Chegando a SP com o projeto Tomorrow Comes The Harvest, pioneiro de Detroit reflete sobre música, espaço, tempo e consciência
Com uma longa carreira de excelentes serviços prestados ao techno e à música eletrônica, o norte americano Jeffery Eugene Mills, ou simplesmente Jeff Mills é considerado por muita gente como o melhor DJ de techno da história. Suas discotecagens são lendárias, como apresentadas no DVD Exibitionist, ou o ainda mais impressionante set realizado no Liquid Room de Tóquio em 1995, que está sendo celebrado com uma turnê mundial. Esperamos que ele passe por aqui, mas antes, nos dias 14 e 15 de outubro, o artista estará em São Paulo, pelo Queremos!, para duas apresentações com seu projeto Tomorrow Comes The Harvest.
Mills é conhecido por sua visão futurista, seu fascínio por temas espaciais, o uso de múltiplas tecnologias e por ser dono de uma singular veia artística. Já produziu música para cinema, instalações artísticas, pinturas e esculturas. Fez a trilha sonora ao vivo de Metrópolis, de Fritz Lang, e de Three Ages, de Buster Keaton, e para o clássico Forbidden Planet, entre muitos outros, além de dirigir seu próprio filme, Rediscovers the Rings of Saturn, com seu parceiro Mike Banks, do Underground Resistance. Outro capítulo memorável é sua performance com a Orquestra Filarmônica de Montpellier na França, em 2005, que gerou um álbum no ano seguinte.
Com tanta sede por trilhar novos caminhos, o artista começou em 2016 uma parceria com o mitológico baterista nigeriano Tony Allen e o tecladista Jean-Phi Dary, em que fundem a riqueza dos ritmos africanos com a poesia eletrônica do DJ em improvisos e jams. Allen é considerado a outra metade que “inventou” o afrobeat, ao lado de outra lenda, Fela Kuti, que sempre exaltava o parceiro como peça fundamental na criação do gênero. Com a morte do baterista, Jeff Mills continuou o projeto com Dary, mais o percussionista e mestre de tabla, Prabhu Edouard.
A ideia é deixar o som correr solto, sem grandes ensaios ou regras pré-estabelecidas, no melhor espírito jazzista. O resultado em disco é bastante bom, uma mescla de fusion, afrobeat e música eletrônica. Ao vivo, os músicos se deixam levar ainda mais em performances viajantes e carregadas de improvisações. Antes de chegar por aqui, o mestre nos deu essa entrevista:
Laerte Castagna: Quando sua paixão pela música começou?
Jeff Mills: Formalmente, começou na escola primária, no 3º ano. Comecei tocando percussão no 10º ano. Parei depois do 12º e fiz a transição para DJ conforme essa forma de arte e a música de rua se tornaram mais populares nos EUA. Durante as décadas de 1970 e 1980, acho que a música era mais respeitada e tinha mais valor. Então, se alguém esperava se tornar um músico profissional, havia muitas coisas a aprender. Era preciso atingir um certo nível de habilidade ou técnica. Não se baseava apenas na popularidade.
Em 2025, temos duas datas especiais. Em abril, o senhor se apresentou em um concerto com a Orquestra Sinfônica de Londres para celebrar o 20º aniversário do álbum Blue Potential, que incluiu gravações de sua apresentação histórica com a Filarmônica de Montpellier. Como é tocar techno com uma orquestra?
Ambos os concertos foram incríveis. Tocar com a Orquestra Sinfônica de Londres é um dos pontos altos da minha carreira, porque era a orquestra que eu costumava ouvir na minha juventude enquanto assistia a filmes de ficção científica como Star Wars e muitos outros longas-metragens.
Este ano também marca o 30º aniversário do lendário set no Liquid Room, em Tóquio. Quais as suas expectativas para esta turnê mundial?
Sim, este ano marca o 30º aniversário de um DJ set específico que fiz em Tóquio. Foi em uma casa de shows underground chamada Liquid Room. Como uma mixagem que seria filmada e gravada para a Sony Music e a série Mix do DJ Takkyu Ishino, o resultado foi uma captura extraordinária de algo muito único.
Registrou a criação de um ponto de virada que influenciaria muitas pessoas a seguir carreira na música eletrônica underground, mais especificamente no techno. Juntamente com DJs muito talentosos, eu iniciarei uma grande turnê no outono [do Hemisfério Norte] para recriar a atmosfera daquela noite especial.
Tomorrow Comes The Harvest em Berlim. Foto: Thomas Ecke/Divulgação
Em sua discografia, encontramos um item raro e curioso: o EP Niteroi. Há uma faixa chamada Aeroporto Santos Dumont“, outra chamada Alcântara, e possivelmente uma referência ao arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer… Qual é a história por trás desse disco?
Já estive no Rio algumas vezes e, sim, este álbum derivou dessas viagens e da arquitetura de Niemeyer. Minha observação começou com suas obras na capital, Brasília, e depois, em locais espalhados pelo país. Fiquei especialmente motivado pela paisagem árida e sem cor de Brasília porque, na época, eu também estava pesquisando a superfície lunar e o que seria necessário para que os humanos vivessem mentalmente lá, permanentemente.
