Entrevistamos Nelson D, o multiartista ítalo-brasileiro que evoca o retorno ao seu corpo território ancestral através da música
No ano de 1986, uma criança indígena foi encontrada em uma rua na cidade de Manaus no estado do Amazonas. Ele, que na época ainda era um bebê, viveu em um orfanato durante oito meses, até que um casal de italianos o adotou. Batizado de Davide De Merra, o manauara tornou-se cidadão italiano, cresceu em Savon, cursou Artes Plásticas em Milão e mais tarde escolheu São Paulo para difundir seu trabalho como artista, músico e produtor musical.
Chamado de Davide a vida toda, o italiano-brasileiro volta às origens como Nelson D, uma referência ao seu nome na época do orfanato. Como um estrangeiro em sua própria terra, em uma veste psíquica alienígena indígena, sua música é uma invocação de retorno ao seu‘corpo território ancestral’, um chamado por seu povo cujo o nome foi apagado.
Sua pesquisa musical se alimenta de vertentes da música eletrônica combinadas a aspectos da cultura indígena, misturando sonoridades orgânicas e tradicionais com processos tecnológicos. Um caminho sonoro íntimo onde o artista investiga-se como produtor musical e Performer, num rito futurista por ecos ancestrais num resgate de memórias originárias. Segundo Nelson, trata-se de um convite profanador que se torna ‘sagrado’, um corpo que transborda rupturas na (re)existência fora do tempo cronológico, abandona rótulos, etiquetas, revelando a liquidez de identidades e contrastes culturais no que chama de pós modernidade.
As referências do Nelson são artistas como Tricky, Radiohead, Young Fathers, Prodigy, Son Lux e Tanya Tanaq. Nelson D faz dos próprios beats um transe ritual, entre diferentes ritmos, com uma atmosfera obscura e melancólica, com influências do Trip Hop dialogando com uma roupagem Rock e indígena que acompanha todo seu trabalho. Os temas encarados refletem vivências da mata urbana Paulistana e as suas contradições.
Confira o último clipe lançado por ele:
Como produtor desde 2010, Nelson D se dedica à produção musical de trabalhos de novos e novas artistas na cena musical brasileira, entre as quais Danna Lisboa, Gloria Groove, Linn da Quebrada, Tássia Reis, Davi(ex Banda Uò), Mel (exBanda Uò) e Melvin Santana. Conversamos com ele sobre sua jornada na música e seu trabalho mais recente, o álbum “Em sua própria terra”, confira:
MNS – Nelson, conta pra gente como foi sua aproximação com a música eletrônica?
Na minha adolescência trabalhava como DJ e técnico de palco numa balada da minha cidade. Cheguei a fazer uns DJs set na Itália do Norte e na cidade de Porto em Portugal. Costumava escutar bastante música eletrônica especialmente Big Beat e Trip Hop como Chemical Brothers, Tricky, Prodigy, Asian Dub Foundation, DJ Shadow… O rock e o hip hop também sempre estiveram bem presentes no meu dia a dia.
Daí comecei a ter vontade de criar minhas próprias tracks e coletar programas e máquinas para produzir. Comecei com Reason que até agora é o meu DAW principal mas também sei mexer com Logic.
Em seu trabalho mais recente “Em sua própria terra” encontramos uma diversidade de gêneros combinados e uma riqueza de experimentações quando se tratam das instrumentais assim como quando pensamos em voz. Como você encara essa característica em seu trabalho? Poderia dizer que calcula cada detalhe ou se permite criar mais intuitivamente?
Quando crio um EP ou um Álbum tento ser bem detalhista no objetivo de concretizar o caminho sonoro desejado.
Sou muito fã daqueles artistas que num álbum conseguem transitar por diferentes BPM e momentos, conseguindo manter uma constante identidade e “marca”. Acho que nos próximos meus trabalhos o meu estilo será mais forte, evidente e compacto.
Esse trabalho foi um teste para avaliar minhas potencialidades, mas sem deixar de mostrar as minhas trajetórias e a minha visão.
Você nos contou que ingressou no ensino das Artes Visuais no período que viveu na Itália. O que você enxerga nesse período da sua trajetória que ainda está presente atualmente no seu trabalho com a música?
Sempre procurei me tornar um artista suficientemente completo. Gosto de ter um controle multisensorial do meu trabalho.
