cubos de madeira colocados para as pessoas dançarem em cima, e eles ficaram cada vez mais disputados. As luzes estroboscópicas, a máquina de fumaça com seu uso intenso, a música alta, a carruagem, tudo estava funcionando perfeitamente.

Até que no dia 19 de julho, em uma sexta feira, o suplemento de cultura do Correio Braziliense coloca na capa de seu caderno, o Dois, e ainda nas duas principais páginas do encarte, uma grande matéria falando do Wlöd. Uma matéria bem mal escrita, é verdade, mas que fez a diferença no volume de gente que frequentava a casa.

Matéria do Correio Braziliense 1996

Chegar no Wlöd era uma pequena aventura. Precisava ir obrigatoriamente de carro, ou taxi, estacionar por perto e encarar a fila para entrar. No dia que saiu essa matéria a casa abriu na sexta feira alugando o espaço para outros produtores locais da cidade. Nesse dia, por conta da matéria do jornal, a casa tem um público de 700 pessoas numa sexta feira, algo até então inédito. Os Djs foram El Galo (Marcelo Galo) e Cnun. O movimento no Setor de Oficinas está bem diferente agora, guardadores de carro, ambulantes, e até a polícia começam a aparecer na porta do club. O Wlöd desperta de vez a atenção da cidade.

No sábado dia 20 de julho por conta da matéria de capa do caderno Dois do Correio Braziliense, que saiu no dia anterior, fez o Wlöd ultrapassar, pela primeira vez, a marca de 1000 pessoas na noite. Agora a fila para entrar estava grande, o espaço completamente preenchido e a energia estava no auge. Como era um momento de novas e intensas descobertas, a sensação de fazer parte era indescritível. Era uma mistura contagiante que envolvia escutar uma música completamente diferente em um lugar distante do centro que até para chegar nele era uma aventura. Todos estavam com a mente aberta experimentando novas sensações. Estávamos muito interessados em viver realmente tudo que envolvia o contexto das raves, era uma catarse coletiva. A atmosfera que o espaço emanava em um lugar longe do centro, de difícil acesso, muito escuro, com uma música bem complexa, com muita fumaça, tinha agora bastante gente interessada. Era um lugar inovador, muito diferente do tradicional que acontecia na cidade, e mesmo no Brasil, pois a maneira que foi concebida, quase como uma entrega coletiva, de um grupo de jovens idealistas, é muito significativa. A casa oferecendo essa experiência intensa todos os sábado trilhou seu caminho definitivo para a história da cidade.

O Wlöd certamente foi um dos primeiros lugares do Brasil a tocar jungle. Nós estávamos muito a frente no Brasil em relação a esse estilo, principalmente por conta de Pedro e André, que continuaram seguindo a evolução que as gravadoras Warp e Rephlex estavam lançando. No início tínhamos escutado o hardcore que é um estilo que usa bastante o poder do breakbeat, e o jungle é um estilo muito influenciado pelo hardcore/breakbeat das raves do início dos anos 90. Vamos lembrar alguns dos clássicos de batidas quebradas que começaram a ser tocados no Wlöd com Pedro e André, antes mesmo de muitos DJs do Brasil.

 

 

Como o aumento de público se consolidou, e garantiu assim o sucesso das noites, abre-se uma nova possibilidade na casa com mais uma inovação de Brasília. Com uma pequena adaptação em um espaço a casa abre um Lounge, uma segunda pista, que ficou conhecida como pista B. Essa foi mais uma tendência que Brasília incorporou antes mesmo da difusão nacional do conceito de Lounge, que em São Paulo se consolidou com a abertura do Lov.e Club & Lounge em SP apenas em 1998. Enquanto o Lounge do Lov.e, de SP era na Vila Olímpia, bairro nobre e da elite de São Paulo, o nosso era no setor de oficinas sul, feito com restos de oficina mecânica.

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Lounge da Wlöd, em foto de Tatiana Lionço

 

Com a pista B, o Wlöd passa a funcionar na forma de revezamento no som da casa. O DJ tocava um pouco na pista principal e depois ia para o Lounge direto. Pedro e André eram uma dupla e por isso esse trabalho ficou possível. A pista B abriu a possibilidade de ampliação da experimentação sonora na casa. Certamente poucos lugares no mundo tocavam uma música tão complexa, e fazendo pista com as pessoas vibrando com coisas tão refinadas como CUJO, nas mãos de Pedro e André.

Amon Tobin é um brasileiro que estava em Londres no início da década de 90 e é considerado um dos artistas mais originais na música eletrônica. Fundiu Drum’n’bass com jazz hip hop. Era um artista do importante selo Ninja Tunes.

No Wlöd um movimento que vinha se espalhando pelo mundo todo também chega aqui. É o fenômeno da segmentação da música em estilos na noite. Pedro e André começam a se estabelecer no Ambient/IDM e eu no Acid/Techno/House. Essa segmentação acaba chegando ao público, e o fato de agora termos duas pistas fez essa tendência se fortalecer ainda mais na casa. Muitas vezes quando o DJ trocava da pista A para a pista B o público que curtia o som ia atrás, o que criava um movimento grande de giro de pessoas dentro da casa, entre uma pista e outra, seguindo seu DJ de preferência.

O Wlöd foi uma explosão de alegria e descobertas. O club serviu de laboratório para futuras gerações da cidade. Muitos artistas de várias áreas passaram no Wlöd e ajudaram a construir essa atmosfera única que consagrou a casa. Todos participaram de um momento encantador onde a música trouxe novas possibilidades e novas experiências. Nos próximos capítulos dessa história você vai ver os frutos que a casa gerou. Vai conhecer uma nova e grande geração de pessoas que frequentaram o Wlöd e depois viraram Djs ou produtores musicais. Adianto alguns nomes: Ls2, Maze One, Linkage, Arlequin, Quizzik, Kax, Xandy, Hopper, Donna, Chicco Aquino, Nego Moçambique, Fred Lobo, Chec, Fabio PSK, Pezão, CH5, Ric (Mr Spacely), Nívio Caixeta, DJ Kalif, Tomás Rodrigues entre muitos outros.

Em dezembro de 1996 Pedro e André saem da casa e o dono acaba vendendo para outras pessoas que continuam com o club pelo início de 97, até mudar de nome e perder o encanto. Eu ainda participei de algumas noites nessa nova fase, mas depois do que tinha acontecido ali não seria fácil manter esse espaço. Depois de algumas tentativas de festas mal sucedidas o lugar definitivamente acaba virando uma fábrica de gelo.

A partir do Wlöd um novo mundo se abriu na cidade, a figura do DJ começava a ser mais valorizada, o número de pessoas interessadas em realizar eventos aumentou, o público agora estava acostumado a uma noite semanal. Enfrentamos muitas situações complicadas para conseguir manter um ano de intensa atividade e o aprendizado foi enorme, para todos. Pela falta de recursos tivemos que elevar a experimentação ao nível máximo e a criatividade foi fundamental para que as coisas funcionassem, e daqui pra frente, nos próximos anos muita coisa aconteceria. 

O ano de 1997 na música eletrônica em Brasília.

 O Wlöd, como dito, foi um divisor de águas. Os DJ’s a partir de agora começavam a chamar a atenção do grande público, da mídia e dos produtores de eventos. Se anos atrás corríamos o risco de sermos insultados ou de ganhar uma latada de cerveja na cara por tocar este estilo de música, agora recebíamos a atenção de todos.

Esse momento foi quase uma transição de eras. Antes do Wlöd, nós DJs, quando íamos tocar nas casas noturnas existentes na cidade, poderíamos encontrar toda a sorte de equipamentos e cabines. Era uma época que as ligações elétricas eram mal feitas, não existiam muitas tomadas nas paredes e sempre tinha uma gambiarra para a gente cuidar. Nessas casas, que normalmente ficavam nas comerciais do plano piloto, o DJ não tinha nenhum destaque, pelo o contrário, normalmente ficava escondido.

