Erasmo Carlos: o gigante gentil que não se achava cantor. As dez músicas fundamentais para compreender o gênio

Claudio Dirani
Por Claudio Dirani

Amante do rock, defensor das mulheres, compositor de mão cheia: uma lenda que nos deixou mais pobres sem sua presença, mas com direito a uma herança cultural irrevogável

Erasmo Carlos entrou no estúdio do ar da rádio Alpha FM em uma tarde de inverno de 2009 pisando em ovos.

Digamos que sua feição estava mais para gigante gentil do que para um tremendão, comparando dois de seus famosos apelidos.

Timidez e doçura exalavam de um astro de primeira grandeza – principalmente no quesito generosidade.

Do alto de seu 1,93m, quase um arranha-céu para este escritor, a vista do cantor do estúdio onde eu trabalhava alimentando a locutora com notícias era realmente privilegiada. Naquele dia, tenho certeza: ele certamente anteviu meus movimentos.

Ao girar o pescoço para cumprimentá-lo, abri um enorme sorriso e falei comigo mesmo algo do tipo: “se eu pedir agora uma foto com o Erasmo, o resultado será algo como a descrição David x Golias”. (Quem seria mesmo o David? – confira abaixo o registro histórico!).

Claudio Dirani (David) e Erasmo Carlos (Golias) – 2009

Ah… Quer saber de uma coisa? – repeti o bate-papo com minha consciência. Não vou titubear. Dei de ombro, me levantei da estação onde ficava meu computador, apertei sua mão e registrei a imagem histórica.

Na sequência, puxei conversa com Erasmo e aproveitei para elogiar o material que ele acabara de produzir: o incrível Rock ‘N Roll uma espécie de disco-tributo ao conjunto de sua obra, que o elegeu um dos monstros sagrados de nosso pop.

(…)

Erasmo Carlos: despedida entre solos e acordes

Erasmo Carlos não está mais entre nós. É lamentavelmente irreversível. Seu último suspiro em clave de sol foi dado em 22 de novembro – data que o parceiro e amigo de fé de Roberto Carlos deveria saber, e muito bem, tem tudo a ver com os maiores ídolos de sua juventude.

Foi em 22 de novembro de 1963 que os Beatles lançaram With The Beatles, segundo LP de sua discografia oficial. E foi num mesmo 22 de novembro de 1968, que os quatro rapazes de Liverpool soltaram The Beatles, o único álbum duplo de estúdio da discografia do grupo, embalado, envolvido e abraçado por uma icônica capa totalmente branca.

Agora, o tal 22 de novembro – que, tristemente, ainda é famoso pela data de morte de John Fitzgerald Kennedy em 1963 – também será lembrado como o dia da partida de um de nossos maiores artistas.

Dono de respeitosa e longa carreira solo, lançada ainda no auge da Jovem Guarda com Tremendão (1967), Erasmo Carlos, acredite, nunca se considerou um cantor.

Ele (Roberto Carlos) tem um cuidado com a voz dele, não entra em lugar refrigerado, está sempre com cachecol disponível”, observou Erasmo, em entrevista concedida há quatro anos ao UOL. “Eu não cuido de nada, qualquer coisa está boa para mim. Eu não me considero cantor, sou intérprete das minhas músicas”, ponderou, sem emanar qualquer sentimento de falsa humildade.

Em outro bate-papo com a imprensa para divulgar Erasmo Convida Volume 2 (2007), o Tremendão chutou o balde contra si próprio.

Ao responder se algum dia vislumbraria gravar um disco-dueto com o parceiro Roberto, a resposta foi drástica.

“Nós já gravamos uma ou outra junto, mas foi isso. E nem é o caso de ter. Eu não sou cantor, sou compositor. Pô eu vou fazer o que no disco dele? O Roberto Carlos canta pra cacete (risos) eu vou é atrapalhar o disco!”, decretou.

Vamos deixar para o nosso Gigante pensar melhor, esteja ele onde estiver.

Mas, enquanto isso, seria possível debater aqui sobre o que definira realmente um “cantor de verdade”?

Reflita por um instante.

Bob Dylan não tem o que podemos chamar de “voz angelical”, mas sua personalidade e criatividade no uso de seu inimitável vocal é invejável.

O não menos mestre Thom Yorke, do Radiohead, por sua vez, canta de forma fantasmagórica e atrai bilhões.

Já Kurt Cobain tinha uma voz ardida e nada amigável – porém certeira e pungente. Alguém por acaso ousaria afirmar que ele não era um cantor de verdade? Hmmmm… suspeito que poucos.

Mas já que Erasmo não se considerava um cantor, vamos exaltar aqui o seu talento para escrever…e, ora…para cantar!

Para avalizar esta tese, me atrelarei ao repertório cantado por ele em seu último show, 16 de setembro de 2022 no teatro Guaíra, em Curitiba. Que os versos cantados por Erasmo, comentados aqui no music non stop, sirvam como um tributo ao homem e artista.

