25 anos depois, primeira publicação a abordar a noite brasileira e suas conexões com a moda ganha nova edição, com 70% de conteúdo inédito
Lançado em 1999, o livro Babado Forte, da jornalista Erika Palomino, foi a primeira publicação a abordar a noite brasileira e suas conexões com o mundo da moda. DJs, figuras da noite, estilistas e demais festeiros viram sua história ser contada, praticamente em real time. Afinal, a segunda metade da década de 90 foi quando tudo aconteceu em São Paulo, e tal cena foi identificada e comentada por Palomino em sua coluna semanal de página inteira Noite Ilustrada, na Folha de São Paulo.
25 anos se passaram e tudo aquilo virou história. Outras gerações chegaram, outras músicas, outros gírias… E para manter o babado forte, a jornalista decidiu lançar uma nova edição, revisada e ampliada. E bota ampliada nisso: o novo livro, BBD FRT, como é chamado, tem 70% de seu conteúdo inédito. Uma loucura.
Erika se encontra com os leitores neste sábado, 23, na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, a partir das 15h, para o lançamento oficial do livro, com direito a autógrafos e celebração. No convite, se lê: “dresscode sugerido: montação”. Por mais mudada que a edição esteja na versão 2024, o babado segue o mesmo.
Conversamos com Erika Palomino para falar do passado, presente e futuro da cultura clubber brasileira — e o que o seu clássico livro da cena eletrônica nacional traz de novo, 25 anos depois.
Jota Wagner: Meu… 70% do conteúdo é inédito. Como é que surgiu essa ideia tão ambiciosa, de atualizar tanta coisa?
Erika Palomino: Ao longo desses anos, a edição original foi se esgotando, os exemplares foram rareando e eu já tinha vontade de atualizar aquela sessão “que fim levou” do livro, para ir contando o que acontecia com as pessoas. Eu já tinha tentando voltar com esse conteúdo do original há uns 15 anos. Comecei a atualizar um por um.
Mas eu perdi parte do conteúdo, porque a gente ficava levando os computadores para lá e para cá, e quando vi, já tinha perdido muita coisa. Quando vi que estava se aproximando uma data redonda, de 25 anos — e você sabe que a gente, jornalista, adora uma efeméride —, percebi que as novas gerações estavam interessadas naquilo que tinha acontecido nos anos 90. Achei que era a hora dessa atualização.
A primeira edição foi lançada meio que em real time. Você abria uma página e encontrava uma pessoa que você viu semana passada em algum lugar. Você revisitou esse pessoal novamente, conversou de novo com eles?
A gente tem o que chama de arco de personagem. A pessoa pôde contar o que aconteceu na vida em 25 anos. Poder contar de que forma isso tudo se deu com os personagens mais icônicos, mais emblemáticos da edição original, foi muito bonito. As pessoas foram muito generosas e honestas em dividir comigo e com os leitores seus altos e baixos. Isso é uma oportunidade incrível, contar essa história com um recorte de tempo tão amplificado. São histórias pessoais, que vêm também com reflexões, símbolos e, muitas vezes, são o recorte de uma juventude brasileira. Foi uma oportunidade maravilhosa em termos pessoais e profissionais.
Isso provocou em todo mundo que se envolveu, os entrevistados, pessoas da fotografia, da equipe de pesquisa, um olhar para trás, entendendo o que nos fez chegar até aqui. Terminei muitas entrevistas muito emocionada, desligava o vídeo e chorava. A pessoa também. Foi muito bonito.
Além disso, o livro trás novas histórias, de novas cidades e cenas. O que você levou em conta para decidir o que entraria na reedição?
Foi um desafio. Além de atualizar o conteúdo original, escrever a história de 2000 até aqui e entender o que fazia sentido entrar ou não… A gente tomou como ponto de partida a conclusão do livro original. Ali tinha um exercício de futurologia, do que poderia acontecer nos próximos anos. Para minha alegria, ao retornar a esse material, vi que o índice de acerto foi bem grande.
A partir dessa divisão, fui olhar quem tinha transformado os processos e quem tinha se transformado. Foi muito rico fazer essa observação e ir contra uma pegada hegemônica. A pegada da narrativa é alternativa, subversiva, marginal, ousada, irreverente, bagunçada, underground. Não é a história oficial. É a de quem está do outro lado da calçada.
A gente tinha naquele momento uma conexão muito forte de uma música nova chegando, uma geração de estilistas aparecendo e que estavam ali se retroalimentando. Hoje em dia, ainda existe esse diálogo de linguagens?