Uma vez em um lugar que fui tocar antes do Wlöd, e que nem citei antes, pois não teve relevância nenhuma para a música eletrônica, o DJ ficava trancado num cubículo. O nome do lugar era Sindicato e ficava na Asa Sul. Nesse espaço, um subsolo da comercial, o DJ além de ficar fechado em um quarto, só conseguia ver as pessoas por um pequeno buraco na parede. Confesso que foi inusitado. Pra ver a pista eu precisava ir com a cara na parede e olhar em um buraco como se fosse um olho mágico. E claro, ninguém me via.

Um novo momento para a música eletrônica em Brasília

Com o Wlöd uma nova era se abriu para todos que trabalhavam ou gostariam de trabalhar com esse estilo de música. O número de DJ’s vinha aumentando após a casa noturna, e isso contribuiu muito para a maior popularização da música eletrônica em Brasília. Se no início o Hardcore, o Bleep, o Techno e a House dominavam, agora, com a introdução que André e Pedro fizeram, as batidas quebradas ganharam força, aumentando o número de adeptos em geral. Os DJs estavam a cada dia conquistando mais espaço na noite da cidade.

Com a segmentação da música sendo uma tendência cada vez mais forte nas pistas mundiais, o meu distanciamento musical de Pedro e André acaba ficando muito evidente e nosso público acaba se dividindo. Nossos rumos musicais até então eram muito relacionados, e de pouco a pouco foram ficando mais distantes. Eles são uma dupla tradicionalmente inquieta, foram pesquisar novas fronteiras musicais com o IDM/Jungle/Drum n’ Bass e eu fui fincando minhas raízes no som 4 x 4 das batidas do Techno e da House.

O primeiro Park Dancing

O ano de 1996 ainda trouxe dois capítulos interessantes nessa história que preciso contar. O primeiro deles foi a realização de um evento de dance music dentro do Park Shopping. A música eletrônica em Brasília já era um assunto recorrente. Qualquer pessoa mais antenada musicalmente e que morasse em Brasília, sabia que algo estava acontecendo nas pistas de dança do mundo. A produtora Low Profile conseguiu convencer o shopping a fazer uma ação promocional para realizar um evento que buscava entrar na nova onda da juventude. E assim fizeram – uma pista grandiosa na praça central do shopping. O nome do evento era Park Dancing.

A praça central foi transformada em uma enorme pista de dança, com spots de luzes colocados por todo o espaço, com máquinas de fumaça, raio laser e outras coisas que complementavam o ambiente. A cabine de som foi posicionada em um lugar espetacular, bem na escada que dá acesso ao piso superior. Ali fica um pequeno trecho nivelado onde a cabine do DJ foi instalada, com uma altura ideal para olhar a pista. O Park Dancing de 96 tinha tudo para ser legal, mas faltou ainda um pouco de conexão com a galera da música eletrônica underground da cidade, como as pessoas que frequentavam o Wlöd.

O Wlöd vivia o início de seu auge e não foi muito afetado pelo evento do shopping, que curiosamente acontecia quase ao lado da casa noturna, que ficava no Setor de Oficinas Sul. Em 96 os artistas escolhidos para o Park Dancing não eram dos gêneros que estávamos muito conectados na época, embora fossem atrações muito representativas nos estilos que tocavam. Os grandes nomes dessa edição foram o DJ português, Vibe e o americano Benji Candelário. Juntaram-se ao time os representantes brasileiros escolhidos na cidade do Rio de Janeiro: Felipe Venâncio e Marcelo Tallandré. Em 1997 o evento voltaria com uma nova edição muito mais interessante para a cidade e que contarei mais para frente.

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Link da matéria da Folha de S. Paulo de 1996: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/13/ilustrada/8.html

Fim de 1996.

O ano de 96 se encerrava, e eu que por um lado sentia a tristeza do fim do Wlöd, ao mesmo tempo tinha a expectativa de que novos artistas começassem a aparecer na cidade. Eu acreditava que muitos dos frequentadores da casa seriam influenciados pela música e pelo estilo de vida e começariam a me ajudar a propagar a cultura DJ, o Techno e a House. Os primeiros parceiros que comecei a me aproximar nessa fase foram o Kill (que com esse nome tocava breakbeat, e mais tarde com o nome Mr Spacely consegui trazê-lo para a house), Maze One, o Chec, o Ls2 e a dupla Fred Lobo e Marcelo Martins (Nego Moçambique).

No final de 96, eu e o Leo Cinelli decidimos fazer uma festa juntos. O evento teve uma boa repercussão e se chamou Happy House Party. Essa festa foi incrível, pois conseguimos arrumar um lugar que foi um achado. O espaço era uma casa de festas infantis no setor de chácaras do Lago Sul. Tinha um espaço cheio de caminhos sinuosos, fliperamas e tinha uma arquitetura bem diferente, com muita expressão. Parecia de alguma maneira que tinha sido inspirado no arquiteto espanhol Antoni Gaudí, pelas formas que a casa e as paredes tinham. Nós transformamos o espaço em uma verdadeira rave.

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Essa noite foi muito animada e ficou claro pra mim que a adesão a esse estilo de evento, mais focado no Techno e na House estava crescendo, e eu estava buscando abrir mais espaço na cidade para mostrar a cultura da discotecagem. No som, eu e Fred Lobo que fazia um Live P.A., fomos os responsáveis pelo agito. Infelizmente, nessa época, ainda não existiam muitos DJ’s desse estilo na cidade, o line up sempre era composto com poucos nomes, e a razão era a falta de pessoas que produzissem, tocassem e tivessem discos. Não era barato ser DJ nessa época, e para tocar precisava ter muitos discos. Lembro que foi a primeira vez que colocamos um raio laser em uma festa e o público saiu maravilhado.

A MiQRa.

Enquanto isso, no início de 1997, Pedro e André estavam cada vez mais unidos e cada vez mais criativos. Com a saída deles do Wlöd em 96 e nossa separação momentânea, eles assumem como DJ’s na nova casa noturna, com noites dedicadas a música eletrônica em Brasília, a MiQRa.

Nesse processo de separação o grupo que era mais ligado a André e Pedro e a galera da UnB, acabou seguindo a dupla e montando toda a concepção artística desse novo lugar. Flávia Goldgelb, Daniela Brilhante e Raul eram talentos que criavam coisas geniais e tinham ajudado na concepção do Wlöd. Eles agora ajudariam na estruturação da ideia na MiQRa.

O lugar, que era feito por uma sociedade de empresários, tinha mais dinheiro e recursos do que o Wlöd, e conseguiu se estabelecer no início da Asa Norte, em uma excelente comercial, na 203. Ficava no subsolo do prédio mais perto do eixo. A casa inaugurou dia 04 de janeiro de 1997, e mais uma vez, com uma proposta inovadora. Saíram os insetos do Wlöd e entram as QNaitra, que eram criaturas monstruosas de quadrinhos underground, criadas pelo artista Skolpein para dar o tom da narrativa musical e da identidade visual pensadas pelos dois DJ’s.

A MiQRa tinha tudo para ser uma casa com a história e representatividade que o Wlöd alcançou, mas muitas dificuldades aconteceram. Era uma época em que a mão de obra em todos os segmentos era escassa na cidade. Não existiam muitos promoters, nem muitos empresários e nem muitos hostess. Tudo ainda era novidade.

Na MiQRa acontece uma união interessante para a cidade e que gerou muitos frutos, que foi a aproximação do público do rock alternativo com a noite eletrônica underground. Nas noites de quinta-feira, a MiQRa produzia a Subterrânea, festa que juntava o pessoal do rock. Esse período fez muita gente do rock acabar indo para as noites eletrônicas de sábado e ser fisgado pela nossa música anos depois.

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O IDM – Jungle – DnB

Era um momento de expansão definitiva dos estilos eletrônicos na cidade. De um lado eu estava me dedicando fortemente ao Techno à House, e de outro Pedro e André estavam se aprofundando no IDM/ Jungle e Drum n’ Bass. Na MiQRa inclusive, um subgênero do DnB começou a ser tocado e fazer muito sucesso nas noites da dupla, o Drill n’ Bass. Esse subgênero começou quando artistas de IDM começaram a experimentar com breakbeat, Drum n’ Bass e Jungle. Era um ritmo bem frenético e irregular e os grandes expoentes nesses tempos da MiQRa foram: Squarepusher, Urmur Bile Traxmm, U-ziq e tantos outros. Não tenho dúvidas que André e Pedro prepararam o terreno para o que, nos anos seguintes, facilitaria a aceitação e o sucesso do Drum n’ Bass na cidade.

O momento da dupla era ótimo, muito criativo, e na MiQRa eles conseguiram inovar bastante. Flávia Goldgelb começa a fazer umas performances absurdas na casa e os flyers das noites pareciam obras de arte. Outro fato importante foi a consolidação do conceito do lounge, que na casa, tinha o nome de QNaitra. O lounge da MiQRa, por várias razões foi muito melhor que o do Wlöd. O motivo é obvio, o espaço já foi pensado e estruturado com ele desde o início. No lounge formavam filas enormes para tentar entrar, de tão cheio que ficava. O lounge do Wlöd era uma pequena sala que existia no espaço e que foi improvisada para esse fim. Lá as paredes eram de chapisco e os móveis feitos de carcaças de carro. As realidades eram diferentes.

Muitos problemas aconteceram que anteciparam a saída da dupla da MiQRa. Mas essa experiência de construir novamente um conceito para uma casa noturna foi um grande laboratório para o que eles viriam a fazer nos anos seguintes. Nessa época a dupla tinha virado referência quando o assunto era experimentalismo na cidade. Eles eram muito procurados por pessoas buscando mais conhecimento nos experimentos musicais e no uso do espaço que eles produziam. Não tinha nenhum DJ do Brasil que arriscava tanta coisa experimental em uma pista. Eles conseguiam fazer esse tipo de ação, pois o público que os acompanhava confiava no que eles faziam, e principalmente, eles tinham tempo suficiente para desenvolver um set, eles tocavam na maioria das vezes sozinhos. O ciclo na MiQRa estava se encerrando mas eles estavam confiantes que poderiam criar algo onde eles quisessem. E provariam nos anos seguintes que os eventos e experimentações podem acontecer em qualquer lugar.

Eu ainda tenho o registro do flyer dessa primeira festa que toquei na MiQRa, junto com Maze One, Chec e Slamm no segundo club de música eletrônica em Brasília. Detalhe curioso no panfleto é que rolaram sorteios de fitas k7 mixadas. Realmente sempre gostei de fazer isso: gravar sets e espalhar a palavra, no caso, a música.

Voltei a tocar na casa dias depois na II Gay Pride Party onde toquei com o DJ Lagartixa (responsável pelo aluguel do som e equipamentos de várias festas no início), e também com DJ Rodrigo, DJ Carlos, DJ El Galo e DJ Geo.

Sounds Music Depot.

Interessante também mencionar que na cidade existia uma loja de discos especializada em CDs importados, a Sounds Music Depot, localizada na 109 norte. A loja era um ponto de encontro de DJ’s e amantes de música underground, além de um lugar que empregou alguns DJ’s da cidade. Nesse ano começo a trabalhar na Sounds, onde eu tive o prazer de passar horas no meu dia recebendo salário pra escutar e falar de música. Trabalhar em lojas de disco sempre foi uma boa alternativa para os DJ’s. Quem comandava a Sounds Music era o Cláudio K, figura muito importante na disseminação da música eletrônica em Brasília. Cláudio tinha a loja de discos e ainda fazia um programa dedicado a música eletrônica na Rádio Cultura, que era referência na cidade e passava todos os sábados à noite, o Eletron. Cláudio K com a Sounds sempre apoiava os eventos de música eletrônica em Brasília e entrará mais na história dos eventos nos anos seguintes.

A nova identidade de Cnun & Sunrise 1

Depois de saírem de uma relação conflituosa com o dono da MiQRa, a Dupla Cnun & Sunrise 1 começa a planejar o fim de seus personagens iniciais e a mudança para suas novas identidades. O local escolhido para dar início a esse processo foi um lugar recém aberto, chamado Sphaera. Não era um club de música eletrônica, e sim mais um espaço que alugava para eventos. O espaço curiosamente e ironicamente também era na 203 norte, na mesma rua da MiQRa, só que no bloco perto das quadras 400.

O tema dessa festa era muito interessante e foi uma sacada genial. O enredo da história era o seguinte, a dupla de super herois, Isn’t & The Six, teria sido congelada pela Rainha Din Din (Adriana Peliano), do planeta Ice-Cream, da Dimensão Geladinha. E literalmente, ela os congela no meio da festa, assume o som, e eles ficam congelados pelo resto da noite, imóveis no meio da pista, performance pura.

Nessa festa eles iniciaram o processo de adeus aos nomes que eles usavam. Esse foi um emblemático momento de posicionamento da dupla como um dos artistas mais importantes e representativos da cidade. Eles eram mais uma vez, naquele momento, os maiores protagonistas de inovação nas pistas da cidade.

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Toda essa credibilidade que a dupla conquistou é resultado de muito trabalho, estudo e entrega artística. Eles começaram em um tempo onde os equipamentos importados eram muito caros, distantes da realidade da maioria dos estudantes da UnB. Bem no início da cena, muitas vezes, as festas pequenas eram feitas com DJ’s colocando fitas k7. Eles nunca foram nem desejaram ser DJ’s no caráter estrito senso do termo, acredito que, naquela época, nem muitas oportunidades para se dedicar e treinar existiam. Eles focaram muito mais em pesquisar e comprar discos do que em treinar mixagens.

Mas eles nunca foram tão pouco meros DJ’s “performers“. Eles tinham uma preocupação com toda a narrativa da história que criavam para cada evento por meio dos flyers, da manipulação do espaço, e principalmente, pela pesquisa musical e curadoria artística. André, nessa época, pegava o microfone com voz de robô, com efeito de vocoder, e proferia frases como: “Dança quem quiser….ou puder”.

Deep Forest

No mesmo dia da festa do Sphaera acontece um outro evento, mas no setor de clubes sul, chamado Deep Forest. Essa festa pra mim foi importante, pois foi uma das pioneiras em buscar o setor de clubes como uma alternativa para realizar eventos de música eletrônica em Brasília O evento seria no Clube de Subtenentes e de Sargentos do Exército. Era uma época que não era exigido alvará eventual para eventos dentro dos clubes. Como os clubes já tinham um alvará eles podiam alugar suas dependências, sem ter de tirar um outro, o que facilitava a nossa vida. Era uma alternativa mais perto do centro da cidade e que mantinha o mesmo espírito livre das festas no Park Way. Nos anos seguintes os clubes do Setor de Clubes de Brasília foram muito usados para a realização de festas, e a Deep Forest foi a pioneira a usar esse tipo de espaço. A festa foi produzida pela Alice Biato que tinha acabado de voltar de uma temporada em Londres e acabou produzindo algumas festas nesse ano em sua volta. Para o som teve a repetição de um line up que já vinha ficando mais constante, comigo, com o Ric Novaes e Fred Lobo e Marcelo Martins fazendo um live P.A.. Foram duas pistas, e o Ric começou a ser seduzido pelo House e adotou outro pseudônimo, e estreou como Mr. Spacely, que se concentrava no som 4 x 4, e o DJ Kill ainda manteve as batidas quebradas. Nesta festa, Chicco Aquino fazia uma participação especial junto com George Lacerda comandando uma percussão ao vivo.

“1997 foi o ano que me inseri no universo da discotecagem, não como DJ ainda, e sim acompanhando alguns DJ’s tocando percussão. Eu frequentei o Wlöd e eu tinha uma banda nessa época. Na Deep Forest fiz minha primeira apresentação como percussionista e logo depois me chamaram para fazer o mesmo na MiQRa.” – Chicco Aquino DJ e produtor da Makossa e Mistura Fina.