Eu queria saber se havia algo que pudesse ser aprendido vivendo perto de uma paisagem tão insípida, porém expressiva e inovadora. Então, eu estava até pensando em morar temporariamente em Brasília, arrumar um emprego de meio período para poder conhecer certos hábitos das pessoas que vivem lá e nas redondezas. Assuntos como estilo ou preferência de cor. Isso nunca aconteceu, mas continuo admirando o país, especialmente sua música, design e cultura.
Jeff Mills em Tomorrow Comes The Harvest, em Berlim. Foto: Thomas Ecke/Divulgação
O release de Niteroi diz: “Em homenagem às águas escondidas na costa da cidade brasileira de Niterói, exploramos as profundezas de Aquário em busca de novas formas de vida por meio desta jornada musical”. Drexciya, também de Detroit, tinha um fascínio especial pelo mundo subaquático. Qual seria a conexão entre o techno e o oceano?
Essa atração pode se dever ao fato de o planeta ser coberto principalmente por água. Tecnicamente, somos “aquanautas”. Nossa constituição física pode chegar a 75% de água. A evolução nos diz que saímos dos oceanos e nos estabelecemos nessas massas de terra, mas ainda somos basicamente vida marinha com um par de pernas. Sem água, não poderíamos existir. E durante os primeiros nove meses de vida, existimos em líquido.
Niteroi surgiu em colaboração com uma marca de roupas japonesa. O senhor sempre se veste com muito estilo, com um gosto impecável em roupas sob medida. Qual o papel da moda na sua vida?
Sempre me interessei por moda. Principalmente pelo processo de criar algo para as pessoas usarem como uma camada ou uma extensão de sua personalidade. Então, na verdade, me interesso mais por pessoas do que por moda. O que elas usam para se definir é principalmente o que procuro.
Tive a oportunidade de assistir a uma exibição comentada do filme Discovering The Rings of Saturn, do seu projeto X-102 no ICA, em Londres. Lá, o senhor falou sobre seu fascínio pelo espaço, astronomia e tópicos relacionados. De onde vem essa atração?
Crescer nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970, com a NASA e as missões Apollo à Lua, não é algo difícil de ser impactado. Notícias e propagandas sobre tudo isso estavam por toda parte. O mesmo para quadrinhos e ficção científica. A ufologia e as possibilidades de vida em outros lugares do universo, trazidas por programas de TV como Perdidos no Espaço, Jornada nas Estrelas e a série Além da Imaginação, de Rod Sterling, fizeram um bom trabalho em distorcer minha mente irremediavelmente!
Em 2015, você recebeu uma carte blanche para uma residência de quatro meses no Museu do Louvre, em Paris, onde formou a banda Spiral Deluxe. Conte-nos sobre essa residência e a banda.
Recebi uma “carta branca”, o que significa uma residência de criação e acesso total e completo a todo o Louvre para criar. É uma grande honra. A partir desse acesso, criei um filme na Ala do Antigo Egito, uma apresentação ao vivo com um escritor de ficção científica, uma colaboração com um pianista clássico e a formação de uma banda de improvisação que acabou se tornando um supergrupo chamado Spiral Deluxe.
O Spiral Deluxe parece ser anterior ao seu encontro com Tony Allen, certo? Como você o conheceu e como surgiu a ideia de Tomorrow Comes The Harvest?
Sim, eu já tinha experiências e o conceito antes de conhecer o falecido Tony Allen. Mas quando nos conhecemos, encontramos uma maneira de levar a ideia adiante, porque ambos sabíamos tocar juntos sem comprometer o que cada um faz em seus próprios gêneros. Com Jean-Phi Dary, exploramos performances e gravações em estúdio até o falecimento inesperado de Tony. Depois disso, pensei em modificar o conceito para convidar outros tipos de músicos, como Prabhu Edouard e Rasheeda Ali.
Tomorrow Comes The Harvest em Davos, Suíça. Foto: Pinelopi Gerasimou/Divulgação
Com a morte de Allen, saiu um baterista e entrou um percussionista e tocador de tabla, instrumento frequentemente utilizado na música indiana. Como isso alterou o som do grupo?
Adicionar o som da tabla foi especialmente interessante porque ele faz a ponte entre harmônicos e percussão. Jean-Phi e eu também temos ambos os instrumentos em nossas configurações de palco. Assim, cada um de nós consegue liderar e acompanhar o outro com fluidez.
Você está envolvido em inúmeros projetos e lança uma quantidade considerável de músicas, além de se apresentar como DJ, com sua banda e com orquestras. Isso deve ocupar muito do seu tempo. O que você mais gosta de fazer quando não está trabalhando?
Trabalho a maior parte do tempo e raramente paro para descansar. É uma disciplina que comecei no início da minha carreira musical, quando trabalhava no rádio, na década de 1980. Há 24 horas úteis em um dia e a vida humana média é de cerca de cem anos — o que não é muito tempo —, então tento extrair ideias e materializá-las o máximo e o mais rápido possível.