Tem sim. Naqueles dez primeiros anos, a gente era alimentada pelo que acontecia fora do Brasil, nas pistas de Berlim, Londres, nos club kids de Nova Iorque, na moda de Paris… Isso porque a gente estava começando a receber as informações estrangeiras, quando o mercado começou a se abrir para que chegassem revistas, CDs, livros, e as pessoas também começaram a ter um pouco de oportunidade de viajar. Era uma época pré-internet, você tinha que disputar as revistas que chegavam na banca.
De 2000 até aqui, de uma forma antropofágica, as pessoas começaram a querer escrever suas próprias histórias. Pegar essas referências e identificar com o que é seu, com a sua pronúncia, trazer para o seu território. Isso gerou o que tem de mais rico no livro, que é identificar a produção de cultura com características brasileiras, e com orgulho. Também diz respeito a um corpo brasileiro. O caminho, que é nosso, de interpretar, sair do perrengue, das deficiências, algo que passa pela rua.
Era um movimento da classe média que sofreu uma apropriação total da quebrada, inclusive nas questões do diálogo com a moda…
O livro traz isso também. Esse encantamento com essa produção que, acertadamente, como você aponta, influenciou e continua influenciando de uma forma muito poderosa. O que está acontecendo e essa contemporaneidade no Brasil. Então temos essa legitimidade e essa potência. Ao longo desses 25 anos, eu fui acompanhando como espectadora e torcendo também. Identificando algumas personagens nesse processo extremamente criativo, e quis trazer para o livro.
Montamos uma equipe de pesquisa de diferentes formações e regiões, para poder alimentar o livro de forma verdadeira, de uma forma bastante porosa e capilarizada. Questionando, inclusive, o olhar do livro orginal, que era muito individualizado. Uma visão muito minha, personalizada.
Nós todos éramos assim, mais individualizados mesmo…
Também porque o livro original era um desdobramento das notas da coluna Noite Ilustrada, então já era uma versão bastante personalista. Neste novo livro, eu saio mais de cena. Segue com a minha autoria, mas mais como um fio condutor. Deixo para as pessoas contarem as próprias histórias em sua riqueza e pluralidade. É óbvio que cada cena vai ser mais autêntica quando falar por si.
O livro consegue identificar potências como Jup do Bairro, BADSISTA, Linn da Quebrada… Artificies da geração do tombamento, como Isaac Silva, Rafa Pinar, as manifestações do Norte e Nordeste, que têm uma expressão imensa e que tínhamos apontado no livro original. Falamos do Afrobarco, de Salvador, da BATEKOO, do Noite Suja, de Belém, das Demônias, até o tecnobrega, o passinho, o funk carioca, a cultura mandrake, a cena ballroom, que se espalhou no Brasil após a pandemia… Uma entrevista que gosto muito é com a Dayana Molina, que questiona uma visão decolonial na moda, coisa que nem se falava antes…
Dessas histórias que você descobriu ou redescobriu, qual foi a que mais te encantou?
Olha, eu gostei muito de me aproximar do trabalho da Rafaela Pinah com Coolhunter Favela. É uma das entrevistas mais geniais. O recorte que ela faz, a interpretação, a leitura que ela faz do do sistema da moda e do jeito que ela se move. A entrevista com a Jup do Bairro também é histórica é excelente. Dudu Bertolini também deu um depoimento muito legal.
São essas pessoas que me ajudam a fazer as reflexões, principalmente dessa parte final, que é onde também se exercita nessa espécie de futurologia, dizendo que essas são pessoas que fizeram suas transformações, fizeram transformações no país, e apontam para futuros possíveis para o Brasil.
Erika, é verdade esse negócio mesmo que a gente é diferente do resto do mundo, nesse movimento cultural que a gente está inserido? Ou é essa conversinha só para afagar o nosso ego?
Eu acredito muito que é, sim. O jeito da gente dançar é único; como a gente se move, fala, interage… Como a gente ouve e responde à música, tudo é muito especial. Isso nos torna, de verdade, únicas e únicos dentro desse grande rolê. O BADSISTA conta, em uma das entrevistas, que “quando eu comecei a fazer turnê na gringa é que eu fui ver que a gente é muito foda”. Porque aqui se faz na raça, e faz muito bem. O livro tem um pouco disso também. De reforçar a autoestima de quem está produzindo. Pretende incentivar as pessoas a se inspirarem pelas histórias e falar: “pô, eu posso fazer isso também”.
Ele reforça também o lugar das liberdades e individualidades. A gente vê hoje uma ameaça conservadora, um assombro da direita, uma onda que não podemos deixar pegar. O livro serve para impedir retrocessos e estabelecer que as conquistas feitas não podem retroceder.