 

A festa da Arquitetura

Na década de 90 todo fim do primeiro semestre da Unb, normalmente no meio do ano, acontecia a festa da Arquitetura. Esse era um evento que a cada edição crescia mais, e que a música eletrônica ganhava mais espaço. 1997 foi um ano especial para a festa, pois foi quando a pista de música eletrônica conquistou seu espaço definitivo no evento. Nos anos anteriores, a pista de música eletrônica era sempre uma pista alternativa e ficava em um espaço menor.

Mas em 97 a música eletrônica tinha um novo lugar na festa. Se antes tocar na UnB era um desafio e precisava um pouco de coragem pelo risco de agressão, inclusive física, agora a pista era disputada por todos. Pela primeira vez o tratamento dado a pista eletrônica foi grande, graças aos alunos do curso, principalmente ao Marcelo Galo (DJ El Galo) e ao André Costa, que também estudou arquitetura. Eles conseguiram juntar outros tantos interessados na música para realizar o evento, pois no curso de arquitetura tinham muitos DJ’s, entusiastas de música eletrônica e frequentadores das festas. E para ajudar, era um evento que tinha uma grande e entusiasmada equipe de produção.

“O que se viu nessa festa foi uma pista de sei lá quantas centenas de pessoas como se cantassem com os dedos da mão, e fizessem o refrão da música, os bleeps de Testfour do Sweet Exorcist”, relata André Costa.

 

Nesse ano a pista de música eletrônica foi no bambuzal e o tema da festa foram os répteis. Graças a ajuda de alunos que estavam estudando estruturas em bambu com um professor, eles conseguiram fazer um cenário incrível para a pista e que foi sem dúvida, um dos pontos altos do evento.

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Era interessante que a noite, quando ficava tudo muito escuro, e com as luzes estroboscópicas piscando, os painéis preto e branco criavam um efeito visual incrível.

Esses dinossauros foram montados de uma forma que eles eram articulados manualmente por pessoas que ficavam se revezando e fazendo a cabeça se movimentar. Juntando o movimento com as luzes piscando dava uma sensação incrível. A festa da arquitetura tem uma importância fundamental para a disseminação da música eletrônica em Brasília e da cultura em geral na cidade.

Conexões com outras cidades

Uma coisa foi positiva no início de 97, e que aconteceu muito pela minha necessidade de arrumar parceiros de som. Foi o fortalecimento de um processo muito importante para a cena, as conexões com outras cidades do Brasil. Eu queria buscar pessoas que gostassem dessa música e que eu  pudesse trocar informações, mesmo que elas morassem longe, em outro lugar do Brasil. Eu quero lembrar que na época, não existiam muitas pessoas com quem a gente pudesse trocar ideias sobre música eletrônica em Brasília. Quando eu queria falar de música eletrônica na cidade tinha meia dúzia de pessoas possíveis para conversar, pois ainda não tinha tanta gente ligada nisso ainda.

Essa foi uma das razões iniciais para eu buscar contatos fora de Brasília, eu queria buscar gente, principalmente DJ’s para trocar informações. No início busquei onde eu tinha mais afinidade e conhecimento, que era São Paulo. Eu mesmo voltando a morar em Brasília, depois da minha experiência em SP, continuava indo esporadicamente para lá acompanhar o que rolava. Foram nessas idas e vindas que pude voltar  ao Hell’s Club algumas vezes. Em uma inclusive, foi a noite que teve um Free Jazz Festival que trouxe a Bjork, e os meus ídolos do começo, o 808 State, isso ainda em 1997. Lembro que o Goldie também tocou nesse evento. Depois dos shows boa parte de quem estava no lá foi para o Hell’s curtir o After. Nem preciso falar que foi um dos mais incríveis. Tenho flashes ainda em minha mente. Lembro inclusive que o Mau Mau fechou a noite tocando Born Slippy do Underwold.

 

Eu continuava tendo contato com alguns DJ’s de SP e nessa época não tinha ninguém se destacando mais no Brasil que o DJ Mau Mau. O que ele vinha fazendo no Hell’s era impressionante. Eu tinha o sonho de fazer um evento com ele em Brasília, mas trazê-lo para cá, naquela época em que os DJ’s ainda não eram agenciados, não era uma tarefa fácil. E era uma época que ele ainda não costumava tocar tanto fora de São Paulo, e se saísse, ia tocar em Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. Nunca Brasília estaria nesse roteiro. Acredito que a única referência que eles tinham de Brasília eram aqueles caras que iam dançar em SP (Pedro, André, eu e Marconi). A primeira coisa necessária eu já tinha, que era ter o telefone dele. Nas minhas idas a São Paulo fiz questão de pegar o telefone de algumas pessoas. Era esse o meio de comunicação mais rápido da época.

Essas minhas conexões tiveram seu início no Wlöd, em 1996, quando tivemos a oportunidade de trazer a DJ Paula Chalup para tocar em Brasília. Paula era muito minha amiga e quando eu morava em SP foram incontáveis vezes que fazia questão de buscá-la em sua casa, junto com mais uns amigos, para irmos todos ao Sra. Krawitz. Começamos a nos interessar por discotecagem quase ao mesmo tempo, vendo a dupla Renato Lopes e Mau Mau em São Paulo. 

Não podemos esquecer que eram tempos em que os DJ’s podiam passar alguns apuros em viagens para fora de sua cidade, já que as coisas eram mais amadoras, cada um fazia por si, não existia alguém que os agenciasse. Alguns poucos DJ’s estavam começando a trabalhar com contratos para evitar os perrengues. Pra nossa sorte, quando eles viram o Wlöd ficaram alucinados com tudo, com o lounge, com a decoração, com a localização, com o lugar. Fiquei muito feliz com a vinda da Paula e acho que foi um momento importante e que conseguimos mostrar o que Brasília poderia proporcionar.

 

O último respiro do Wlöd Club

No fim de 96 o Wlöd foi vendido pelo dono original para uma dupla de novos donos. Analisando hoje em dia, se o Wlöd tivesse começado com essa dupla a história provavelmente seria muito melhor. Eles tinham mais sensibilidade artística, eram ligados em música e a cabeça mais aberta. Mas, infelizmente a vida noturna é assim, quando a magia de uma casa noturna acaba, é difícil se manter. Eu já tinha visto e vivido, infelizmente, isso no Sra. Krawitz e percebi que o destino brevemente ia ser fechar a casa. Mas no começo de 97 a casa ainda respirava por aparelhos, ainda tentava funcionar no novo formato. Para completar  a dificuldade do Wlöd, a MiQRa abriu no início de janeiro de 97, no dia 04, e isso atrapalhou ainda mais sua continuidade. Mas no último fim de semana de janeiro fizemos uma grande festa e chamamos novamente a DJ Paula Chalup de SP.

Era curioso que nessa época o Trance em Brasília ainda não era associado ao estilo musical que conhecemos hoje. O Trance nesse período ainda tinha uma conotação muito mais urbana e se referia muitas vezes ao transe que a música poderia proporcionar. Sven Vath era um nome do Trance que eu tocava na época, assim como o selo Stay Up Forever. Mas esse estilo é mais urbano e diferente do que ficou conhecido como trance posteriormente. O estilo do Trance psicodélico foi começar a chegar ao Brasil no início da década de 90 em Arraial d’Ajuda e Trancoso na Bahia, e eu curiosamente passei o verão de 97 para 98 e 98 para 99 nesses lugares e vi muito disso acontecendo. Tive a sorte de conhecer lá uma figura importante para cena Trance brasileira, o Krant.

Mas voltando nessa festa que aconteceu já na nova fase do Wlöd, ela ainda contou com a presença do DJ Kill, que era Ricardo Novaes (Ric, RIP). Ric alguns anos depois estourou em sua carreira como DJ tocando entre Madrid, Ibiza e Rio de Janeiro como Mr. Spacely. Ainda voltarei a falar dele nos anos seguintes, pois ele foi muito importante para nossa cena também.

A festa também teve o Live PA da parceria que começava a surgir entre Fred Lobo e Marcelo Martins (Nego Moçambique), e também com um mais novo parceiro, o DJ Maze One (hoje Hybrdz). Maze foi um dos caras que eu incentivei muito, pois eu via ele que gostava da música e tinha talento. Ele era frequentador do Wlöd e também passou a ir lá em casa ouvir som, pois eu queria ter mais gente querendo esse mesmo ideal para suas vidas. Cheguei a chamá-lo pra tocar mesmo sem ele ter muitos discos ainda, e ofereci os meus para ele complementar o set. A festa pelo que me lembro foi massa.

A Grande Tenda

Como o Mau Mau era muito amigo da Paula, essas vindas dela para cá foram fundamentais para a próspera negociação da vinda dele para sua primeira tocada em Brasília. Ela me ajudou nisso e falou super bem da cidade. Falou bem das festas que tocou, do público e da experiência que viveu aqui. Falou que ele precisava ver o que estávamos movimentando na cidade, que Brasília merecia uma atenção e que de fato, existia música eletrônica em Brasília.

Consegui fechar tudo com ele depois de alguma negociação, que nesse tempo com o Mau Mau era via telefone e funcionava da seguinte forma: Eu ligava e ele não atendia. Não existia identificador de chamadas e então a ligação caía na secretária eletrônica e e eu começava a falar: Oi Mau, sou eu, Guilherme de Brasília, vamos fechar uma data para você vir tocar aqui?. Às vezes, enquanto eu gravava meu recado ele atendia ao telefone. Esse era o mecanismo de negociação naquele tempo, sem agência, sem celular e sem e-mail. Puro DDD. Para quem talvez não saiba, DDD é o que chamamos de Discagem Direta a Distância, ou seja, o código do estado que você deveria usar para falar com uma pessoa em outra cidade em um telefone fixo.

Detalhe importante dessa negociação foi que o Mau Mau só topou vir se a gente trouxesse a Paula para vir com ele, afinal ele também não queria vir sozinho. E foi o que fizemos. Paula Chalup e Mau Mau estavam fechados para nossa próxima festa.

Eu já sabia que no sábado seria impossível trazer o Mau Mau pois não teria como deixar os compromissos dele em SP. Era a época do Hell’s Club e as casas noturnas tinham seus residentes e eles não tinham os sábados livres. Fechamos para uma sexta feira e decidimos fazer a festa em um espaço que alugava para eventos no Park Way, a Mansão de Vidro. Uma casa linda e normalmente usada para eventos sociais como casamentos e formaturas. Nós não íamos usar a casa para fazer a pista da festa. Nós, tínhamos outros planos. A ideia era criar esse espaço no jardim com uma tenda, uma Grande Tenda.

A vontade de trazer o Mau Mau para tocar em Brasília era grande, e eu achava que já tinha chegado o momento. Para o projeto me juntei  novamente com o Leo Cinelli e dessa vez teríamos mais um parceiro, o Rogério Aranha, um amigo nosso. Depois de toda a negociação chega o dia do evento. A divulgação tinha sido perfeita, a atenção que conseguimos da mídia na época foi bem boa. Lembro que saiu uma matéria legal no jornal Correio Braziliense no dia do evento, enfim, tudo estava bem encaminhado para que a festa desse certo. Eram outros tempos, e as dificuldades de comunicação eram muito grandes. Pouquíssimas pessoas tinham telefone celular. Fizemos coisas impensáveis nos dias de hoje, como por exemplo, esperar até as 8h da noite o cara trazer as bebidas pra gelar, sem nem mesmo ter a certeza que ele estava realmente a caminho. Além disso, tivemos o capricho ou a loucura de montar um piso de madeira em toda a pista da Grande Tenda. Nem conto o custo disso.

O terreno não era desnivelado, mas quando imaginamos a festa já pensávamos em colocar um tablado para as pessoas poderem dançar. Nessa época adorávamos essa sensação do grave batendo na pista e das pessoas batendo o pé no ritmo do bumbo e assim marcando as batidas ao dançar. Era uma época em que um grito característico começou a ganhar as pistas da cidade. Na Grande Tenda, quando algum break de uma música muito boa entrava, era nítido ouvir a resposta da pista batendo os pés no tablado e gritando: Pode Soltar! Pode Soltar! Esse grito fazia referência ao momento que a música fica sem os bumbos, dando aquela pausa para retornar com tudo, e antes que isso acontecesse dava para ouvir as batidas no tablado e o grito da galera pedindo o retorno, até a explosão da música.

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Na montagem do evento acontece o primeiro problema, e ele é relacionado ao bar. Chega o gelo, chegam as tinas para armazenar a bebida, mas não chega o principal, a cerveja. Em uma época que praticamente ninguém tinha telefone celular ficamos ilhados sem saber se eles realmente viriam trazê-las ou se algo tinha acontecido. Resumo: a festa ficou pronta, o gelo estava derretendo e a cerveja não chegava. Depois de muita angústia, algumas tentativas de telefonemas a cerveja foi chegar por volta de 21h. Hoje em dia, com mais agilidade na comunicação, e na oferta do serviço isso seria facilmente resolvido, mas na época, na inocência e no medo de falhar, tomamos algumas atitudes erradas. O desespero e a inexperiência eram grandes. Quando finalmente chegou a cerveja a vontade de acertar era maior que a razão e a equipe do bar tomou uma decisão desesperada e abriram muitas caixas de cerveja com medo de não gelar e perder o gelo, resultado? Sobrou MUITA cerveja gelada, e tivemos que estocar em um monte de geladeiras por Brasília e ficar tomando por meses na casa do Rogério.

Mas esse foi o único problema e que não refletiu em nada para o público. No geral a festa foi marcante, tão marcante que a Mansão de Vidro nunca mais alugou para esse tipo de evento. Acho que deu mais gente do que imaginavam.

Estávamos vivendo um momento de valorização total em todos os aspectos da noite eletrônica. As festas estavam chamando mais a atenção e as pessoas indo mais aos eventos, mesmo que o lugar fosse distante. Era perceptível que o interesse pela música estava aumentando muito. Lembro-me que era um tempo onde a preparação para sair a noite era intensa e muitos grupos se formavam para se produzir e beber antes na casa de algum amigo. Era uma época que rolava esquenta, rolava socialização antes dos eventos e era legal chegar em grupo para celebrar esse momento de reencontro com as pessoas  que estavam conectadas com os mesmos  desejos, com os mesmos sentimentos de liberdade.

Existia o sentimento de que participávamos de algo realmente novo e que todos poderiam fazer parte. Era um espaço democrático, muito tolerante, e principalmente, bastante intenso e animado. Por anos a pista de Brasília foi reconhecida como uma pista muito receptiva aos DJ’s, e todos reconhecem isso quando vem tocar aqui. Tenho certeza que a pista da cidade é até hoje muito boa em razão da história que vivemos aqui. Para Brasília ter a pista maravilhosa que tem hoje muito se deve as conquistas que foram realizadas ano após ano no passado. Isso é um processo, essas coisas não acontecem do nada.

A festa A Grande Tenda foi um marco, um verdadeiro acontecimento em meio a uma nova era que se mostrava possível. A cidade do rock agora abrigava uma festa para mais de 1000 pessoas, afastados do centro da cidade, em uma grande tenda de circo, com o maior DJ do país, em seu melhor momento da carreira. E como venho mostrando ao longo desses textos, mais uma vez tinham no máximo 2, 3 DJ’s. Isso acontecia pela falta de DJ’s atuantes na cena Techno e House na cidade. A razão principal era a dificuldade de acesso aos discos importados, não era fácil nem barato ser DJ nessa época. Infelizmente na minha vida vi muitos talentos acabarem não tendo fôlego para continuar a investir em disco e assim poder tocar.

A festa teve também uma apresentação do Live PA do Ten Ko, projeto do Fred Lobo e do Marcelo Martins que vinha conquistando cada dia mais seguidores que curtiam a apresentação da dupla.

Outro grande destaque da festa foi o lounge, um conceito que já tinha sido usado no Wlöd e na MiQRa, e que só foi implementado em São Paulo no ano seguinte, em 1998, com o Lov. E Club & Lounge. O nosso foi nomeado de “A Sala Das Mentes Silenciosas”. Esse foi o único espaço que usamos dentro da casa, da Mansão de Vidro. A casa era linda, não sei se deve ser boa para morar, mas para uma festa era maravilhosa, sem dúvida. Dentro de uma sala colocamos um tapete, uns puffs, além de uma maca que seria utilizada pelos massagistas que foram contratados. Para deixar o clima mais zen, tocava ao fundo uns mantras indianos. A ideia era se acabar de dançar na pista principal e ir ali no lounge respirar um pouco e talvez fazer uma massagem para se recuperar. Lembro que depois do Mau Mau ter tocado e arrasado com a gente na pista levamos ele lá para fazer uma massagem. Estávamos muito felizes com aquela noite. Essa foi a primeira vez que o Mau Mau veio tocar  em Brasília e nos meses e anos seguintes ele acabou voltando mais algumas vezes. Ele adorava tocar aqui e acabamos construindo, a partir dessa festa, além da amizade, uma bela relação profissional que durou muito tempo. Durante alguns anos eu tinha um canal direto com o Mau Mau que poucos tinham, nem todo mundo tinha o telefone da casa dele.

Depois da Grande Tenda ganhamos mais um parceiro. Mais um frequentador do Wlöd entrou de vez para o nosso time por conta dessa festa, e me deu uma nova parceria que iria começar nos anos seguintes, o DJ Ls2.

“Foi, sem dúvidas, na festa A Grande Tenda que percebi realmente que queria isso para minha vida, eu queria tocar nessa pista, eu queria participar dessa história.” – DJ Ls2

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Pista da Grande Tenda

As diferenças de ontem e de hoje

A vantagem dos formatos de line up com poucos DJ’s é que dessa forma todos têm muito mais tempo para trabalhar e controlar a pista, e assim dando os direcionamentos que julguem necessários. Os DJ’s quando tem mais tempo podem arriscar e inovar mais, sem medo.

A volta do Park Dancing

Demos muita sorte em conseguir fechar com o Mau Mau no mês de abril de 1997, pois em junho, o evento que tinha acontecido no ano anterior, voltaria a cidade. Agora ele teria um formato muito mais atraente e de fato chamou mais a atenção do público antenado em Brasília, era a volta de mais uma edição do Park Dancing. E o desse ano de 1997 volta com uma programação muito mais interessante. Eram 4 noites de festas seguidas, quarta, quinta, sexta e sábado. E, dessa vez, não dava para deixar São Paulo de Fora. Na quarta- feira as atrações foram: Mau Mau e Felipe Venâncio, na quinta: o gringo Jon Pleased Wimmin e Marquinhos Meskita do Rio. Na sexta se apresentou pela primeira vez em Brasília outro DJ que me influenciou no início da minha trajetória, o DJ Renato Lopes de SP, do Sra. Krawitz, o DJ Digit de Chicago e o percussionista Pascal Bongo Massive. No sábado Felipe Venâncio e George Morel (diretor artístico da gravadora Strictly Rhythm), completaram o time de Dj’s.

O evento foi maravilhoso e para quem era DJ e enfrentava as dificuldades e durezas do dia a dia, ver esses dias de movimento e fila no shopping mais importante da cidade foi um sinal claro do que poderia vir pela frente. Saímos da fase do risco de tomar latada de cerveja na cara para ver com nossos olhos um shopping trazer alguns de nossos ídolos. Era uma mudança muito grande em apenas 3, 4 anos. A noite que o Mau Mau tocou foi histórica, o DJ estava numa fase incrível, talvez a melhor de sua carreira e as pessoas que se deslocaram para ir no evento em uma quarta- feira a noite foram dispostas a dançar muito. Ele já tinha conquistado muitos adeptos aqui por conta da Grande Tenda e tocou pela primeira vez com 3 toca discos nas nossas pistas. Felipe Venâncio também tocou bem e todos voltaram muito felizes para casa. Pra mim, foi a sensação de que algo grande estava acontecendo, que a história estava sendo contada ali, naquele instante.

Nos outros dias, a maioria das pessoas que tinham ido na quarta voltou e alguns novos laços foram criados. Já ouvi de muitos DJ’s que esse evento foi inspirador para iniciarem ou seguirem lutando nessa carreira.

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DJ Mau Mau no Park Dancing 1997

 

Link da matéria na Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/6/20/ilustrada/33.html

A Expansão da cena

Logo após o Park Dancing Mau Mau já começa a dar créditos para a cena de Brasília na saudosa revista DJ Sound onde ele e o DJ Guilherme M, também de SP, tinham uma coluna chamada Musical Science, que era uma excelente referência e fonte de informação na época.

Não dava mais para alegar desconhecimento do que acontecia na cidade, pois mais uma vez a revista Isto É fez uma grande matéria sobre o crescimento da música eletrônica no Brasil, e falou de São Paulo com o Hell’s, Belo Horizonte com o Anderson Noise, Rio de Janeiro e de Brasília.

O momento estava muito interessante na cidade, as festas estavam dando certo, tinham mais DJ’s surgindo e novas possibilidades apareciam. Mau Mau estava se destacando tanto nesse momento, que depois da primeira vinda dele na Grande Tenda e depois no Park Dancing, pensei em fechar logo uma outra data com ele para um evento que pudesse representar aquele momento que eu estava vivendo. Foi assim que depois da minha “separação” do André e do Pedro e de ter produzido algumas festas, acabei me juntando de vez à produtora que o Leo Cinelli já usava o nome no Wlöd – a Couhutec.

Um novo olhar

Hoje, analisando mais a fundo, penso que nossa separação, naquele momento específico, acabou sendo produtiva pra cidade. Não nos dividimos, nos multiplicamos. Viramos núcleos diferentes, com músicas e estilos muito diferentes, mas com ideais de liberdade e de tolerância  semelhantes. Eles, exímios pesquisadores musicais, performáticos, com uma bagagem musical e estilos únicos. Eu levando comigo o que aprendi com eles em relação a pesquisa musical e ao ideal da noite, até hoje. O que busquei um pouco além foi no meu desejo de me aprofundar na arte no djing, na arte da discotecagem.

Para a cidade foi positivo, pois aumentaram muito os eventos e as pessoas puderam conhecer diferentes formas de apresentar a arte, a música. Com essa segmentação Brasília se desenvolveu tanto no Techno e House, como no Breakbeat/IDM/Jungle/Drum n’ Bass. Passados muitos anos tenho certeza que acabamos aprendendo muito nesse processo, o que acabou nos unindo mais posteriormente. Foram anos muito intensos e de muito aprendizado coletivo.

Pedro e André apostavam cada vez mais em espaços inusitados, diferentes, com estéticas planejadas e principalmente pensando em concepções artísticas e arquitetônicas. Nosso núcleo apostava em festas mais distantes do centro, onde tínhamos mais liberdade e proporcionávamos um som mais ligado a cultura DJ, ao Techno e a House.

A Invader Space DJz

O projeto da próxima festa estava pronto, tínhamos achado uma casa no Park Way, que certamente hoje em dia muitas pessoas achariam longe. O lugar tinha o nome de Mansão Débia. Estávamos com o desejo de fazer uma festa com a temática da invasão alienígena pois o Léo tinha arrumado uma espuma e ia fazer um ET de 2 metros que brilharia na luz negra. A ideia era colocá-lo em frente a cabine. Para essa ação de decoração chamamos mais um parceiro, o Marciano.

Dia 4 de julho de 1997 fizemos essa aposta, e foi alta. Uma festa distante do centro com dois DJ’s dos mais importantes de Techno na época, cada um de uma cidade, Ricardinho NS do RJ pela primeira vez em Brasília e a volta do Mau Mau, pela terceira vez em 4 meses.

Capital Club – Taguatinga

Com o sucesso dessa sequência de festas logo somos chamados para fazer uma noite na Capital Club em Taguatinga, boate que estava se estabelecendo como uma das melhores da cidade. E claro, falamos que queríamos o Mau Mau novamente. E dia 30 de julho de 1997 novamente ele é convocado para tocar pela primeira vez em Taguatinga, em plena quarta- feira. Conseguimos levar uma galera que já garantiria a pista e chegando lá percebemos que a noite ia ser excelente, já tinha fila e gente ansiosa pelo som. Abri a noite tocando o que eu vinha tocando nas minhas festas e quando o Mau Mau entra a casa vai abaixo. Quem conheceu a potência do som, o posicionamento da cabine da Capital sabe o que estou falando. Foi fantástico.

É interessante citar que esse mesmo ano foi o ano que os DJ’s de Taguatinga começaram a frequentar os eventos undergrounds no plano piloto. Eu sei por depoimentos, principalmente do Ricco, que eles começaram a ir nos eventos da cidade, muitos foram ao Park Dancing ou MiQRa. Alguns trabalharam e frequentaram a Capital Club. DJ’s como Elysio Romero, Poeck, Lui J, Einstein e o Ricco são crias dessa época. Taguatinga e suas festas entrarão mais na história a partir do ano de 1998.

“1997 foi o ano que mergulhei na música eletrônica em Brasília, meus primeiros eventos foram na MiQRa e no Park Dancing” – Relata DJ Ricco

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Salão onde funcionava o Tropical Club

 

Depois do Park Dancing, outro que se arrisca a produzir eventos foi o DJ e produtor Maze One, que consegue uma data com o DJ Renato Lopes para tocar aqui. Era a segunda vez que o DJ de São Paulo voltaria a Brasília para mostrar o seu som. Foi um final de semana de muito aprendizado para todos que participaram do evento. Tivemos a oportunidade de um contato mais próximo aqui com o Renato Lopes, que também foi muito legal. Renato é uma pessoa incrível, além de um dos melhores DJ’s do Brasil de todos os tempos. Lembro que fomos levá-lo para almoçar no domingo depois da festa onde a família do Maze One tinha um maravilhoso restaurante árabe no Gilberto Salomão. Aproveitamos para comer lá e a mãe do Maze, muito atenciosa, falava o tempo todo pro Renato, que já tinha comido bastante: – Mas você precisa comer mais um pouquinho, tá tão magrinho…

A abertura da Deep

Outro acontecimento curioso do ano foi que um dos donos da MiQRa saiu de lá e montou uma nova casa noturna. Esse empresário tinha interesse em ter mais um negócio com música eletrônica, e abriu um espaço no Brasília Rádio Center, onde funcionou anteriormente uma pista de Kart Indoor.  O nome do lugar era Deep e fui chamado para tocar na noite de abertura, onde a grande estrela seria a sensacional Miss Honey Dijon, que na época ainda não era tão conhecida.

Infelizmente por questões burocráticas ela não conseguiu o visto de trabalho e não pôde embarcar para o Brasil e sua turnê foi cancelada. Lembro bem que não era um tempo fácil para resolver a burocracia de trazer DJ’s americanos. Tinha a questão de ser visto de trabalho e isso demorava mais que o normal. Os artistas estrangeiros não deviam estar acostumados com o processo mais burocrático que era tocar no Brasil e América do Sul, por conta da política diplomática da reciprocidade, e muitas vezes perdiam os prazos. A festa e a casa perderam bastante do encanto, mas acabou acontecendo. Outras noites legais rolaram lá e eu tenho o registro de uma noite onde toquei com DJ Maze One, DJ Chec, e o DJ Ls2. Infelizmente a casa não durou muito tempo.

“1997 foi um ano muito importante pra mim, foi o ano que adotei esse estilo de vida. Comecei a frequentar a casa do Gui que era onde todos se reuniam para escutar música. Daí em diante nunca mais consegui sair desse modo de vida” –  DJ Maze One

Maze One e Chec começam a se juntar e dividem a compra de um par de Technics Mk2 para se aprofundarem no assunto da discotecagem. Finalmente minhas sementes começam a gerar frutos. O toca disco Technics era o sonho de consumo de qualquer DJ no mundo. Eu mesmo nunca tive a oportunidade de ter um par desses em casa, treinei muito em toca discos bem inferiores, como o CCE. Eu tive que aprender a mixar na Technics com a experiência do dia a dia, ou seja, tocando na noite, pois é a prática que realmente ensina. Era uma época que de um lado ainda tinha um certo amadorismo misturado com paixão e desconhecimento de como as coisas funcionavam. Mas uma coisa eu já entendia, pra tocar tinha que produzir evento, para produzir evento eu tinha que ser produtor e encarar como negócio, ser empresário, e artista.

Eu começava a me aproximar desses novos DJ’s que estavam aparecendo em volta do que eu estava movimentando. Isso me rendeu excelentes parcerias depois. Maze One e Ls2 começam a frequentar minha casa, onde meu quarto, por muito tempo, foi um ponto de encontro de muitos DJ’s da cidade. Passávamos horas lá ouvindo música, conversando sobre música, e eu estava adorando esse convívio. Estávamos formando um novo grupo na cidade, e era o que eu vinha mais buscando nesses tempos, parceiros que gostassem de Techno e de House e que topassem novas investidas.

A lista Br-Raves e o rraurl.com

Ainda em agosto de 97 mais um fruto dessa filosofia de buscar conexões pelo Brasil deu resultado. O encontro entre aficionados por música eletrônica aconteceu com a popularização da internet no Brasil. Essas conexões no início da internet foram muito importantes para Brasília e para cena de muitos lugares

Era  a época do início das primeiras listas de discussão na internet e que eram uma evolução do conceito inicial de BBS, que era o Bulletin Board System e do fórum de discussão. Os BBSs dominaram o cenário das comunicações digitais na década de 80, não só nos Estados Unidos, como em muitos outros países, incluindo o Brasil. Começaram a cair em desuso com a popularização da Internet, em meados da década de 90, onde os fóruns de discussão e as listas ganharam força. A nossa era basicamente uma lista de e-mail onde as pessoas se inscreviam no grupo e podiam mandar e-mails com seus comentários. Outros usuários podiam responder ou criar novos tópicos.

Essa lista juntou amantes de música eletrônica pelo Brasil, e era chamada Br-raves. Muita gente de Brasília, entre DJ’s e frequentadores das festas, eram assinantes da lista. Essa conexão foi única, pois juntou pessoas que viajavam para as festas e festivais pelo país e se encontravam direto, estreitando os laços de amantes de Techno e House pelo Brasil. Finalmente podíamos trocar informações com pessoas que pensavam e gostavam da mesma coisa, independente de qual lugar do mundo essa pessoa estivesse. Falar isso hoje parece a coisa mais comum do mundo, mas como tentei mostrar nesse texto, eram oportunidades raras na época.

Depois, essa lista de discussão ainda virou um canal de mIRC, que era uma nova tecnologia de comunicação da internet na época, nada mais do que salas temáticas de bate papo, e isso ampliou ainda mais o alcance do grupo. São amizades que duram até hoje, com muitas festas e festivais nas costas, e muitas viradas de ano juntos em Trancoso, Caraíva e Santa Catarina.

