Estivemos no show de Tatá Aeroplano, que acaba de lançar o sétimo álbum “Não Dá pra Agarrar”
Acompanhamos Tatá Aeroplano em um dos shows de lançamento de seu novo disco, “Não Dá Pra Agarrar”
O sol de inverno entra pela janela do carro no meio da estrada. Sei que muitos de vocês hão de concordar: como são lindos os dias de outono e inverno! Sol que ilumina e não queima, deixando o céu num azul-claro encantador. No bólido movido a petróleo refinado, junto comigo, estão os produtores Vandré Caldas e Adriana Cristina (Dri, para os íntimos), criadores da Superkaos Produções. São eles os responsáveis pelo show de Tatá Aeroplano nesta agradável sexta-feira de agosto.
A dupla ouve no som do carro o novo disco do Tatá, “Não Dá Pra Agarrar”, recém lançado. A função me recorda algo de adolescente: aquele tesão de ouvir a obra toda de um artista antes de chegar a seu show, medida prudente para decorar o que falta das letras das músicas com o objetivo de cantá-la, a plenos pulmões, durante a noite. Coisa que, obviamente, fizemos.
“Não Dá Pra Agarrar” é o sétimo álbum de Tatá Aeroplano em sua carreira solo, depois que se desgarrou das bandas Cérebro Eletrônico e Jumbo Electro, surgidas na fogueira (ou lareira) do movimento easy listening em São Paulo, a onda pós fritação que exigia músicas de roupagem moderna, eletrônica e menos excitantes do que as pauladas de alto BPM que furticavam nosso coração nas pistas de dança da década de 90.
Importante despejar o seguinte caldo na sobremesa que estou prestes a servir: tenho uma relação passional com este artista. Uma relação multigâmica, já que Mr. Aeroplano, o “trovador psicodélico”, reúne à sua volta milhares de pessoas que pensam como eu. Pessoalmente, foi o caso privilegiado do carinha que recebe o presente de ficar amigo de seu ídolo. A música do Tatá tem escancarada influência dos malditos brasileiros como Walter Franco, Sergio Sampaio e Jorge Mautner (de quem gravou “Ressureições”, música do álbum Revirão, de 2006). Inclua na receita malditos do cinema, como Glauber e Truffaut, já que o músico é viciado nas delícias cinematográficas das biqueiras luminosas do centro de SP: os cinemas de rua. No entanto – e eis a grande dualidade da sua obra e vida – Tatá Aeroplano, na verdade, é um bendito. Não é um anjo caído, mas um anjo do guarda. Sua presença, fora do palco, é delicada, elegante e inclusiva, tornando-o um santo protetor dos excluídos e marginalizados. Aquela entidade espiritual capaz de fazer com que um bêbado tropece na calçada, caia de cara no chão, e ainda assim não quebre nem um osso do corpo, tampouco a garrafa de cachaça que traz debaixo do braço.
No palco, Tatá emana segurança e ancestralidade. Na mão direita, o dedo na sua cara. Na esquerda, o afago na nuca. A delicada mão no quadril que te puxa de encontro à pélvis, durante a foda. Foi assim que conduziu o show, para uma embasbacada plateia (formada por muita gente que não conhecia o seu trabalho), mesclando uma considerável quantidade de músicas do disco do novo com seus hits underground, como Step Psicodélico, Night Purpurina, Eu Inezito e (pausa para suspiros apaixonados aqui) Outono à Toa.
Cercado por uma banda de indiscutível competência, figuras carimbadas da cena midstream de São Paulo, Tatá performa de um jeito infalível. Aquele artista que, ao mesmo tempo, mostra que está muito, mas muito acostumado com os palcos, sem perder a energia da alegria, de estar feliz por viver aquele momento. Sim, concordo: temos nosso Nick Cave.
Ciente de seu corpo com braços de dois quilômetros, Tatá Aeroplano abraça uma porção de artistas através de suas inúmeras parcerias. Bons artistas de todos os mundos, que incluem desde Persie (de quem falamos semana passada) a Júpiter Maçã, passando por Bárbara Eugênia, com quem gravou o disco boa onda “Música Ventureira”, que incluí em sua discografia solo acima, caso algum metódico leitor tenha feito as contas.
O resultado desta putaria artística são canções que rendem letras cortantes. Brinco com ele (e aqui escreve o fã babão, e não o jornalista), que ele tem um verso para cada momento da minha vida. Rolês errados na Augusta, separações doloridas, a fundamental batalha entre a loucura e a lucidez, a plena alegria da paixão e, no caso do novo álbum, o viver, amar e endoidar em um momento tão doloroso quanto o da pandemia. Momento em que o disco foi finalizado.
Peço licença para deixar a modéstia de lado neste parágrafo: nós recebemos, aqui no quartel-general do Music Non Stop, centenas de releases de lançamentos diários. Nos últimos meses, muitos trabalhos óbvios sobre os tempos atuais. Além disso, a longa estrada da vida me permitiu testemunhar uma porção de coisas. O encantamento com a “mixagem limpinha” dos discos do Steely Dan, o deslumbre errado dos equipamentos japoneses que chegaram aos estúdios nos anos 80, gerando a overdose de reverbs que, inclusive, mataram discos fantásticos, a “loudness war”, um movimento onde as músicas saíam dos estúdios saturadas para agradar aos novos ouvintes de músicas nos aparelhos celulares, até os dias de hoje. É por isso que preciso falar do Dustan Gallas, o cara que comanda a produção dos discos do amigo e companheiro de palco, baixista da banda e responsável pelo som acima da média de “Não Dá Pra Agarrar”.
Ouvir o novo álbum é como flutuar em ambiente sem gravidade. Os elementos da música se movimentam ali, ao seu lado, acima e abaixo, totalmente independentes e, ainda assim, conexos. Cada instrumento é como um membro da família que mora em um lugar diferente do mundo. Apesar de não se verem, eles estão sempre juntos. Unidos. Família. A voz de Tatá, então, personifica o grande pai que recebe, num aniversário, casamento ou funeral, todos os seus filhos que há muito tempo não se viam. Mergulhados na memória e na saudade, bateria, baixo, sintetizadores e as outras vozes (como, por exemplo, da cantora Malu Maria), se encontram, sorridentes, para contar suas histórias particulares, vividas na ausência.
Tudo isso me faz acreditar que “Não Dá Pra Agarrar”, senão for o melhor, é um dos melhores álbuns da carreira do trovador (que lá pelas 5 da madrugada também costumo apelidar de “meu futuro marido”). A opinião final, no entanto, é sua. Ouça o disco, curta as letras, e bem-vindo.