O último show do “Gigante Gentil”

“O Bom”

Por favor. Pare. Agora. O show já começa discordando com E.C.

Isso porque “O Bom” não é um original de Erasmo, muito menos uma parceria com Roberto. A música é assinada pelo lendário Carlos Imperial em  cooperação com Eduardo Araújo, que Erasmo cantava como ninguém. Perdeu, Gigante. Ou Melhor, ganhou.

“Sou uma criança, não entendo nada”

Parceria de Erasmo de Giuseppe Ghiaroni do A Cor do Som, a faixa foi lançada originalmente em 1980 em Erasmo Carlos Convida – um disco muito, mas muito acima da média, recheado de duetos espetaculares.

“Filho único”

Em sua última apresentação ao vivo, o resgate de uma bela composição da dupla Roberto/Erasmo. A versão de Erasmo apareceu pela primeira vez em A Banda dos Contentes, de 1976.

“Esqueça”

O retorno de Erasmo, o intérprete, com sua bela versão meio The Byrds, meio power pop, para o clássico lançado no LP de 1966 de Roberto Carlos.

“Sentado à Beira do Caminho”

Clássica composição de 1980, lançada pelo Tremendão em um dueto com Roberto Carlos no álbum Erasmo Carlos Convida. O vídeo divulgado pela primeira vez nos anos dourados do Fantástico ajudou a transformar a canção em um hino.

“A carta” / “Gatinha manhosa”

Icônico medley, saindo direto das névoas do tempo da Jovem Guarda, que replica o lançamento de seu single de 1966 combinando “A Carta e a lendária balada “Gatinha Manhosa”. Esta última – um dos primeiros grandes originais da dupla Erasmo e Roberto – regravada por muitos intérpretes, com destaque para o hit de Leo Jaime. Ambas foram incluídas no segundo LP de Erasmo, Você Me Acende (1966).

“Devolva-me”

Balada gravada em 1966 ao lado de outra estrela da Jovem Guarda, a Ternurinha Wanderléa, e que serviria como trampolim para outros astros da era. Entre eles, a dupla Leno & Lilian.

Para os mais novos, não dá para descolar “Devolva-Me”, com a hipnótica voz de Adriana Calcanhotto.

“Mulher (Sexo frágil)”

Megahit de Erasmo escolhido e extraído do LP homônimo de 1981, e que se transformou em uma ode sincera às mulheres, distante de qualquer politização.

Neste mesmo LP estão duas outras canções-assinatura do Tremendão: “Pega Na Mentira” e….

“Minha superstar”

Gravada, como mencionado acima, para o disco Erasmo (1981), a música é mais um dos hinos pró-mulher do artista.

“É preciso saber viver”

Regressando dos 80 para os anos 70, “É Preciso saber viver” foi lançada originalmente no LP de 1974 do parceiro Roberto, mas também pode ser encontrada na voz de Erasmo em diversos lançamentos.

Os Titãs reforçaram o poder pop da música, ao regravarem para o disco Volume Dois (1998)

“É preciso dar um jeito meu amigo”

Sucesso de Carlos, Erasmo – sétimo LP do Tremendão, de 1971 – a música pode ser considerada uma das mais obscuras parcerias com Roberto, combinando rock e soul. Ainda assim, totalmente válida.

Medley:

“É Proibido Fumar”

“Vem quente que eu estou fervendo”

“Negro Gato”

“Minha fama de mau”

“Festa de Arromba”

O último gran finale de jornada irreparável do Tremendão é uma amostra de como Erasmo Carlos transpirava as raízes do velho e infalível rock and roll. Todas as cinco músicas desta sequência foram gravadas por Roberto e Erasmo (incluindo suas versões para “Negro Gato” e “É Proibido Fumar”, lançadas originalmente por RC) nos dias gloriosos da Jovem Guarda. Indiscutivelmente, elas permanecem no inconsciente coletivo do brasileiro como peças inabaláveis de um tempo que colocou o Brasil no panteão do pop.

“Vem Quente Que eu Estou Fervendo” é um desses rockers atemporais, lançado como single por Erasmo em 1967, pouco antes dos Beatles transformarem tudo com a psicodelia.

“Minha Fama De Mau”, outra genial parceria com Roberto, saiu como single nos anos 60 e depois regravada com a rainha Rita Lee para o LP de duetos Erasmo Convida (1980). Em tempo: não há como descolar “Minha Fama de Mau” da apresentação devastadora de Erasmo no primeiro Rock In Rio, em 1985.

“Festa de Arromba” – outro hino das festinhas sessentistas e além – chegou às lojas em 1965 ao lado da faixa “Sem Teu Carinho”. A música é outro clássico dourado escrito em parceria com o irmão de fé Roberto.

Claudio Dirani

Claudio D.Dirani é jornalista com mais de 25 anos de palcos e autor de MASTERS: Paul McCartney em discos e canções e Na Rota da BR-U2.

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