Outro ponto importante de referência nacional na cobertura e na troca de informações pelo Brasil foi o portal www.rraurl.com. O Rraurl como chamávamos foi criado em 1997 como um projeto entre amigos fãs de música para divulgar e registrar a cena cultural da época. O site existiu exclusivamente como fonte de informação com matérias sobre DJ’s e produtores, depois ampliou para um calendário com as datas das principais festas e festivais, e foi atualizado até o começo de 2011. Após isso, o arquivo do rraurl esteve disponível para consulta, sem equipe, patrocínio, anunciantes ou atualização até 2016, quando saiu definitivamente do ar. O rraurl era comandado pelo DJ Gil Bárbara, outro grande influenciador na minha trajetória, e pela Gaía Passarelli. Os dois foram batalhadores incansáveis pela disseminação da cultura underground pelo Brasil. Eu falarei mais desses dois personagens nos anos a frente.

Um dia lá em casa, ficamos pensando em fazer uma festa e da lista Br-raves pensamos em chamar para tocar um DJ que se destacava como DJ de Techno no grupo seja pelo conhecimento técnico ou pela pesquisa musical  e seu nome era Fábio Mont’alegre, conhecido como DJ Spiceee. Ele era de Florianópolis e veio para tocar em uma festa no dia 23 de agosto que fizemos no Park Way mas que infelizmente não tenho  registros. Ele ia ficar um final de semana e ficou quase 2 meses na minha casa, e se juntou ao grupo que já estava indo pra lá direto.

Lembro que quando fomos busca-lo no aeroporto ele me perguntou uma coisa curiosa que lembro até hoje: “Como você traz um DJ sem nem saber se ele sabe mixar?”. Não era todo o DJ que tinha condições de gravar fitas K7 e distribuir pelo Brasil. Não tinha download de set para você saber se realmente as pessoas sabiam tocar, era muito importante ter uma pesquisa musical diferenciada para ter destaque.

Com essa lista e com a amizade entre os DJ’s que faziam parte dela, logo chega uma novidade que poderia ampliar muito o nosso acesso aos discos importados. Entravam na internet as primeiras lojas de discos de vinil online. E nesse início duas lojas atendiam muito bem ao Brasil, a Satellite Records de NY e a Bent Crayon de Ohio, ambas nos Estados Unidos. Pra mim, era a primeira oportunidade de poder comprar um disco escutando realmente a música e não só pelo artista. Nessa época sempre comprávamos discos por meio de uma listas de discos que queríamos, e muitas vezes nunca tínhamos escutado. Comprávamos os discos de artistas que pesquisávamos previamente, não dava pra torrar uma fortuna sem pesquisar um mínimo antes. E essa pesquisa se dava via revistas, compra de discos, vendo outros DJ’s tocarem, e agora via listas de discussão e sites como o rraurl.com.

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a loja online Bent Crayon

Crex Crex Crub

Já a dupla Pedro e André, ainda conhecidos como Sunrise 1 e Cnun, preparavam uma série de doze festas com o nome de Crex Crex Crub. Essa saga complementaria a mudança de nome planejada pela dupla após a saída da MiQRa. Foi o auge do experimentalismo na noite da cidade. Eles fizeram um prelúdio no Rock Machine, espaço que existiu no fim da Asa Norte que era comandado por Fábio Braga, DJ Psk do Temprano, sócio de Ernani Pelúcio, meu parceiro de infância. Falarei mais desses dois mais para frente. Fomos para a festa eu, Spiceee e Ls2. Essa noite foi marcante, pois além da excelente festa, foi a noite do acidente da Lady Di que a vitimou horas depois. Lembro bem da tristeza do Spiceee.

A série Crex Crex Crub inovou em muitas coisas, desde o flyer, ao conteúdo do flyer. Inovou também na distribuição do flyer, na decoração, no local, na performances, enfim, tudo foi milimetricamente pensado. E tudo foi executado com um primor de cair o queixo pelas mãos do André Costa. Era impressionante como a cidade aceitava experimentar sensações diferentes de uma forma tão intensa, escutando uma música tão abstrata.

Alguns momentos icônicos das festas foram: Timoteo cobrindo a pista debaixo do eixão sul, com um manto azul que saia do seu corpo, de sua roupa e da sua cabeça, tudo isso ao som de Autechre. André sempre pensou na questão da arquitetura e da importância do uso do espaço da festa e veremos que nos anos seguintes ele levou essa ideia onde ninguém nunca tinha imaginado. Primeiro que o espaço escolhido para a Crex Crex Crub foi no cruzamento dos Eixos de Lúcio Costa, num restaurante que na época se chamava Nova Lapa e que posteriormente virou a Churrascaria Floresta onde a Makossa do Léo Cinelli e do Chicco Aquino ocuparam por mais de 15 anos.

flyer de abertura do evento era uma arte frente e verso dentro do qual havia um disquete com um ovinho de codorna cozido. A arte do flyer era um universo cheio de mensagens cifradas misturadas com teorias urbanísticas de Lúcio Costa. Até a mãe do André o ajudou a confeccionar tudo. Lembro que o Spiceee, que estava na cidade já encantado com o que a gente fazia, quando olhou as coisas que o André e Pedro estavam distribuindo na rua para fazer divulgação, ficou alucinado. Esse foi um dos motivos para ele ter ficado mais tempo na cidade, ele queria ir em várias festas. Eu cheguei a tocar em uma das festas dessa sequência da dupla como convidado, e esse foi o começo da nossa reaproximação. A gente se respeitava e se gostava muito pra ficar muito tempo distante. Crex Crex era uma codorna, e o Crub veio fechar a sequência de aves raras que eles fizeram. Sai Cnun e entra Isn’t, sai Sunrise 1 e entra The Six. Tem início um época em que compreenderam que, para eles, a cidade não funcionava com lugares fixos.

“Adotamos daí em diante a efemeridade e a itinerância como princípios. De fato, nunca gostamos de nos repetir” – Afirma André Costa.

 

Wonderland – Techno Party

Em Outubro mais uma festa importante acontecia na cidade, era a despedida da casa onde moravam as irmãs Biato, Júlia, Alice e Laura. A casa no lago norte abrigou duas pistas, uma na garagem e uma dentro da casa. Na garagem tocaram João Luiz, hoje conhecido como DJ Linkage e Bruno Soares, hoje conhecido como DJ Arlequim. Bruno, mesmo muito novo, já tinha muita experiência como DJ e já atuava com uma equipe de som. Bruno fez o curso de DJ com o DJ Chocolaty, mestre pioneiro no ensino da arte de mixar em Brasília. Vários DJ’s de música eletrônica da cidade fizeram o curso com o Chocolaty. Linkage e Arlequim, muito dedicados em estudar a arte da discotecagem, serão mencionados nos anos seguintes. Na pista dentro da casa tocaram eu, Mr. Spacely e Spiceee, que voltava a tocar na cidade em uma festa memorável. Ao fim da noitada, já de manhã, fomos mostrar a cachoeira do poço azul para ele, que preferiu ficar comigo o tempo todo dentro do carro escutando música (em fitas K7s) enquanto o resto do pessoal foi pra cachoeira.

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A cobertura do Edifício Varig

Em novembro Spiceee volta novamente a tocar em Brasília. Dessa vez para uma outra festa incrível, em um espaço nunca antes usado para esse tipo de evento, a cobertura do edifício Varig. Fazer uma festa naquele cenário era impensável até então, e isso foi muito marcante. A chegada no evento, a fila na entrada, a subida de elevador para cobertura, tudo era uma sensação nova. Completando a festa eu toco pela primeira vez com o DJ Xandy que sempre foi um grande DJ, e essa era a primeira oportunidade que tocávamos juntos. Xandy também voltará na história mais para frente, nos anos posteriores. A festa no edifício Varig foi muito legal, e comentada por anos, e sempre foi um desejo de todos voltar a realizar um evento lá. Foi a primeira vez que usamos a cobertura de um edifício no centro da cidade e que tinha uma vista impressionante. Techno do começo ao fim e Spiceee vai ganhando também espaço na cidade.

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Flyer da cobertura do Varig com o erro no nome Techno.

 

Este é o final da parte um desta matéria.  No segundo capítulo, Oblongui fala sobre a evolução do cenário eletrônico em Brasilia na virada do milênio. Fique ligado.

 

 

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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