Atualmente estou desenvolvendo a parte visual da minha música, tentando usar toda minha experiência como artista plástico e pesquisador. Estou redescobrindo o trabalho de muitos artistas que eu adorava na época da Faculdade como Rirkrit Tiravanija, Carsten Nicolai, Nicola Carrino, Steve McQueen ou Bruce Nauman. Estou descobrindo novos artistas como Lisa Park ou Marco Donnarumma.
Tem muitas experiências artísticas que quero desenvolver a partir da minha música, sem necessariamente protagonizar a minha imagem mas criando um universo que se estende em diferentes espaços da comunicação seja físicos ou digitais.
Como você percebe a relação entre sua experiência com sua história e ancestralidade e a experiência que foi crescer geograficamente distante do território em que nasceu? Essa vivência se reflete de alguma forma em sua arte?
Absolutamente sim. Uma das minhas primeiras necessidades na minha arte é encontrar-me e reconhecer-me naquilo que faço.
Eu sou um indígena, Brasileiro, Europeu, Italiano e muitas outras coisas. Tento transmitir com a minha música esses encontros de diferentes informações, questionando se tem uma real necessidade de uma única categorização da identidade binária ou polarizada dos indivíduos na nossa sociedade.
Futurismo indígena é um termo que permeia sua obra. Qual é o significado de Futurismo Indígena para você?
O termo futurismo indígena foi criado pela professora indígena Grace Dillon, calcando o conceito do Afrofuturismo. Concerne um conjunto de produções artísticas e culturais, a partir da perspectiva indígena do passado, presente e futuro, muitas vezes interligado com o contexto da ficção científica e outros tipos de narrativas. Devido ao meu uso da língua Nheengatú e dos instrumentos tradicionais indígenas misturados com instrumentos musicais eletrônicos, eu fui várias vezes associado a esta vertente cultural. É uma associação que eu aceito com prazer por mais que não coloque limites no meu processo criativo.
Muitas vezes é comum querer associar o meu trabalho a uma visão estereotipada do indígena , quando o meu objetivo é mostrar a pluralidade do ser indígena e a complexidade do conceito de identidade.
O Futurismo Indígena pode se tornar um instrumento de criação e luta muito nobre se conseguir externar-se em visões não óbvias e criar perspectivas para os povos indígenas saudáveis e efetivas.
O que mudou na sua vida e trajetória como artista depois que passou a viver em São Paulo?
Substancialmente tudo! Tive que apagar muitas coisas na minha mente, na minha forma de pensar e agir. Mas era exatamente o que procurava. Eu quis descobrir as minhas origens, conhecer o povo brasileiro, a suas culturas e formas de pensar. Quis testar minha força de adaptação e de sobrevivência morando numa cidade complexa como São Paulo. E especialmente, quis desenvolver minha identidade artística aqui e preencher aquela parte da minha história que ainda não conhecia. Confesso que às vezes senti que era um desafio maior do que eu esperava. Mas hoje estou contente com as experiências que tive e já consigo re-significar os momentos difíceis que já passei aqui.
Como tem encarado esse período de pandemia? Como esse cenário tem refletido no seu dia a dia e na sua pesquisa?
Estou aproveitando para melhorar a minha arte e planejar estratégias. Por sorte, posso contar com um trabalho Home Office para me sustentar financeiramente o suficiente. Não digo que seja fácil, mas sei valorizar o que tenho e vivê-lo com o máximo carinho e intensidade. Tento deixar mente e corpo sempre em movimento e encontrar soluções por meio da pesquisa e da criatividade (as vezes fracasso feio heheh!).
O que podemos esperar de Nelson D. para os próximos anos?
Muita dedicação, pesquisa artística e projetos concretizados.
Se pudesse enviar uma mensagem aos artistas brasileiros nesse momento, em especial artistas independentes, qual seria?
Não me acho tão sábio e maduro para me permitir dar conselhos… Vou dar o meu melhor…
Primeiro cuidem da vossa saúde, não se sintam frustrados ou desqualificados em deixar em Stand-By a vossa arte se ainda não tiverem resolvidos as vossas situações financeiras ou problemas físicos e mentais. Evitar fazer apostas economicamente arriscadas com a própria música.
Uma vez ter conseguido um mínimo de estabilidade, usar todas as informações e recursos que a internet pode proporcionar: Apps, Tutorial, Fórum, Social etc…
E por último: fazer, fazer, fazer…Com constância, humildade e paixão…Acho que é tudo!
Para conhecer mais sobre o trabalho de Nelson ouça: